Carla Maria Campos e Sá
Lendo, há pouco tempo, a página «Das artes e das
Letras» que «O Primeiro de Janeiro» inclui às quartas-feiras
caiu-me sob os olhos um artigo de João Gaspar Simões, artigo esse
que tinha por título: «Sobre a imortalidade de Jules Renard». Foi a
19 de Fevereiro, e a 22 comemorava-se o aniversário do escritor que
motivara aquele artigo. Nele discorria Gaspar Simões sobre os
caprichos da imortalidade, que se compraz em consagrar, por vezes,
aqueles que, no seu tempo, nada fazia prever que viessem a obter o
sufrágio das gerações futuras. Mas cada época, cada geração, tem o
seu gosto, o seu padrão de beleza, a sua escala de valores. O que
hoje é considerado excelente, superior, pode amanhã ser tido como
banal ou até medíocre. Todos nós sabemos que assim é. Há, no
entanto, obras que vêm resistindo, século após século, aos caprichos
da moda, à volubilidade dos
gostos, sempre vitoriosas, impondo-se à admiração de
gerações sucessivas, numa
carreira triunfal através dos tempos. Destas, diz-se que são
imortais. No entanto,
pergunto eu agora, mesmo estas, verão a sua imortalidade realmente
garantida? Num futuro muito distante embora, não acabarão por cair
no esquecimento? Sim,
o facto de sabermos que o sol surgiu sempre, todos os dias, do mesmo
lado do horizonte, facto que me leva a esperar, quando à noite me
deito, vê-lo de novo ao acordar, será garantia absoluta de que ele
sempre surgirá assim, todos os dias, e daquele lado? Se acordo com os
dados que a ciência dos nossos dias nos faculta, parece talvez
ridículo pôr isto em dúvida. No entanto, todos sabemos que a
ciência não é coisa feita, mas que, pelo contrário, está a fazer-se,
e até a desfazer-se, todos os dias (antes de Galileu e Copérnico
não se pensava que o Sol girava à volta da Terra?). Este mundo em
que vivemos, e que não é obra do homem, muito embora ele o
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tenha modificado bastante, vai-se transformando, ainda que muito
lentamente, e, no
ponto a que chegámos, pode
até, qualquer dia, ir pelos ares. Sendo assim, como conceder a
imortalidade ao que é pura e simplesmente obra do «bicho da terra
vil e tão
pequeno»? Parece-me, realmente, que a palavra imortalidade, aplicada às obras do engenho humano, é simples hipérbole,
a não ser que
admitamos o paradoxo duma imortalidade... temporária...
Imortal será, pois, a obra
que tem já uma longa vida
através de si, e que parece a terá também à sua frente...
Estas minhas reflexões ressurgiram a propósito das de Gaspar Simões
sobre a «imortalidade» de Jules Renard. E digo ressurgiram,
porque, de facto, não é a primeira vez que o meu espírito a elas se entrega.
Escritor pouco apreciado
em vida, as trombetas da fama aclamam o seu nome depois de morto. E
isto graças a um capricho da sorte, que fez de uma das suas
obras um dos mais notáveis filmes do cinema francês, e
que levou o grande Ravel a
compor sobre outra uma das
suas melhores peças musicais. :m claro que a obra. de Jules Renard
tinha os seus méritos próprios. Simplesmente, não foram devidamente apreciadas na sua época.
Eu já conhecia alguns
trechos das «Histoires Naturelles» e também um trechozinho que
anda nos livros de textos de francês adoptados
no 1.° ciclo dos liceus. «Le
petit train», que agora sei
que é extraído de «L'Ecornifleur». A minha curiosidade aguçou-se,
e, vindo, sem
o saber, ao encontro dela,
o meu professor de francês emprestou-me algo com que
pudesse satisfazê-la. «Histoires Naturelles», «L'Ecornifleur», e mais alguns livros, com a
incumbência, ai de mim! de fabricar com tudo isto algo com que
alimentar a chama do nosso «Farol»! Esta explicação parece-me necessária para que a minha
ousadia não pareça excessiva aos olhos dos meus colegas e de outrem
que porventura me possa ler.
O que eu admirei sobretudo em Jules Renard foi a
riqueza e a originalidade das
imagens. Algumas são verdadeiras «trouvailles», não resta dúvida.
Mas parece que ele não tem dificuldade alguma em descobri-las. Encontra-se por toda a parte, ao sabor dum passeio no
campo. Fornecem-lhas os seres vivos e os seres animais.
Mas não, isto não é exacto,
pois tudo quanto existe tem
uma alma, às vezes escondida, profunda e secreta. Ao artista, ao
poeta, incumbe
pô-la a nu, auscultar o coração das pedras, e, se se sente
muito só, muito infeliz e incompreendido. procurar ser
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adoptado por uma família de árvores. E, assim, àquele que sabe
vê-los, o caminho mostra os seus ossos e as suas veias. Só ele, o
artista, pode aperceber-se de que, «dès qu'il tombe une pluie fine,
la rivière a la chair de poule». Já tinham reparado que a galinha
levanta as patas
hirtas, como aqueles que têm
gota? Que a cauda dos galos parece uma capa levantada
atrás por uma espada? E
que o pescoço do cisne, que tinha mergulhado, sai da água como um
braço de mulher sai duma manga? Perceberam já o que dizem dois
pombos um ao outro? «Viens mon grrros... viens mon grrros... viens
mon grrros...» Sabiam que uma pulga é um grão de tabaco com mola?
Que o burro é um coelho que cresceu? Que uma borboleta é um
bilhetinho amoroso, dobrando em dois, que procura
um endereço de flor? Nunca perguntaram a si mesmos,
que se passará com o pirilampo, que às nove horas da noite ainda
tem luz em casa? E, ao ver uma cobra, de que ventre terá saído
aquela cólica? Já viram um esquilo? E então? Vaidosito, não é?
«Du panache! Du panache! Oui, sans doute: mais mon
petit ami, ce n'est pas lá que
ça se met». E as formigas? Cada uma delas não se parece com o
algarismo 3? E não há 3333333333... até ao infinito? Não é verdade
que as solhas, chatas e ovais,
com o ventre a brilhar, são como espelhos de mão? E,
na praia, observaram já que os barcos, imobilizados na areia, estão
de cócoras sobre a barriga e os seus (deles, claro...) pés curtos?
Não repararam em nada disto? Ai
não? Então vão um dia com Jules Renard, verdadeiro caçador de
imagens, à procura delas, não importa por onde, pois em toda a parte
poderão encontrá-las. Ele lhes ensinará como...
São extraordinariamente
curiosas, estas imagens, poéticas à força de preocupação de fugir à
poesia. Desdenharia ele as outras? Lendo «L' Ecornifleur»,
pareceu-me
que não, que as imagens que não procuram fugir à poesia,
mas muito deliberadamente
vão ao seu encontro, também lhe seriam caras, afinal. Simplesmente,
uma espécie de pudor, ou a preocupação de ser coerente, sei lá, o
impede de lhes estender abertamente a mão. E, assim, quando as
utiliza, é para fazer caricatura, é para as meter
a ridículo, apresentando-as sob um ângulo desfavorável, numa atitude (sobretudo uma atitude moral) muito pouco elegante, aquele
que as
utiliza, para fins inconfessáveis, ou antes, muito cinicamente
confessados pela personagem
central de «L' Ecornifleur», que eu não gostaria nada de
identificar com o autor das «Histoires Naturelles» e de «Poil de
Carotte»...
/ 18 / Mas receio muito ter de o fazer, pelo menos em parte...
Que espécie de homem seria? Sei que teve uma infância infeliz, que
os pais não lhe tiveram afeição. O amargor corrosivo deste começo
parece ter deixado cicatrizes profundas e indeléveis naquela alma,
a jorrar fel em baforadas cínicas... O seu nome (será ele o
verdadeiro?) põe-nos de sobreaviso: Renard... Mas que haveria
bem lá no fundo daquele abismo? Será fiel o retrato que ele nos dá
de si próprio no «Journal»? Mas
ninguém conhece a sua verdadeira natureza, como ninguém há que
conheça o seu próprio rosto. E os outros? Estarão em melhor posição
para nos observar? Mas se só podem ver o que lhes mostramos...
Para terminar: a imortalidade temporária (já não é pouco) de Jules
Renard será justificada? O que deixou à posteridade será bastante
para o fazer perdurar? Só me resta aguardar que alguém responda a
esta pergunta, à qual não me sinto autorizada a dar eu mesma
resposta. |