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Altruísmo obscuro e anónimo

                   Pelo Dr. JOSÉ PEREIRA TAVARES

TRATANDO-SE de corporações de Bombeiros Voluntários, frisam-se, com razão, as qualidades de dedicação, renúncia e altruísmo de que dão provas os indivíduos que nelas se alistam, e evocam-se numerosos casos de coragem e valentia manifestados na ocasião de incêndios, cheias, tufões, etc., etc., pelos que abnegadamente e muitas vezes à custa da própria vida se votam à salvação da vida dos outros. Todas as agremiações de bombeiros recordam, a par dos seus heróis, os seus mártires.

Nas aldeias, em caso de sinistro de qualquer natureza, nem sempre se pode contar com o auxílio de bombeiros: as povoações mais afastadas dos centros em que eles existem têm exclusivamente a protegê-las o heroísmo dos próprios habitantes. Surgindo, por exemplo, um incêndio, dá-se o rebate na torre da igreja matriz ou tangendo a sineta da capelinha mais próxima.

A Minha Saudação
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Uma agremiação que comemora o 75.º aniversário da sua fundação, impõe-se à consideração geral e mostra-se possuidora da vitalidade que gera os grandes cometimentos.

Saúdo portanto, nesta data, todos quantos à Associação dos Bombeiros Voluntários de Aveiro têm dado a sua valiosa cooperação, não podendo deixar de saudar muito especialmente aqueles que abnegadamente, no seu Corpo de Bombeiros, têm trabalhado com o maior esforço, acorrendo em auxílio do seu semelhante com verdadeiro espírito de caridade cristã.

Para aqueles que a morte já levou, deixo a expressão da maior saudade, Que descansem em paz.

Coronel SERAFIM DE MORAIS JÚNIOR

Inspector do Serviço de Incêndios da Zona Norte
 


Dentro de pouco, inteirados do que se passa, aparecem de todos os lados, na ânsia de prestar qualquer auxílio, homens, mulheres, e até crianças... Há sempre alguém, mais animoso e expedito, que se arvora em comandante desses improvisados «bombeiros». E começa a faina: empunhando toda a casta de vasilhas, quem pode vai transportando água, extraída dos poços ou fontes próximas; lançam-se escadas às paredes; trepa-se às janelas e telhados; arrombam-se portas, salvam-se pessoas, animais e haveres.... Se no fim se reconhece a quase inutilidade dos esforços e canseiras despendidos, visto ter o prédio ficado reduzido a paredes nuas, todos sentem a consolação do dever cumprido e a satisfação que sempre nos dá a prática desinteressada do altruísmo.

Este altruísmo obscuro e anónimo regista-o por vezes a literatura, pondo-nos diante dos olhos a acção de desprotegidas populações perante a brutalidade dos terramotos, incêndios, inundações, derrocadas, ciclones, em suma, dos mil flagelos que põem em perigo ou totalmente destroem o bem-estar e a vida da pobre humanidade.

Reproduzirei aqui, para regalo dos leitores da «HUMANITÁRIA», um pequeno trecho de bela descrição de incêndio, ocorrido numa vila. Deve-se à pena de uma das mais notáveis escritoras do nosso tempo — D. Adelaide Félix (1).

Diante de casa incendiada, chegam bombeiros, e povo, muito povo, para ajudar. A certa altura do ataque, em ponto oposto àquele em que os bombeiros trabalham, aparece sobre a cimalha da casa, «com uma criança nos braços, uma rapariga, de cabelos desprendidos, feições desfeitas num esgar».

O fogo cresce, e continua a ouvir-se o rebate dos sinos na matriz. Várias tentativas, frustradas da parte de dois corajosos rapazes... E, «naquela emergência de morte, só ficaram duas realidade: a da chusma, que estendia os braços à desgraçada, pedindo que se atirasse, e a da lancinação materna, lá no estreito tabuleiro de argamassa, apertando o menino mais e mais ao peito.»

E a autora continua:

«Foi então que, ajudado por um punhado de homens, João Maria surgiu, congestionado, olhos raiados de sangue, arrastando um mastro delgado e comprido. Trouxera-o do adro da ermida, frente à qual, na manhã seguinte, o especariam, entre uma farta dúzia, nos alindamentos do terreiro para as festas da Senhora da Saúde. João Maria sabia-os ali, que seu pai os emprestara para luxos da romaria, e ele mesmo o transportara no carro, a junta a puxar que era um louvar a Deus.

Onde a mulher se mostrava, estacou, e quedou firme, a suster o pé do madeiro, enquanto os braços dos outros lhe iam empurrando o topo / 14 / para cima, empurrando sempre, no fito de endireitá-lo.

— Levantem mais!.. Levantem!... Força!... Força, seus m...!

Em dado momento, por trás da cornija onde a mulher se empoleirara, parte do telhado ruiu com fragor, espadanando no ar um inferno de lumes, mas ninguém se acobardou. Agora o pinheiro já principiava a erguer o cimo, jogados à bruta, em tal sentido, os joelhos, os ombros e as mãos calosas dos homens. Entre eles, João Maria centuplicava as próprias energias, acudindo como convinha. Por fim, num arranque hercúleo, conseguiram verticalizá-lo. Lesto, o moço atirou fora o colete, arregaçou até às coxas o surrobeque das calças. Num galão, achou-se aos ombros dos outros e, abraçado ao poste, começou a trepar resolutamente, como quando, no domingo mais festivo daquelas redondezas, ia buscar, ao alto do mastro grande, a cobiçada nota de cem.

A meia altura, sentindo que o tronco vacilava deveras, bolsou para os de baixo uma obscenidade. Depois, a seu tempo, mandou:

— Encostem à parede! Devagar... Devagar!

Lentamente o mastro perdeu a vertical. Pingando suor, o cacho humano que o sustinha conseguiu encostá-lo à cimalha. Ágil como um símio, João Maria fincou os pés na plataforma ardente.

Tomou a si a mulher. Prendeu-a bem com o braço esquerdo, enquanto com o direito lhe arrancava do colo o menino. E com ela bem colada à ilharga, berrou para a malta crispada numa agonia:

— Aí vai o miúdo... Aí vai o miúdo... Cuidado!

Num balanço ligeiro, a modo que o fedelho não raspasse na cantaria, gingou um pouco o corpo e, surdo aos berros aloucados da mãe, cujos braços continuava a manter garrotados contra o seu flanco atirou a criança para a almofada feita de braço estendidos.

Depois, jungiu-se ao poste, carregando com a mulher, que acabava de desmaiar sobre o seu ombro. Soltou-se da cimalha, comprimindo entre a coxas, rijas como tenaz, o redondo madeiro. E assim foi descendo, devagar, ajudado o gancho das pernas pela pressão tentacular do único braço livre.

Já no chão, entregou a rapariga ao mulherio que choramingava; perguntou pela criança. Estava fero, o inocente.

Só então deu por si, sentindo escorrer um líquido quente pelos joelhos e pelo braço direito, cuja manga pendia em tiras. Olhou, espantado: era sangue. Mas não lhe doía; o que lhe doía, coisa esquisita, era o braço esquerdo... Reparou: acima do pulso, do lado exterior, vermelha e tufada, uma funda queima arrepanhava a carne. E nem se lembrou de que, ao saltar sobre a cimalha, batera com o braço num dos enfeites de ferro que a guarneciam, e eram outras tantas brasas naquele lumaréu.

Na manhã seguinte à noite em que João Maria roubou ao fogo aquelas duas vidas, a rapariga estava viúva, sem um chavo de seu».

Este João Maria salvara da morte a mulher que fora sua noiva e o trocara por outro homem, — e, com ela, o inocente fruto da traição!

JOSÉ TAVARES

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(1) — Do livro de contos «Eu, pecador, me confesso..,,», conto «Quando uma brasa se apaga...».

 

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