Ana Maria Valente
(7.º ano)
Era uma verdadeira
noite de Inverno... Lá fora a neve caía silenciosamente. As árvores,
nuas e tristes, arrepiavam-se com o vento gélido, cortante, que deslizava por entre os ramos.
Os bancos estavam desertos. Desertas estavam as áleas, a avenida
principal, deserto tudo o que estava lá fora. Da janela via-se,
ainda que mal, porque a neve caía cada vez mais densamente, o
jardim, em tempos tão animado, e que não era mais que um esqueleto
da Primavera. Os esqueletos são todos, todos feios, horripilantes;
os jardins desertos, numa noite de Inverno como aquela, são também
todos feios e horripilantes. E tão tristes... tão tristes que
transmitem a sua tristeza a quantos se atrevem a passear os olhos na
sua aridez.
Ninguém na rua. Nem sequer um pobrezinho. Seria talvez mais poético,
mas menos real. Os pobres não saem quando a neve cai. Encolhem-se no
seu canto – seja ele o mais miserável – e não se atrevem sequer a dar um passo.
A cortina da janela baixou-se lentamente. Alguém tinha abandonado o
seu posto de observação. Dentro havia uma braseira que parecia tudo
querer consolar com o seu calor, tanta era a força das brasas.
Bastava uma leve vista de olhos e imediatamente se notava o
conforto, o aspecto acolhedor daquele compartimento. Mas sobre tudo
isso pairava uma enorme solidão que tirava todo o encanto às coisas
mais belas. Sentou-se junto à braseira, olhos entrelaçados nas
brasas, mãos caídas no regaço, abandonadas. Conforto, calor, para
quê? Se era mais pobre que o mais pobrezinho... Se não tinha ninguém
a quem dizer: « Olha como a neve cai!...» Se naquela noite, a
quem todos chamavam de Natal, não compreendia o significado dessa
palavra, não acreditava nessa criança que – diziam – tinha nascido
há muito, num lugar chamado Belém. Crenças sem
fundamento; nada havia de certo, se não o que realmente existe. Que
fundamento, que provas tinham para acreditar em tais coisas? Como
poderia acreditar que existia esse Deus?
Os olhos continuavam fitos no além. De tudo, uma única coisa era
certa: estava só, e por isso, sentia-se a pessoa mais infeliz da
humanidade. Preferira ser um
humilde pobrezinho queixando-se das agruras do Inverno,
/ 9 / enganando a fome com
uma côdea de pão, sorrindo e conversando com os seus, acreditando
que aquela era a noite de Natal.
Levantou-se. Foi novamente até à janela. Afastou a cortina e mais
uma vez contemplou o jardim. Deserto sim,
mas tão diferente... As árvores já não tremiam, o vento não uivava
e os ramos projectavam esguias sombras sobre o pavimento. A neve
cessara de cair e o céu estava límpido, maravilhosamente ornado de
estrelas que brilhavam como diamantes. Havia uma serenidade.., um
silêncio... Abriu a janela. Já não estava frio, não se sentia pelo
menos. Três mendigos passaram conversando as suas vidas. Olharam
para a janela, acharam estranho aquela figura que nela se recortava
e um arriscou: «Uma esmolinha por
amor do menino que nasceu.» Ouviu-se tilintar algo lá em baixo e
depois um sorriso cheio de agradecimentos. Fechou a janela, voltou
à braseira e de novo, olhos entrelaçados nas chamas, compreendeu
então que Alguém muito importante nascera, pelo menos na sua alma.
Até a natureza tinha mostrado alegrar-se com o nascimento do Menino,
tinha procurado mostrar um
semblante mais acolhedor.
Abriria, pois, também a sua alma, para que nela penetrasse a luz da
Estrela e o cântico do Anjo.
Seria uma noite maravilhosa... Já não estaria só. Menino Deus,
quantos viriam festejar junto daquela braseira a sua primeira noite
de Natal!... |