Acesso à hierarquia superior.

farol n.º 13 - mil novecentos e sessenta e três ♦ sessenta e quatro, pág. 21.

Retrato

M. I. C. F.

Uma das pessoas que mais me impressionou na minha vida alegre e despreocupada de estudante, foi uma senhora com quem convivi algum tempo.

Era alta e forte, com um horrível cabelo tingido de amarelo (pretendente a louro) airosamente encarrapitado no alto da cabeça. Deveria ter cinquenta e tal anos e era o que se pode chamar o tipo de solteirona por excelência. Não obstante ter esta idade, ela nunca conseguiu abdicar dos seus saudosos e juvenis trajos de menina e moça. Era, pois, frequente vê-la com uma graciosa blusa garrida pejada de rendas, laços e folhinhos, com um vestido cor-de-rosa pregueado e uma gola postiça a dar-lhe um ar de colegial ingénua. Os modelos simples de saia ampla, jaqueta ajustada ao peito «sombrinha» a condizer, os vestidos já um pouco mais curtos do tempo do querido «charleston», eram o seu encanto. «Ah, no meu tempo!...» e eu tremia na expectativa da repetição de mais uma história dos seus amores infelizes e de não sei quantos «Romeus» desiludidos sem piedade. Recordava então a minha doce avozinha que em pequenita, levando-me à região de sonho e da luta entre a Fada linda como o sol e a Bruxa feia e má, começava sempre assim: era uma vez...

Esta boa senhora, cheia de complexos e tiques nervosos, constituía para quem a observasse algum tempo, tema para uma franca boa disposição, chegando-se mesmo à hilaridade. Tinha voz fina e esganiçada e, numa conversa, o seu interlocutor, com certeza que esperaria mais ouvir-lhe «miaus» palavras. Cheia de manias respeitantes à sua pessoa, era supersticiosa, soltando gritinhos agudos e estridentes à possível visão de um hipotético rato ou animal congénere.

De carácter bom e leal, porém com espírito coscuvilheiro insuportável, esta senhora nunca saia à rua, sem primeiro pedir licença à mana mais velha e perguntar qual vestido deveria usar. Tinha a preocupação exagerada da elegância, conseguindo tornar-se deselegante e até ridícula, com trajos tão impróprios para a sua idade. Era amável em demasia, fazendo vénias por tudo e por nada, escandalizando-se pela mínima coisa.

Era assim esta senhora, com uma preocupação exagerada de agradar (especialmente ao sexo forte), rejubilando de contente quando algum velho, rapaz ou garoto da rua, a seguia com olhar (pensava ela de admiração!) de troça pela figura ridícula que a caracterizava.

Arreigada a preconceitos descabidos de família, ela nunca conseguiu ser feliz, nem realizar o seu sonho de mulher. Jamais casara, porque não quisera, é certo; jamais casaria agora, velha feia e ridícula.

Ela, porém, nunca o supusera e, na esperança de encontrar o seu príncipe encantado de bengala, chapéu alto e casaco, continua espavoneando-se pela rua, numa figura que ficaria bem a decorar um teatro de comédias.

 

página anterior início página seguinte

08-06-2018