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farol n.º 15 - mil novecentos e sessenta e quatro ♦ sessenta e cinco, págs. 7 a 9.

Duas glosas a um mesmo mote

Carla Maria Campos Sá
(
7.º ano – Letras)
 
  Descalça vai para a fonte
Leanor pela verdura:
vai fermosa e não segura.
 
 

Leva na cabeça o pote,
o testo nas mãos de prata,
cinta de fina escarlata,
sainho de chamalote.
Traz a vasquinha de cote
mais branca que a neve pura:
vai fermosa e não segura.


Descobre a touca a garganta,
cabelos de ouro entrançado,
fitas de cor de encarnado,
tão linda que o mundo espanta;
chove nela graça tanta,
que dá graça à fermosura;
vai fermosa e não segura.
                                   (Camões)

A talha leva pedrada,
pucarinho de feição,
saia de cor de limão,
beatilha soqueixada;
cantando de madrugada
pisa as flores na verdura:
vai fermosa e não segura.


Leva na mão a rodilha,
feita da sua toalha;
com ua sustenta a talha,
ergue com outra a fraldilha;
mostra os pés por maravilha,
que a neve deixam escura:
vai fermosa e não segura.


As flores, por onde passa,
Se o pé lhe acerta de pôr,
ficam, de inveja, sem cor,
e de vergonha com graça;
qualquer pegada que faça
faz florescer a verdura:
vai fermosa e não segura.


Não na ver o sol lhe val,
por não ter novo inimigo;
mas ela corre perigo
se na fonte se vê tal;
descuidada deste mal,
se vai ver na fonte pura:
vai fermosa e não segura.
                       (Rodrigues Lobo)

Não há dúvida que o lirismo é uma constante da nossa literatura. Nem é de admirar, uma vez que ele constitui o fundo estrutural da sensibilidade lusíada. Foi porventura para lhe dar expressão que a doce fala galaico-portuguesa / s / começou a modelar os sons, «manselinho, manselinho», como o murmúrio do arroio por entre os seixos, ou o suspirar da brisa matutina. Com semelhante fada ao berço, a língua tinha de obedecer ao seu condão: chorar coitas de amor, ou «dar graça à fermosura», onde quer que a encontre: num palácio ou num casebre; de testa coroada ou de pé descalço; castelã que sonha, debruçada das ameias, num entardecer nostálgico, ou simples camponesa que vai à fonte, sobraçando o cântaro, e numa canção alegre, solta a voz clara na manhã ridente. Ontem, hoje, e sempre. E é quando despe o artifício, desataviada e pura, na sua beleza um pouco selvagem, impregnada dum aroma a flores silvestres, rescendendo ao rosmaninho e à urze do monte, é então que ela atinge uma graça incomparável, a sua verdadeira personalidade e a suprema beleza. É reparar em quantas obras primas a poesia de feição popular tem feito chegar até nós, desde os primitivos cancioneiros, em que um rei apaixonado compõe, diz-se, o primeiro cantar de amigo para a sua amada entoar, tangendo à tiorba, a fim de enganar a solidão e preencher de algum modo o vazio criado no seu coração pela ausência do «amigo» (ele, pelo menos, assim desejará...):

«Muito me tarda
O meu amigo na Guarda...»

Sensíveis à beleza singela de tais composições, vemos, em pleno Renascimento, os maiores expoentes do nosso classicismo cultivarem este género de poesia, a par da de carácter italianizante. Assim, as seduções e o requinte do «dolce still nuovo» não puderam destruir a força da atracção exercida pela beleza agreste e sadia das velhas trovas. É o que nos mostra o maior poeta do tempo, e o maior de todos os tempos – Camões. Ele, a personificação do Humanismo e do Renascentismo português, espírito espantosamente culto, conhecedor das literaturas antigas e modernas, enriquecido pelo comércio de Guidio, Virgílio, Horácio, e ainda de Tasso, Sannazaro, Bembo, Boscan e Garcilaso, ele, o aristocrata da expressão, não desdenha esquecer tudo isto, de quando em vez, pela despretensiosa redondilha, para trovar à boa velha maneira dos cancioneiros. E então, dá-nos delicadíssimas filigranas, como esse mavioso vilancete: «Descalça vai para a fonte...».

É curioso verificar que, no século seguinte, em pleno apogeu do barroco, Rodrigues Lobo, que na juventude cultivara o estilo gongórico, continua, todavia, e como ninguém no seu tempo, a tradição lírica camoniana, indo ao ponto de desenvolver motes já glosados por Camões, como acontece precisamente com o citado «descalça vai para a fonte». Claro, os dois não estão assim tão distanciados no tempo, e o facto apontado explica-se, talvez, por um certo número de disposições idênticas. Se bem repararmos, as trovas tradicionais de Camões não são de todo isentas de preciosismo, embora ténue e discreto. Por outro lado, em Rodrigues Lobo, este carácter precioso acentua-se, claro está (impossível subtrair-se à influência da época e do meio), mas ele reage quanto pode contra o formalismo vigente.

É certo que Rodrigues Lobo foi corajoso, para não dizer ousado, em / 9 / retomar os temas dum poeta da estatura de Camões. Mas a verdade é que não se saiu muito mal, pelo menos quando glosou o mote de que vimos tratando, pois não é fácil, à primeira vista, decidir a qual das duas aguarelas que encabeçam este trabalho, cheias ambas de frescura e de cor, dar a nossa preferência. Só depois de ler e reler muitas vezes uma e outra, a ponto de as saber já de cor, acabamos por eleger a versão de Camões, talvez por lhe acharmos mais cadência, graças a uma maior perfeição do verso. E, depois da longa divagação... lírica, passaremos a uma análise técnica.

Em Rodrigues Lobo, há alguns versos um tanto frouxos: «pisa as flores na verdura», «as flores por onde passa». Notam-se, ainda algumas colisões: «sustenta a talha», «faz florescer» «vai ver», além de que emprega duas vezes a palavra «verdura», para rimar com «segura», do terceiro verso do mote. Em Camões, há apenas um verso que não lisonjeia o ouvido: «mais branca que a neve pura», em cuja leitura descuidada pode haver cacófato. Há ainda, na nossa opinião, um vocabulário menos poético em Rodrigues Lobo do que em Camões: a «touca» agrada mais que a «beatilha», que também não gostámos de ver «soqueixada», e chocou-nos aquela «pegada», que nos pareceu demasiado material e grosseira. Tem muito mais graça o «sainho de chamalote» (embora não saibamos com precisão o que entender por «chamalote»), do que a «saia cor de limão» e a «fraldilha». Dizer que «chove nela graça tanta» é muito mais sugestivo, diz muitíssimo mais do que «faz florescer a verdura», ainda por cima com a aliteração. Mas tudo isto são pormenores técnicos, que não bastariam, porventura, para justificar uma referência, se outras razões não houvera.

Quanto a nós, Camões, nas duas únicas voltas com que glosou o mote, foi muito mais eloquente do que Rodrigues Lobo, que precisou do dobro das voltas para dizer menos. E isto porque Camões não quis senão sugerir, dar-nos, em poucas pinceladas de mestre, uma visão deliciosa. As suas tintas são «neve», «prata» e «oiro», em que melhor sobressai a nota vibrante da «escarlata». Rodrigues Lobo perde, a nosso ver, por ter descido ao pormenor demasiado concreto: a «beatilha soqueixada», a «rodilha feita da toalha». Camões fica-se pelo «vai fermosa e não segura», sem nos dizer onde reside a insegurança da moça, onde se esconde o perigo que ela corre, para no-lo deixar adivinhar. Para Rodrigues Lobo, o perigo é a vaidade que poderá sentir, se, ao chegar à fonte, vendo a sua imagem reflectida na água, compreender quanto é bela. A não ser que ele receie venha a fermosa Leanor a ter a sorte de Narciso... Mas nós imaginaríamos um perigo muito diferente...

Em suma, Camões inspirou-se, por certo, no original, numa Leanor autêntica, e Rodrigues Lobo no retrato que dela pintara Camões – é precisamente esta a diferença: a que existe entre o original e o retrato...

 

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08-06-2018