De súbito, porém, do
próximo quartel dos Bombeiros Velhos soltou-se agudo grito da
sereia de alarme. Um silvo contínuo (o apelo era para fora da cidade),
não tardando muito
que cessasse, e logo
ouvi a saída de uma viatura. Voltara-se ao silêncio, só interrompido
pelo vendaval.
Noite péssima, de
rigorosa invernia, mas, quando eu e muitos outros repousávamos, lá iam
eles, os Voluntários, lá iam eles, sentir de perto a intempérie, passar
trabalhos, correr riscos...
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BODAS DE DIAMANTE dos
Bombeiros Velhos não representam apenas 75 anos de paradas, de
desfiles, de vistosa presença em actos cívicos diversos. Mais do que
isso, significam e avivam três quartos de século de abnegação
inestimável e inúmeros sacrifícios!
Designá-los por
Bombeiros Velhos
equivalerá a reconhecer-se-Ihes sólido e glorioso título de nobreza,
galhardamente alcançado.
Quase todos eles de
humilde condição social, sem outros bens que não sejam família mais ou
menos numerosa a sustentar, sucede, todavia, que, tendo talvez posto os
olhos no céu infinito e vendo o brilho das estrelas..., com sublime
devoção se comprometeram a árduas canseiras e graves perigos.
Crepitando e
avançando violento incêndio, os simples espectadores, mesmo a distância
se sentindo asfixiados e abrasados, prudentemente se afastam, mas os
beneméritos e intrépidos Voluntários hão-de manter-se firmes nos seus
postos, na ardência da fornalha ou molhados até aos ossos, enquanto os
travejamentos desabem, as paredes desmoronem e, acaso, deflagrem
explosões. Em luta contra o fogo e contra a morte, chegam até à
heroicidade.
Por quem o fazem?
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Incêndios,
inundações, naufrágios... E o quê mais, a que sejam chamados os
Bombeiros?
Há anos, em Lisboa,
assisti ao aparatoso salvamento de um gato, utilizando-se excelente e
gigantesca escada Magirus, toda ela motorizada.
O bicho subira a tais
alturas, de uma grande árvore, que perdeu o tino para descer.
Muitas e baldadas
foram as tentativas que vários Bombeiros empregaram, tendo querido
aproximar-se do animalzinho e, por cautela, envolvê-lo em panos. Por
fim, assustado e resvalando de frágil em frágil ramo a que não poderia
segurar-se, caiu docemente num dos lagos da Avenida da Liberdade, onde o
espectáculo se desenrolou.
Encharcado, em
tristíssima figura, feito numa sopa! — mas salvo. Fora salvo um gato!
––––––––
Estou a lembrar-me de
certa poesia do meu livro de leituras alemãs, dos tempos de Liceu: «Não
te esqueças de mim».
Trata-se de conhecida
e delicada flor, dum azul como o dos céus: myosotis. «Não sabe
dizer muito, e tudo o que diz é sempre somente a mesma coisa, é somente:
não te esqueças de mim.»
Também a sereia de
alarme do quartel dos Bombeiros Velhos não sabe dizer muito, e é
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sempre o mesmo, enigmático, aflitivo e enervante o grito com que nos
inquieta. Mas, se tivesse palavras para contar-nos tragédias, o que nos
diria ela?
Veio de Londres e aí
serviu, no tempo dos bombardeamentos da Grande Guerra última. O que nos
diria ela? — repito.
Tive ensejo de ver
ferros torcidos, como se fossem vimes, restos de habitações,
desventradas até ao pavimento das caves, e este pavimento transformado
em baldio onde vegetavam, em abundância, fetos dos montes e moitas de «Epilóbium»,
de caules esbeltos e muito floridos, pondo manchas cor de rosa num
quadro dramático.
Para recordação colhi
no local algumas dessas florinhas, e as conservo, agora já enegrecidas
mas que, se falassem, possivelmente diriam, ainda, que foram regadas com
«sangue, suor e lágrimas», única promessa de Churchill à Inglaterra até
que se alcançasse vitória.
Talvez aquela sereia
dos Bombeiros Velhos, ao soltar seu grito, plangente, queira
repetir-nos: «Sangue, suor e lágrimas».
Quem sabe? Sangue,
suor e lágrimas daqueles que pedem socorro. Sangue, suor e lágrimas dos
que, por amor do próximo e bem fazer, correndo em auxílio se arriscam a
desastre!
––––––––
Antes de organizadas
convenientemente as corporações de serviço contra incêndios, não
raro era que a
multidão, no propósito de salvar, acabasse por destruir, quase por
completo o que existia, lançando tudo pelas janelas, dos mais elevados
andares à rua. No dizer de «O Bombeiro», de 1 de Agosto de 1889, o fogo
representava um flagelo, mas os salvadores constituíam uma praga!
Na época actual,
Aveiro conta com duas prestantíssimas corporações de Bombeiros
Voluntários, que, todavia, lutam com dificuldades.
No incêndio do
Governo Civil, em 1941, a falta de água, foi problema confrangedor, e,
mesmo com abundância de água, a insuficiência de mangueiras ou o seu mau
estado pode inutilizar os maiores esforços. Sabe-se que são caras e de
pouca dura.
Confiemos nos nossos
beneméritos Voluntários, poderemos contar com eles, mas, evidentemente,
só na medida dos meios de que disponham. Não lhes bastam louvores e
honrarias, estima e gratidão.
Estejamos sempre em
guarda! Quando nos lembrarmos deles, feitas bem as contas é a nós
próprios que serviremos. Não será assim?
Em minha vida sofri
dois sobressaltos: princípio de incêndio em estabelecimentos do rés do
chão de casas onde habitei, em Coimbra e em Aveiro.
Sem consequências,
providencialmente, mas, naqueles momentos de dolorosa ansiedade e
pensando que de um bom serviço contra incêndios dependerá a nossa sorte,
gravou-se no meu espírito a justeza de um conceito de velha sabedoria
popular, com que termino:
«O ladrão leva o que
pode, mas o fogo leva tudo!»
Ano Novo
–
1957
JAYME DE MELLO
FREITAS
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