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farol n.º 31 - mil novecentos e sessenta e nove ♦ setenta, págs. 8 e 13.

Palestra de João de Freitas Raposo

Mário Júlio Varela

Palestra de João de Frei/as Raposo, subordinada ao titulo Pedro Alvares Cabral e a Descoberta do Brasil.

Ex.mo Sr. Reitor
Ex. mos Srs. Professores
Minhas Senhoras e Meus Senhores
Caros Colegas

Um dos mais notáveis e significativos empreendimentos da nossa epopeia marítima foi, sem sombras de dúvida, o descoberto do Brasil, levada a cabo em 1500, logo um ano após o chegada a Lisboa da frota de Vasco da Gama. E não é de estranhar o curto intervalo que separa estes dois feitos, porquanto o primeiro determinou, em certa medida, aquele que se lhe seguiu.

Na verdade, regressado Vasco da Gama da sua viagem à Índia, reconheceu El-Rei que ele não conseguira aí estabelecer as necessárias relações diplomáticas, com vista ao exclusivo do comércio do Oriente. Não quer isto dizer que o valoroso capitão não tivesse diligenciado nesse sentido junto do Samorim de Calecute; todas as suas tentativas fracassaram, porém, devido às intrigas movidas pelos infiéis, receosos de que os portugueses se apoderassem do importante comércio oriental, que até aí dominavam.

Por isso, surgiu a necessidade de determinar os preparativos de novo empreendimento, a fim de que, mediante alianças com os naturais da terra e lutas contra os infiéis, fossem instituídas naquelas distantes paragens as directrizes de carácter político e económico que a metrópole pretendia.

Para chefiar a expedição, que apresentava características de certo modo singulares, escolheu D. Manuel um homem sem grandes conhecimentos náuticos, o que, à primeira vista, parecerá um absurdo.

No entanto, não poderia ser mais acertada a decisão do monarca, ao eleger Pedro Álvares Cabral paro o desempenho de tão árdua tarefa.

De facto, se atendermos aos traços fundamentais do seu carácter, logo veremos tratar-se de uma personagem dotada dos predicados exigidos por tão delicada missão.

Pedro Álvares Cabral nasceu em Belmonte, à volta do ano de 1467. Como afirma Jaime Cortesão, «era faustoso, amigo de grandezas e, como tal, possuidor de grande estado». Dotado de índole guerreira, era extremamente cauteloso nas suas atitudes. Homem de grande cultura, tinha em Álvaro Gil Cabral o seu terceiro avô, o que lhe dava um lugar entre a nobreza do Reino.

Todos estes atributos tiveram grande influência na escolha feita por D. Manuel, que procurava mais propriamente um diplomata do que um navegador, para assumir o comando da frota.

Encontrado o capitão, urgia dar-lhe as instruções necessárias, fazer a distribuição dos restantes cargos e apetrechar convenientemente as embarcações.
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Analisando cada um destes aspectos em particular, comecemos por ouvir o que nos diz Jaime Cortesão, na Sua obra «A Expedição de Pedro Álvores Cabral», acerca das instruções por este recebidas, das quais se conhecem «um regimento e um complemento redigido sob a forma de carta régia:» «começam essas instruções por determinar o alardo da partida e, a seguir, a maneira que se deve ter na vigia de fogo, no regimento dos mantimentos, com as chaves dos paióis, na repartição do vinho aos marinheiros, com as salvas e os sinais para a frota, durante toda a viagem e depois a derrota e acidentes possíveis, terminando com os objectivos da expedição, definidos e esmiuçados com previsão inexcedível».

Como se vê, nada fora votado ao esquecimento, quer no que respeita à viagem em si, quer no que se refere à vida a bordo.

O mesmo cuidado está também patente no apetrechamento dos navios, dotados dos últimos inventos militares e transportando as mais abundantes e variadas riquezas, como convinha ao espírito da expedição. Ali se viam as mais ricas peças de ouro e prata, os mais sumptuosos tecidos, os cofres encerrando «os justos e os espadins de D. João II, os cruzados e os portugueses de D. Manuel, os últimos dos quais já celebravam o descobrimento da Índia, as dobras castelhanas, os florins de Aragão, as coroas flamengas, os ducados de Veneza ou Roma e até a dobra mourisca ou valedia». (Jaime Cortesão, obra anteriormente citada).

No que respeita ao número das embarcações, quase todos os autores são unânimes em concordar  que a frota erra constituída por treze navios, mais precisamente, «des naus e três navios redondos», no dizer de Castanheda. Os capitães eram, além de Pedro Álvares Cabral, Sancho de Tovar, subcomandante – nau El-Rei –, Bartolomeu Dias, Nicolau Coelho, Pero de Ataíde – nau S. Pedro –-, Diogo Dias, Nuno Leitão – nau Anunciada –, e Aires Gomes da Silva, entre outros. Dos restantes cargos superiores conhecem-se apenas os nomes de dois pilotos, de igual número de escrivães, do chefe dos franciscanos que seguiam a bordo, de três leitores, de um médico, de dois intérpretes e, finalmente, de alguns homens de armas. Por este motivo, somos levados a concluir que muitos nomes se perderam na bruma do passado, tanto mais que, segundo Castanheda, a tripulação da armada era constituída por cerca de 1500 homens, que a tornavam «mui poderosa em armas e em gente luzida», como afirma João de Barros.

Como é do conhecimento de todos, o problema da intencionalidade da viagem de Pedro Álvares Cabral tem sido motivo de forte controvérsia. Na verdade, se alguns sustentam que tal acontecimento se deu por capricho do destino, outros afirmam categoricamente que já havia noticia anterior das terras de Vera Cruz. De que Iado se encontra a razão? – eis uma pergunta que formulo na esperança de que, um dia, os estudiosos encontrem para ela uma resposta tanto quanto possível / 10 / acertada. Por este motivo, limitemo-nos a analisar o empreendimento, baseados num manuscrito de precioso valor documental, a Carta de Pêro Vaz de Caminha, de 2 de Maio de 1500.

Que cargo desempenhava Pêro Vaz na expedição? As opiniões, sobre o assunto não são unânimes. Por exemplo, os depoimentos de Castanheda e de Damião de Góis dizem-nos que Caminha seguia a bordo como escrivão da feitoria de Calecute, o mesmo sucedendo com Gonçalo Gil Barbosa. Outros, como Pereira da Costa, acrescentariam ainda a esse cargo o de escrivão da armada. Jaime Cortesão, num estudo aturado que fez sobre o assunto, concluiu: «Em conjunto a presença de Caminha a bordo da capitânia e a substância de auto E diário da missiva; a participação de Caminha com Nicolau Coelho E Bartolomeu Dias na expedição do dia 25; e o singular abandono a que votou a Carta no único dia em que permaneceu a bordo e, por consequência, mais facilmente a poderia redigir, nos convenceram de que ele era escrivão, pelo menos, da capitânia de Cabral». Tomando a posição mais prudente, poderei, pois, afirmar que Pêro Vaz era escrivão, cabendo aos eruditos dizer se o era da feitoria de Calecute, da armada ou apenas da nau capitânia.

Que nos diz então a carta?

No domingo, dia 8, depois de ouvida a missa na Capela de Nossa Senhora de Belém, formou-se um cortejo, que conduziu Pedro Álvares Cabral ao batel que o havia de levar a bordo. Nele tomaram parte o bispo de Ceuta, que celebrara a referida cerimónia, o Rei, que seguia ao lado do capitão, ambos debaixo de um pálio, a Corte e, finalmente, o povo. Chegados à praia do Restelo, Pedro Álvares e os restantes capitães, beijada a mão a EI-Rei, tomaram lugar nos batéis, ao som das trombetas e outros instrumentos que, ruidosamente, se faziam ouvir. O colorido das bandeiras e colchas das embarcações, destacando-se no azul do céu e do rio, procurava dar um tom festivo ao quadro grave e comovente a que se assistia, e que será desnecessário referir.

Ao fim da tarde, levantou-se um vento forte que, sendo desfavorável, obrigou a um adiamento da partida, a qual só veio a realizar-se decorridas 24 horas sobre este incidente.

No dia 14, sábado, como refere a Carta de Caminha, «nos achamos amtre as Canareas, mais perto da gram Canarea; e aly andamos todo aquele dia em calma, a vista d'elas, obra de 3 ou 4 legoas.»

Volvidos 8 dias, a 22, por conseguinte, foram alcançadas as Ilhas de Cabo Verde e, na manhã seguinte, deu-se por falta da nau de Vasco de Ataíde, pelo que Pedro Álvares Cabral imediatamente ordenou a sua busca. Perdidas as esperanças de recuperar o navio transviado e retomando a armada a sua rota, foi avistada terra, o que não constituiu grande surpresa, na medida em que já há algum tempo vinham / 11 / a ser observados sinais indicativos da sua aproximação: abundância de algas e aves marinhas. Estava-se então a 22 de Abril de 1500.

A primeira visão de terras do Brasil é-nos narrada deste modo por Caminha: «e neste dia, o Oras de bespera, ouvemos vista de terra, saber: primeiramente d'hum grande monte muy alto e redondo, e d'outras terras mais baixas, ao sul d'ele, e de terra chãa, com grandes arvoredos, ao qual monte alto o capitam pos nome o monte Pascoal, e na terra a terra de Vera Cruz». Se por uns breves momentos deixarmos o nosso espírito trilhar os caminhos da imaginação, poderemos calcular o sem número de emoções que perpassou na mente dos nossos marinheiros, ao avistarem um território que lhes era, pelo menos aparentemente, desconhecido.

Só, porém, no dia seguinte a frota se dirigiu para terra, ancorando a meia légua desta, em frente à foz de um rio. Por ordem de Pedro Álvares, desembarcou então Nicolau Coelho, que, ao chegar à praia, se viu cercado por um grupo de 20 indígenas, armados com arcos e flechas. Depois de os apaziguar e reconhecendo a impossibilidade de estabelecer uma conversação, o navegador trocou presentes com eles, fomentando deste modo as primeiros relações amigáveis com os naturais da terra.

Sexta-feira de manhã, em virtude do vento forte que soprara durante toda a noite, a armado partiu em busca de local seguro para fundear. Descoberto este e aí ancoradas as embarcações, foi enviado a terra Afonso Lopes, para explorar o «arreçife» e o porto. Quando regressou à capitânia, já de noite, fazia-se acompanhar de 2 indígenas, descritos do modo seguinte por Caminha: «A feiçam d'eles he seerem pardos, maneira d'avermelhados, de boos rostos e boos narizes bem feitos; andam nuus, sem nenhuña cobertura; [...] traziam ambos os beiços de baixo furados e metidos por eles senhos osos d'oso bramcos de compridam de huña maão travessa e de grosura de huum fuso d'algodam, e agudo na ponta coma furador; [...] os cabelos seus sam coredios, e andavam trosqujados de trosquja alta [...] e rapados ataa per cima das orelhas... No que respeita aos seus costumes, acrescenta o autor da Carta: «e nom fezeram nenhuña mençam de cortesia, nem de falar ao capitam, nem a njmguém» e, mais adiante, «entam estiraran se asy de costas na alcatifa a dormir sem teer nenhuña maneira de cobrirem suas vergonhas». Como facilmente se depreende, era notório o estado atrasado de civilização dos naturais do Brasil.

No domingo de pascoela, 26 de Abril, por determinação de Pedro Álvares Cabra!, foi rezada missa no ilhéu da baía onde a frota estava ancorada. A seguir houve pregação pelo celebrante, o padre frei Henrique. A estas cerimónias assistiram, não só os nossos navegadores, mas também bastantes indígenas, alguns dos quais, terminada a missa, exteriorizaram os seus sentimentos saltando e dançando ao som dos instrumentos que traziam. Esta sua participação espontânea nas cerimónias / 12 / que se estavam a realizar compreende-se facilmente se tivermos em conta o seu carácter simples e ingénuo. Não se lhe deve, pois, atribuir demasiado significado.

Depois de uma breve refeição, dirigiram-se os capitães à nau de Pedro Álvares Cabral para se discutir o modo como deviam ser mandadas notícias da descoberta ao Rei D. Manuel. Tendo todos concordado que as novas seguiriam pelo navio dos mantimentos e mais ainda, que seria inútil capturar indígenas pela impossibilidade de os compreender, dirigiram-se para terra em seus batéis.

Nos dias seguintes, segunda e terça-feira, com as regulares idas a terra, foram-se estreitando as relações dos nossos com os naturais, que se mostravam afáveis e hospitaleiros, como confirmaram os degredados enviados a uma aldeia indígena para colherem noticias.

O dia de quarta-feira foi passado a bordo por ordem do capitão, a fim de ser despejado o navio dos mantimentos. A estranha sobriedade de Caminha ao relatar o que se passou nesta data, leva-nos o pensar que estaria ao serviço de Pedro Álvares, na sua qualidade de escrivão da capitânia...

Na quinta-feira, como consta da Carta, chegados os nossos à praia, indo em busca de lenha e água, achou por bem o capitão que se fosse beijar a cruz de madeira feita na antevéspera, a qual estava encostada a uma árvore, para ser erguida no dia seguinte.

Os indígenas, incitados pelos nossos a imitá-los, correrem também a beijá-la, o que permitiu a Caminha formular a hipótese da sua fácil evangelização, logo que se tornasse conhecida a sua Iíngua.

Atentemos agora no que ele nos diz relativamente ao dia que se seguiu, sexta-feira, 1 de Maio, véspera da partida. Começa por se referir à colocação da cruz, aludindo depois à celebração de uma missa pelo já citado padre frei Henrique. À cerimónia assistiram respeitosamente inúmeros indígenas, que procuravam imitar os movimentos dos nossos.

Entre eles é destacada a figura de um homem de cerca de cinquenta anos que, na altura da comunhão, quando alguns dos seus se retiravam, «acenou com o dedo para o altar, e depois mostrou o dedo para o ceo coma que lhes dizia alguna cousa de bem; e asy o tomamos». Terminada a pregação, que teve lugar depois da missa, foram distribuídos pelos indígenas crucifixos de estanho, que o padre Henrique, sentado junto da cruz, colocava ao pescoço de cada um. Na descrição destas breves passagens transparece o ideal profundamente religioso que animava os nossos navegadores na empresa das descobertas. O desejo de evangelizar novos povos estava bem presente no espírito daqueles homens valorosos, que não se poupavam a esforços para verem realizados os seus intentos.

De igual modo não lhes é estranho o nobre desejo de criar laços de amizade com os naturais. A atestá-lo, vemos que na refeição que a / 13 / bordo se seguiu, tomaram parte, convidados pelo capitão, o homem de 50 anos a que há pouco me referi, bem como um irmão seu.

No seguimento da sua Carta, Pêro Vaz, depois de reforçar a ideia anteriormente apresentada acerca da evangelização dos indígenas, informa EI-Rei D. Manuel que em terra ficam dois degredados e igual número de grumetes, estes últimos, porém, fugidos durante a noite. Faz depois uma descrição pormenorizada das terras de Santa Cruz, nos seguintes moldes: «Esta terra, senhor, me pareçe que da pomta, que mais contra o sul vimos, atra outra pomta, que contra o norte vem, de que nós d'este porto ouvemos visto, sera tamanha que avera neela bem 20 ou 25 legoas por costa. [.. .] De pomta a pomta he toda praya parma muito chaã e muito fremosa: pelo saartão nos pareceo do mar mujto grande porque, a estender olhos, nom podiamos veer se nam terra e arvoredos, que nos pareçia muy longa terra. Neela ataa agora nom podemos saber que aja ouro nem prata, nem nenhuma cousa de metal, nem de fero, nem lho vimos; peroa a terra em sy he de muitos boos aares asy frios e temperados como os d' entre Douro e Minho [...]; agoas som muitas infindas; em tal maneira he graciosa que querendo a aproveitar, darseá nela tudo per bem das agoas que tem; pero o milhor fruito que nela se pode fazer me pareçe que será salvar esta jente; e esta deve seer a principal semente que Vossa Alteza em ela deve lançar [...]; Nestas últimas linhas, mais uma vez está presente o carácter religioso das nossas primeiras expedições.

E deste modo termina Pêro Vaz a sua preciosa missiva, trazida para Portugal pelo navio de Gaspar de Lemos, a mandado do capitão, antes da partida rumo ao Cabo da Boa Esperança.

O assunto exposto é, sem dúvida, um resumo do que se pode afirmar com segurança sobre a descoberta do Brasil. Tudo o mais são conjecturas, pelo que não me alongarei em considerações.

E ao terminar, queria agradecer e paciência com que escutastes estas minhas breves palavras, que são o meu modesto contributo para as Comemorações Cabralinas.

 

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11-06-2018