Maria Teresa
ANOITECIA
naquela ruela estreita e suja dos arredores da grande cidade. A
miudagem, rapazitos de rostos magros e macilentos, que todo o dia
jogara com a negra bola de trapos, afastava-se discutindo
animosamente. O último deles desapareceu lá ao fundo, na curva da ruela. Ficou o silêncio! Os raros
transeuntes passavam, embrenhados no seu mundo, colando-se ao muro
corroído, sem prestarem atenção ao quadro a que tristemente se
haviam habituado. Pelas velhas chaminés saía um fumo negro que se
dispersava no cinzento do céu. Pelas frinchas das portas
esgueirava-se a luz
trémula dos candeeiros de petróleo. Da taberna, ali em frente,
evolava-se o característico cheiro a vinho e pela porta escancarada via-se
tremular uma luz indecisa, que definia mal os contornos dos objectos. A
noite descera por completo e dera à ruela um ar vago, feito de negras e
hesitantes sombras. Um ar de pobreza, de sofrimento moral e físico,
que se respira nestes bairros de ruas estreitas, de velhas hipóteses
de casas e de tabernas que rescendem a vinho e a palavras obscenas,
nestes bairros míseros, dos arredores das grandes e prósperas
cidades.
Ao longe, da curva da ruela, envolto nas tristes sombras da noite
que assombra o bairro pobre, surgia um vulto. Caminhava lentamente,
com a cabeça pendida para o peito. Aproximava-se. Podia-se adivinhar
agora a juventude que se ocultava debaixo do rosto magro e de maxilares salientes, que obstinadamente cravava no chão. Calçado de
pesadas alpercatas, os seus passos eram como que longínquos acordes
de uma marcha fúnebre. Uma madeixa de negros cabelos caía-lhe para
os olhos febris e logo dois dedos magros, muito compridos, a
retiravam com um gesto lento e distraído.
Lá adiante parou em frente daquela casa de paredes rachadas.
Olhou a janelita onde faltavam dois vidros e pareceu indeciso. A madeixa de negros cabelos caiu-lhe novamente para os olhos, onde se
lia
todo um poema de dor e o rapaz jovem, de rosto coberto de velhas
rugas, afastou-a, agora com um melancólico gesto de cabeça. Quanto
tempo
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esteve assim, pensativo, a alma a transbordar dor e indecisão?
Finalmente a mão de dedos magros e muito compridos deu uma pancada
tímida na
porta da casa velha. Momentos que parecem séculos! O rapaz sofre.
Levanta o rosto magro e com os olhos a arder em febre fixa o céu
cinzento. Não reza. Sente-se que o não consegue fazer. Mas há qualquer
coisa nele, qualquer coisa que me sobressalta e me parece uma prece.
Nos olhos febris que continuam a fixar a nudez inquebrável do céu
negro
acinzentado, brilham duas gotas de orvalho! Oh, aquele rosto magro
onde se advinha o contorno dos ossos, aquele rosto magro em cujo
olhar brilham a febre e as lágrimas, aquele rosto magro é a oração,
a oração
que os lábios, vincados pelo sofrimento, não ousam pronunciar.
Lentamente, muito lentamente a porta abre-se. Uma rapariga
bastante nova aparece na soleira. O olhar era o mesmo do rapaz.
Olhar de febre. Febre e ânsia. Olhou-o nos olhos e a ânsia desapareceu dos seus. Ficou a febre. Febre e lágrimas. Ficaram assim, sem
palavras, a olharem-se indefinidamente. Por fim a rapariga recuou um
passo e o rapaz entrou. Enquanto a mão dela empurrava brandamente
a porta, os seus lábios mal ousaram formular a pergunta que ambos
temiam, porque a ambos dilacerava.
– Então?
E a resposta veio seca, dolorosa, pôr fim ao último reduto de
esperança que por algum tempo se aninhara na alma da rapariga pálida.
– Nada!
O rapaz tinha dado dois passos na semi-obscuridade do pobre
aposento apenas iluminado pela luz mortiça de duas achas que se
extinguiam lentamente na lareira. Ela ficara imóvel, junto da porta, de
mãos
crispadas uma na outra. Assim estiveram mudos. cada qual egoistamente embrenhado na sua dor, indiferentes à escuridão que os rodeava
e ao tempo que não pára nunca, finas horas de dor que as almas mais
se aproximam e aprendem a amar-se melhor, com um amor mais sublime
e mais espiritual. Também eles, embora sem palavras, sabiam que as
suas almas se compreendiam melhor e se amavam mais, porque a mesma
dor lhas fazia sangrar. Cada qual sofria mais ainda, por não poder
arrebatar a dor do outro e curar-lhe a alma miseravelmente chagada.
São os passos da rapariga que quebram o silêncio que havia invadido
o
pobre aposento. Ela vai ao encontro dele. Meigamente, como o faria
a mãe se vivesse ainda, pousa-lhe a mão de dedos delgados no ombro
magro.
– Ouves? Olha-me. Isso, assim mesmo...
Nos olhos dela havia lágrimas, lágrimas que renhidamente se
esforçava por conter. Por segundos sentiu-se vacilar, mas, reunindo
todas as forças, prosseguiu:
– É dura a luta em que nos debatemos. Mas teremos o direito
de perder a esperança? Que importa que hoje não tenhamos comido, se
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amanhã encontrarmos a solução que procuramos? Que nos pode importar
tudo o resto, se somos novos, se nos temos um ao outro?
Dos olhos da rapariga caíram duas lágrimas que a mão magra do rapaz
limpa num gesto fraternal. Os lábios trémulos, a voz embargada por
um soluço, ela pergunta ainda:
– Prometes que amanhã procurarás ainda com mais insistência,
percorrendo palmo a palmo as longas ruas da cidade, com mais
esperança, com mais afinco, prometes meu bom irmão?
E enquanto nas mãos magras segurava as da rapariga, os lábios
vincados pelo sofrimento disseram:
– Prometo! |