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farol n.º 17 - mil novecentos e sessenta e quatro ♦ sessenta e cinco, págs. 5 a 8.

Tronco em flor estende os ramos

Carla Campos Sá
(7.º ano – Letras)
 

DE há muito conheço e venho cantando a Marcha da Mocidade Portuguesa. Pois só agora, mea culpa! me foi dado saber o nome do autor das estrofes de clangor heróico, frementes de juvenil entusiasmo, estuantes de seiva moça e vibrantes de fé nos destinos da Pátria! Só agora, ao tomar conhecimento da morte de Mário Beirão, soube caber-lhe a paternidade dos versos que, muito criança, aprendi a cantar. Mas, pergunto, na ignorância em que tão longamente permaneci, terei estado só? Ou, pelo contrário, muito e muito bem acompanhada? E, já que estou em maré de confissões, acrescentarei mais esta: não foi há muitos anos que vim a conhecer o nome do autor da letra do nosso Hino Nacional (quem estiver de todo inocente atire a primeira pedra...). A razão do facto? Talvez esta: o Hino Nacional faz parte do comum património do povo português. Mal aprendem a falar, logo as crianças lusas o entoam, aprendem a senti-lo, para chegarem à conclusão de que já o traziam no sangue antes de saberem balbuciá-lo. Que importa, pois, a autenticação duma rubrica. Se cada um de nós sente tratar-se de algo muito seu? Esta a forma espontânea de sentir e reagir, própria das almas singelas e puras. que a febre de erudição ainda não contaminou – as almas das crianças, a alma do povo... Admira, então, que, ao tornar-se o hino da Mocidade Portuguesa património nacional, tenha cortado o cordão umbilical que o vinculava a um progenitor perfeitamente individualizado, e passe a ter vida própria e à parte?

Por certo que já ouvira falar de Mário Beirão como dum dos componentes dessa galáxia que gravitava em torno do astro rutilante que foi, e ainda é, Teixeira de Pascoais. Mário Beirão está, realmente, integrado no movimento saudosista. Isto sabia-o eu. O que já não sabia era se continuava exilado cá na terra, ou se já partira para longe e se encontrava Além. «Talvez alguns críticos das gerações mais novas julgassem que Mário Beirão já tinha morrido havia muito quando souberam pelos jornais que ele só agora desaparecera... Talvez críticos, talvez, até poetas e decerto muito leitor anónimo» – escreveu Luís Forjaz Trigueiros em artigo publicado no «Diário de Notícias» a quando da morte de Mário Beirão, ocorrida em Fevereiro deste ano.

Sendo assim, que admira ignorasse eu o que outros com mais obrigação / 6 / de saber desconheciam igualmente? E porquê semelhante desinteresse da parte de críticos e até de poetas? Diz David Mourão Ferreira que «Mário Beirão não viu durante a vida o seu talento poético e o vero valor da sua obra devidamente reconhecido». E mais adiante explica que «de tal silêncio é ele em grande parte responsável, mercê da fidelidade corajosa e discreta, que sempre soube conservar perante si próprio. Não se admiram muito, em nosso tempo, exemplos como este de estrutural fidelidade». É mais ou menos o que diz, também, Luís Forjaz Trigueiros: «Escolheu Mário Beirão em vida o discreto silêncio dos que preferem caminhar sozinhos – Não culpemos, portanto, ninguém nem coisa alguma se a sua poesia não mereceu até agora não direi já uma fácil abertura de crédito nas tabelas críticas – que pouco interessam ao verdadeiro artista – mas a hierarquização histórico-literária devida. Teve o poeta as mais altas consagrações, os mais lisonjeiros prémios e através dumas e doutras passou como se nada fosse com ele, vivendo em voz baixa um destino que só na obra não pode ser humilde». Depois de ler estas linhas, já me sinto menos envergonhada da minha ignorância a respeito daquele que as motivou. Sim, se à volta do poeta se erguera uma
muralha de silêncio, é para admirar que a sua voz não tenha chegado até mim? Mas o poeta que através das mais altas consagrações, «passou como se nada fosse com ele», devia ser um verdadeiro poeta, estruturalmente poeta. É que a poesia, muito mais que uma arte, é uma forma de existência. Por isso, ao verdadeiro poeta pouco importam o consenso, a aprovação e o louvor dos homens. A sua obra nasce duma necessidade intrínseca, tão premente como uma necessidade orgânica. A poesia é o modo de respirar do seu espírito. Faça ou não faça o gráfico dessa função, quer a registe quer não, confie ou não confie à palavra escrita o seu diálogo consigo próprio, com a Natureza e com Deus, no passado, no presente e no futuro – pois o poeta tem ao seu dispor a máquina do tempo –, não deixará de ser poeta em qualquer dos casos. Há, imagino que haja, poetas que não se realizam ou de cuja realização não temos conhecimento. E entre estes estarão porventura muitos dos maiores, pois terão vivido a poesia em tal profundidade, ter-lhes-á ela enchido tão completamente as vidas, que por ela se haverão por completo despojado de terrenas vaidades. Mas, ai! Essa poesia, que era a sua vida, morreu com eles! É um tesoiro sepultado em lugar inacessível, um tesoiro para sempre perdido, do qual os outros homens não beneficiarão jamais. Felizmente para nós, não é este o caso de Mário Beirão. A sua obra existe e fala por ele. No entanto, para mim, Mário Beirão era um pouco mais que um nome. Tinha de descobri-lo. Partindo, pois, à descoberta do poeta que nele existia, à minha descoberta do poeta, aventurei-me pelo «Mar de Cristo», história trágico-marítima ritmada pelo arfar das naus, o marulho das vagas, o redemoinhar louco do vento desconjuntando gáveas, velas e enxárcias! Sofri tormentas, naufrágios, perdições!

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Conheci os horrores da fome e da sede, a ardência do sol e da febre! Carpi saudades, e ouvi, na escuridão pressaga, o piar lúgubre de aves agoirentas! Ai! tudo, tudo passei! Exausta. ansiei pela terra firme. Só nela o tumultuar confuso das ideias viria a serenar, permitindo-me ver claro, dentro e fora de mim. E, em companhia do «Último Lusíada», aportei enfim à «Lusitânia». Devo dizer que não gosto do mar... Entristece-me, apavora-me, faz-me sentir infeliz!... Mas nem tudo é água tumultuosa na obra de Mário Beirão. Nela, terra e mar equivalem-se:

«A sombra de Camões rezando oitavas
Pelos meus olhos doidos passou.
Sonhos terrosos de charnecas bravas
Meu nocturno delírio os revelou;
Esfinge que o deserto contemplavas
Teu silêncio de pedra em mim falou».
 

Camões, «rezando oitavas» dos Lusíadas, – «poema feito de água», – leva-o a ver no «Mar de Cristo», «a nossa Lusitânia liquefeita». Mas isso não o impede de revelar os «sonhos terrosos de charnecas bravas» do seu Alentejo, grande e triste como ele, e de sentir, a par da agonia dos que «se fizeram à noite e ao mar», o drama de ganhões, maiorais e maltezes. «Quanto a mim – diz João Ameal – a personalidade de Mário Beirão, como poeta, desdobrava-se em três faces distintas – a do alentejano elegíaco, de estranho poder divinatório, a vaguear por entre seres e paisagens, a auscultar-lhes. numa exaltação, o mistério denso; a do épico evocador de vultos, dramas, grandezas nacionais, atento ao fragor das nascentes e aos temas culminantes da História dos Portugueses; a do místico, para quem a Natureza estava cheia de apelos e de presenças transcendentes... três faces distintas, um poeta verdadeiro...».

*

Percorrendo a obra de Mário Beirão, deparam-se-nos, a cada passo, palavras como estas: «indeciso», «vago», «Além», «Longes», «incerto». «cismas», «saudade», «adeus» e «aurora». Este vocabulário é herança do Saudosismo, a cujo espírito o poeta se manteve fiel, ao espírito que informou «essa notabilíssima plêiade que retomou, quase programaticamente, aquele interesse pela terra e pela história portuguesa, que constituía a dupla herança de Nobre e de Junqueiro», no dizer de Mourão-Ferreira, que acrescenta a seguir: «Fernando Pessoa observaria que, na altura do Ultimatum, «Junqueiro – o de «Pátria» e «Finis Patriae» – foi a face que olha para o futuro e se exalta»; e António Nobre foi a face que olha para o passado e se entristece». Poderemos dizer que esta equação herdou ao mesmo tempo a mágoa retrospectiva de Nobre e a prospectiva exaltação junqueiriana. Dentro dela, Mário Beirão terá sido sobretudo a face que olha para o Passado e se exalta...». Por isto / 8 / mesmo, porque «olha para o passado e se exalta», Mário Beirão, poeta de sempre, é muito particularmente o poeta da hora actual, em que os seus versos se carregam de tão profundo significado. Bem merece que a mocidade o conheça e o ame, que lhe decore os versos e se deixe penetrar bem da sua essência. Ele, em vida o «eterno ausente», perdido no «sonho lindo» em que visionava um Portugal maior, esteja agora presente, na hora decisiva em que a juventude é chamada a dar tudo por tudo, para nos mostrar o caminho e nos comunicar o seu entusiasmo, a sua exaltação, a sua fé:

«Cale-se a voz que, turbada,
Já de si mesmo se espanta;
Cesse dos ventos a insânia
Ante a clara madrugada
Em nossas almas nascida.


Nau de epopeia, a varar,
A longe, na praia absorta,
De novo faze-te ao mar!
Acesa de ébria alegria,
Soberba de galhardia,
Que o teu rumo é o verdadeiro!


O que aqui deixo é a singela homenagem duma jovem da hora actual, ao que soube ser jovem para além da juventude. E é também uma despedida, saudosa como todas as despedidas, mas cheia de esperança.

O «Farol», cujo fogo sagrado procurei ajudar a manter nos dois últimos anos decorridos, trazendo-lhe a migalha de alimento que podia dar-lhe, e lamentando mais não ter para lhe dar, o «Farol» continuará a brilhar, e a sua luz, tenho essa fé, continuará a alumiar os meus passos pela vida fora, pois levo comigo o facho que nela acendi.

Dizendo adeus aos que ficam, deixo-os sob a sombra tutelar de Mário Beirão – não podia deixá-los em melhor companhia. E eu poderia dizer que fechei com chave de ouro, se tivesse sabido usá-la convenientemente... Bem sei que não. Por isso, deixo a porta aberta. Mas, antes de afastar-me, quero fazer um apelo: Mocidade Portuguesa, vem desfilar, não direi perante o túmulo, o que pouco importa, mas perante o espírito de Mário Beirão, que está mais vivo do que nunca. E, cumprido o piedoso rito, partamos confiantes rumo ao Futuro, porque «querer é a nossa divisa...».

 

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08-06-2018