José Manuel de H.
Briosa e Gala
(4.º ano)
CHAMAVA-SE Manuel o pobre rapaz; era magro e anémico e vivia com
uma madrasta
numa frágil cabana para as bandas da serra. Tinha dez anos quando
lhe morreu o pai, tuberculoso, choque brutal e atroz, de que
sempre ficara lesado. Apagara-se a última
chama que o acalentava e lhe dava ânimo para seguir a tortuosa
estrada da vida. A mãe, essa, nunca a conhecera, pois morrera de
parto.
Era agora um rapaz dos seus quinze anos e vivia amargurado com
os maus tratos que a madrasta lhe infligia.
Até que um dia, com o corpo mal tratado de vergastadas
desenfreadas, resolveu fugir. Assim andou durante
uns anos, vagueando sem destino, como um saltimbanco, sendo por
vezes obrigado a pedir e a furtar, para sobreviver, para não ser
arrastado por essa corrente tumultuosa dos que morrem esfomeados,
sem uma côdea para iludir a fome. Mas, dentro dele, havia uma
sensibilidade espantosa e, sem saber como, fez-se pintor
e fez-se homem. Enamorara-se profundamente de uma rapariga, cujos
pais, ricos
e orgulhosos, ao saberem da sua condição social, se mudaram sem
deixar vestígios, deixando-o a ele uma vez mais só na vida, com
uma lembrança do seu amor: um gorro que ela lhe dera, quando se
conheceram. Um dia, encontrou numa rua escura um
triste e escanzelado cão, um
vira-lata, sem coleira, sem ninguém, mas de olhar tão lânguido,
tão doce que o artista não se conteve em o afagar e murmurou-lhe:
«Desafortunado» − lastimou − não passas deu um miserável como
eu... Anda, levanta-te, amigo! Quem sabe se juntos não saberemos
sofrer com mais resignação?»
E o tempo foi passando e tornaram-se dedicados amigos,
compartilhando as privações e as dores, penando juntos. Mas eis que
um dia tudo se modificou! A Fortuna, que até então lhe era
desconhecida e lhe virara a cara arrogante e enjoada, estende-lhe os braços, sorridente, convidando-o
a subir a tão alto pedestal, até então inacessível onde a Glória se
ajoelhou humilde e culpada a seus pés. Mas, para o
pobre cão, infelizmente, nem
só a vida lhe mostrou uma
nova face... O seu dono
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(Manuel?! Sim! ele o próprio...) já não era o mesmo companheiro dedicado e amigo de
outrora! Foi-o afastando gradualmente de si e agora sentia náuseas
de o ver velho e sujo, e com o pêlo a cair, era atrozmente
castigado, se o procurava acompanhar. Meteram-no depois num quarto
frio e escuro, onde tinha como companheira as trevas, e
periodicamente um osso duro e branco, cuja carne certamente servira
aos dentes de outro cão. E um dia, sentindo que as forças o
abandonavam, arrastou-se ao quarto do pintor, a quem queria ver
pela última vez. Este, mal o viu, berrou contrariado: «Ainda não
morreste, tinhoso?!» − mas logo mudando o tom da voz, simulou
meigamente: «Coitado! como estás acabado, meu velho! Vamos dar um
passeio. Vem...»
Calmamente se foram aproximando das águas turbulentas do rio que
passava próximo − ele, hipócrita, assobiando, o outro, triste como a
noite a quem roubaram o luar... Chegara o momento crucial, o
último: o pintor atara-lhe à
coleira uma pedra a servir de lastro. O cão, cheio de mágoas,
serenamente compreendeu que o seu fim estava próximo. Subitamente o
artista atirou o cão nas águas escuras. Ao dar-lhe o último pontapé, porém, caíra-lhe na corrente o gorro que trazia, esse gorro,
prova de um amor desinteressado, sublime. O artista, cego de
raiva, gritou de dor: «Maldito animal.» Perdia o seu mais valioso
e insubstituível tesouro por sua culpa. Melhor faria se o tivesse
envenenado. Deitou-se irritado e nervoso. Não podia dormir. E o sol
aparecia no horizonte, principiando os primeiros raios da fresca
manhã. Então, sente bater paternamente à porta, quase que um
arranhar. Ergueu-se e foi abrir. Qual o seu espanto, ao ver ali,
prostrado a seus pés, encharcado e exânime, o cão; este olhou-o com
a mesma luz doce e resignada nos olhos, que se fecharam para
sempre, ao deixar cair o gorro do pintor!
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