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farol n.º 13 - mil novecentos e sessenta e três ♦ sessenta e quatro, págs. 15 a 18.

Jules Renard

Carla Maria Campos e Sá

Lendo, há pouco tempo, a página «Das artes e das Letras» que «O Primeiro de Janeiro» inclui às quartas-feiras caiu-me sob os olhos um artigo de João Gaspar Simões, artigo esse que tinha por título: «Sobre a imortalidade de Jules Renard». Foi a 19 de Fevereiro, e a 22 comemorava-se o aniversário do escritor que motivara aquele artigo. Nele discorria Gaspar Simões sobre os caprichos da imortalidade, que se compraz em consagrar, por vezes, aqueles que, no seu tempo, nada fazia prever que viessem a obter o sufrágio das gerações futuras. Mas cada época, cada geração, tem o seu gosto, o seu padrão de beleza, a sua escala de valores. O que hoje é considerado excelente, superior, pode amanhã ser tido como banal ou até medíocre. Todos nós sabemos que assim é. Há, no entanto, obras que vêm resistindo, século após século, aos caprichos da moda, à volubilidade dos gostos, sempre vitoriosas, impondo-se à admiração de gerações sucessivas, numa carreira triunfal através dos tempos. Destas, diz-se que são imortais. No entanto, pergunto eu agora, mesmo estas, verão a sua imortalidade realmente garantida? Num futuro muito distante embora, não acabarão por cair no esquecimento? Sim, o facto de sabermos que o sol surgiu sempre, todos os dias, do mesmo lado do horizonte, facto que me leva a esperar, quando à noite me deito, vê-lo de novo ao acordar, será garantia absoluta de que ele sempre surgirá assim, todos os dias, e daquele lado? Se acordo com os dados que a ciência dos nossos dias nos faculta, parece talvez ridículo pôr isto em dúvida. No entanto, todos sabemos que a ciência não é coisa feita, mas que, pelo contrário, está a fazer-se, e até a desfazer-se, todos os dias (antes de Galileu e Copérnico não se pensava que o Sol girava à volta da Terra?). Este mundo em que vivemos, e que não é obra do homem, muito embora ele o / 16 / tenha modificado bastante, vai-se transformando, ainda que muito lentamente, e, no ponto a que chegámos, pode até, qualquer dia, ir pelos ares. Sendo assim, como conceder a imortalidade ao que é pura e simplesmente obra do «bicho da terra vil e tão pequeno»? Parece-me, realmente, que a palavra imortalidade, aplicada às obras do engenho humano, é simples hipérbole, a não ser que admitamos o paradoxo duma imortalidade... temporária... Imortal será, pois, a obra que tem já uma longa vida através de si, e que parece a terá também à sua frente...

Estas minhas reflexões ressurgiram a propósito das de Gaspar Simões sobre a «imortalidade» de Jules Renard. E digo ressurgiram, porque, de facto, não é a primeira vez que o meu espírito a elas se entrega.

Escritor pouco apreciado em vida, as trombetas da fama aclamam o seu nome depois de morto. E isto graças a um capricho da sorte, que fez de uma das suas obras um dos mais notáveis filmes do cinema francês, e que levou o grande Ravel a compor sobre outra uma das suas melhores peças musicais. :m claro que a obra. de Jules Renard tinha os seus méritos próprios. Simplesmente, não foram devidamente apreciadas na sua época.

Eu já conhecia alguns trechos das «Histoires Naturelles» e também um trechozinho que anda nos livros de textos de francês adoptados no 1.° ciclo dos liceus. «Le petit train», que agora sei que é extraído de «L'Ecornifleur». A minha curiosidade aguçou-se, e, vindo, sem o saber, ao encontro dela, o meu professor de francês emprestou-me algo com que pudesse satisfazê-la. «Histoires Naturelles», «L'Ecornifleur», e mais alguns livros, com a incumbência, ai de mim! de fabricar com tudo isto algo com que alimentar a chama do nosso «Farol»! Esta explicação parece-me necessária para que a minha ousadia não pareça excessiva aos olhos dos meus colegas e de outrem que porventura me possa ler.

O que eu admirei sobretudo em Jules Renard foi a riqueza e a originalidade das imagens. Algumas são verdadeiras «trouvailles», não resta dúvida. Mas parece que ele não tem dificuldade alguma em descobri-las. Encontra-se por toda a parte, ao sabor dum passeio no campo. Fornecem-lhas os seres vivos e os seres animais.

Mas não, isto não é exacto, pois tudo quanto existe tem uma alma, às vezes escondida, profunda e secreta. Ao artista, ao poeta, incumbe pô-la a nu, auscultar o coração das pedras, e, se se sente muito só, muito infeliz e incompreendido. procurar ser / 17 / adoptado por uma família de árvores. E, assim, àquele que sabe vê-los, o caminho mostra os seus ossos e as suas veias. Só ele, o artista, pode aperceber-se de que, «dès qu'il tombe une pluie fine, la rivière a la chair de poule». Já tinham reparado que a galinha levanta as patas hirtas, como aqueles que têm gota? Que a cauda dos galos parece uma capa levantada atrás por uma espada? E que o pescoço do cisne, que tinha mergulhado, sai da água como um braço de mulher sai duma manga? Perceberam já o que dizem dois pombos um ao outro? «Viens mon grrros... viens mon grrros... viens mon grrros...» Sabiam que uma pulga é um grão de tabaco com mola? Que o burro é um coelho que cresceu? Que uma borboleta é um bilhetinho amoroso, dobrando em dois, que procura um endereço de flor? Nunca perguntaram a si mesmos, que se passará com o pirilampo, que às nove horas da noite ainda tem luz em casa? E, ao ver uma cobra, de que ventre terá saído aquela cólica? Já viram um esquilo? E então? Vaidosito, não é? «Du panache! Du panache! Oui, sans doute: mais mon petit ami, ce n'est pas lá que ça se met». E as formigas? Cada uma delas não se parece com o algarismo 3? E não há 3333333333... até ao infinito? Não é verdade que as solhas, chatas e ovais, com o ventre a brilhar, são como espelhos de mão? E, na praia, observaram já que os barcos, imobilizados na areia, estão de cócoras sobre a barriga e os seus (deles, claro...) pés curtos? Não repararam em nada disto? Ai não? Então vão um dia com Jules Renard, verdadeiro caçador de imagens, à procura delas, não importa por onde, pois em toda a parte poderão encontrá-las. Ele lhes ensinará como...

São extraordinariamente curiosas, estas imagens, poéticas à força de preocupação de fugir à poesia. Desdenharia ele as outras? Lendo «L' Ecornifleur», pareceu-me que não, que as imagens que não procuram fugir à poesia, mas muito deliberadamente vão ao seu encontro, também lhe seriam caras, afinal. Simplesmente, uma espécie de pudor, ou a preocupação de ser coerente, sei lá, o impede de lhes estender abertamente a mão. E, assim, quando as utiliza, é para fazer caricatura, é para as meter a ridículo, apresentando-as sob um ângulo desfavorável, numa atitude (sobretudo uma atitude moral) muito pouco elegante, aquele que as utiliza, para fins inconfessáveis, ou antes, muito cinicamente confessados pela personagem central de «L' Ecornifleur», que eu não gostaria nada de identificar com o autor das «Histoires Naturelles» e de «Poil de Carotte»... / 18 / Mas receio muito ter de o fazer, pelo menos em parte...

Que espécie de homem seria? Sei que teve uma infância infeliz, que os pais não lhe tiveram afeição. O amargor corrosivo deste começo parece ter deixado cicatrizes profundas e indeléveis naquela alma, a jorrar fel em baforadas cínicas... O seu nome (será ele o verdadeiro?) põe-nos de sobreaviso: Renard... Mas que haveria bem lá no fundo daquele abismo? Será fiel o retrato que ele nos dá de si próprio no «Journal»? Mas ninguém conhece a sua verdadeira natureza, como ninguém há que conheça o seu próprio rosto. E os outros? Estarão em melhor posição para nos observar? Mas se só podem ver o que lhes mostramos...

Para terminar: a imortalidade temporária (já não é pouco) de Jules Renard será justificada? O que deixou à posteridade será bastante para o fazer perdurar? Só me resta aguardar que alguém responda a esta pergunta, à qual não me sinto autorizada a dar eu mesma resposta.

 

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08-06-2018