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farol n.º 31 - mil novecentos e sessenta e nove ♦ setenta, págs. 18 a 20 e 22.

A Carta de Pêro Vaz de Caminha

e o Mundo Novo

Mário de Bastos Rodrigues, no ano lectivo passado, finalista do nosso Liceu, apresentou este artigo para ser publicado no último número do «Farol» do ano escolar transacto. Na impossibilidade de o fazer então, muito gostosamente o incluímos neste primeiro número do Farol do presente ano lectivo.

COMO abonação de um minucioso espírito descritivo, esse documento é um dos mais perfeitos da nossa Literatura, e ainda pelo que apresenta de elementos geográficos, etnográficos e etnológicos, numa profusão de exotismo tropical, é surpreendente. Seduz pela novidade do conteúdo, encanta pela dissecação reiterada do homem novo e da terra nova – e, acima de tudo, vale pelo que tem de humanismo, no seu sentido mais profundo, e de experimentalismo, fundindo, portanto, num conjunto significativo as tendências histórico-culturais que estigmatizaram a Renascença.

A fauna, a flora e todos aqueles elementos que assinalam a presença humana nessas terras de Vera Cruz – aí vivem na relação de Pêro Vaz de Caminha, revelando a faceta universalista da alma do português que, rompendo os fortes grilhões de uma individualidade território-cultural, se abalançava ao alto encargo de colonizar e civilizar o povo inculto e selvagem. Existe, assim, como parte integrante desse espírito universalista, uma ânsia de novidade que já se encontra plenamente satisfeita na carta de Caminha, quando este nos descreve em toda a sua pujança natural e selvática uma flora exuberante, uma fauna exótica e, sobretudo, ao detalhar a individualidade física (e até psicológica) do nativo tropical.

Bom observador e realista, Pero Vaz de Caminha frisa «não porei aqui mais do que aquilo que vi e me pareceu.» (1)
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O primeiro elemento que ressaltou e feriu a sensibilidade do autor (por ordem de observação) foi o vegetal: (... topámos alguns sinais de terra os quais eram muita quantidade de ervas compridas, a que os mareantes chamam botelho, assim como outras a que dão o nome de rabo-de-asno. E, quarta-feira seguinte, pela manhã topámos aves a que chamam fura-buchos. [...] Dali avistámos homens que andavam pela praia, obra de sete ou oito, segundo disseram os navios pequenos, por chegarem primeiro.»

Como pudemos reparar, só finalmente se avistou o elemento humano. Este – o primeiro contacto com a novidade do mundo desconhecido que era o território brasileiro. Evidentemente que as descrições dos elementos referidos se interpenetram mais desenvolvidamente ao longo da narrativa de acordo com a sua pertinência e oportunidade.

De ordem botânica, as referências são raras, e apenas espooradicamente se nos atesta a exuberância da vegetação («... não podíamos ver senão terra com arvoredos»; «... esse arvoredo que é tanto, tamanho e tão basto» e a existência de espécimes vegetais, como a palmeira e os palmites; o «inhame»; os ouriços verdes do urucú e os seus grãos vermelhos que, uma vez esmagados, serviam de tinta com que o nativo se pintava; as canas, usadas para pontas de setas – sem falar no já citado «botelho» e no «rabo-de-asno», únicos elementos de vegetação marítima.

Da fauna também pouco temos a dizer. Caminha surpreende-se especialmente com a abundância e diversidade das aves: papagaios coloridos, rolas, pombos e pegas são elementos que se fixam na sua retina. (Escusado será dizer que as penas coloridas e utilizáveis eram preparadas devidamente para uso dos indígenas, desde as armas aos sombreiros).

Mas de todo esse impressionismo naturalista, como elemento mais significativo e gostosamente observado, surge o habitante do novo mundo com todas as suas condições físicas e psicológicas que não escaparam ao relator. E neste campo, afirma-se que P. V. de Caminha se antecipou admiravelmente a investigações posteriormente realizadas no âmbito da cultura tropical.

Para o Lusitano mareante, sem dúvida que a descoberta mais apreciada era a do homem novo. E as transmutações comerciais e humanas não se faziam esperar. De um lado, o primitivismo das «continhas brancas, miúdas»; do «sombreiro de penas de ave»; dos arcos com setas. Do outro, a civilização, condensada nas «carapuças de linho», nos «barretes vermelhos», nas camisas diversas, etc..

A descrição física do aborígene é especificada: «A feição / 20 / deles é serem pardos, maneira de avermelhados, de bons rostos e bons narizes, bem feitos. [...] traziam os beiços de baixo furados e metidos neles ossos brancos e verdadeiros, do comprimento duma mão travessa [...]. Metem-nos pela parte de dentro do beiço; e a parte que lhes fica entre o beiço e os dentes é feita com roque de xadrês [...]. Os cabelos são corredios». Mais à frente: «...os corpos seus são tão limpos, tão gordos e formosos, que não pode mais ser». Eis aqui uma análise «in loco» do tipo físico do indígena, nos seus aspectos mais distintos. A mulher surge-nos em toda a sua pureza natural e a sua feição mais típica é o facto de andar «com um menino ou menina ao colo, atado com um pano [...] aos peitos, de modo que as perninhas lhe apareciam. Mas as pernas da mãe e o resto não traziam pano algum».

Psicologicamente P. V. Caminha, sintetizando, diz que os indígenas lhe parecem «gente bestial, de pouco saber e por isso tão esquiva». Quase no fim, e mais familiarmente, afirma: «...esta gente é boa e de boa simplicidade». De um modo geral, podemos fixar que este homem novo é naturista (vive em íntima dependência da natureza e naturalmente), é ingénuo e inocente («...sem coisa alguma que lhes cobrisse suas vergonhas») e imitador.

As relações humanas entre o português civilizado e o primitivo não podiam ter sido mais amistosas, pelo que vemos na relação, embora inicialmente a desconfiança e timidez perturbassem ligeiramente os contactos e os tornassem um pouco esquivos. Mas a familiaridade, o contacto mais íntimo, a sinceridade da nossa alma efusiva – não enganaram o selvagem, que vai reconhecendo progressivamente no recém-chegado uma superioridade humana e objectivos dignos. A prova é que, de cada vez que os grupos de indígenas assomavam à praia, a pouco e pouco eles iam abandonando os seus instrumentos de defesa. A expressão máxima dessa humanidade de relações encontra-se na indiscriminação e boa vontade com que europeus e indígenas se auxiliavam mutuamente e no gáudio recíproco com que se divertiam, dançando ao toque da buzina ou da gaita. É Caminha quem nos conta: «levantaram-se muitos deles, tangeram corno ou buzina e começaram a saltar e a dançar um pedaço». Mais à frente, e referindo-se ao marinheiro Diogo Dias, o autor prossegue: «E meteu-se com eles a dançar, tomando-os pelas mãos; e eles folgavam e riam e andavam com ele muito bem ao som da gaita»!

Quase no final da Carta, depois de analisar e deduzir todos / 22 / esses elementos do primitivo brasileiro, Pêro Vaz solicita a D. Manuel:

«E, segundo o que a mim e a todos pareceu, a esta gente não lhes falece outra coisa para ser toda cristã, senão entender-nos, porque assim tomavam aquilo que nos viam fazer [...]. E por isso, se alguém vier (do reino), não deixe logo de vir clérigo para os baptizar».

Não poderia haver contacto mais sublime, nem compreensão mais perfeita. A aceitação da nossa presença pelo nativo foi completa, pelo menos inicialmente.

E nós correspondemos, sem dúvida. Eis o significado da relação de Caminha.

Mário de Bastos Rodrigues

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(1) - Todas as transcrições da carta são feitas em português moderno.

 

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11-06-2018