Sob a iniciativa do Sr.
Dr. Orlando de Oliveira, e a que se associaram os Srs. Professores e
os alunos, quer actuais quer antigos, teve lugar, no dia 22 de
Fevereiro passado, uma festa de homenagem ao Sr. Dr. Francisco de
Assis Maia, que abandonou o exercício das suas funções após 36 anos
de dedicação ao professorado.
A sessão, que se realizou no Ginásio do nosso Liceu, presidiu o Sr.
Dr. Manuel Lousada, Governador Civil de Aveiro, que chamou para a
mesa de presidência o Sr. Reitor, o homenageado, Sr. Dr. Assis Maia,
e diversas autoridades locais. |
«Manda o Governo da República Portuguesa, pelo Ministro da Educação Nacional, dar público testemunho de louvor ao licenciado
Francisco de Assis Ferreira da Mala, professor efectivo do 5.° grupo
do quadro do Liceu de Aveiro, pela muita dedicação, alta
competência e inexcedível zelo demonstrados durante 36 anos no
exercício do magistério).
Diário do Governo, II série
n.º 45
(22-II-1964) |
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O Ginásio encontrava-se praticamente repleto, sendo a
assistência constituída, na sua maior parte, por actuais e antigos
professores da casa e por antigos alunos do Sr. Dr. Assis, tanto
aqueles que ainda frequentam este Liceu como outros que já o
deixaram, mas que quiseram estar presentes, para provar ao Mestre
que ainda não o haviam esquecido.
Depois de aberta a sessão pelo Chefe do Distrito, falou em primeiro
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lugar o Sr. Reitor de cujo discurso, subordinado ao tema «O Liceu e
o
Professor», apresentamos os seguintes passos:
«É um idealista, o professor, e tem mesmo que o ser, pois é nobre
e digno o desejo de formar os seus alunos e fazer deles homens de
corpo
são, de espírito são, corajosos, decididos e perseverantes.
Mas não há idealismo sem sofrimento, como não há rosa sem
espinhos.
E o professor, nessa dimensão de idealista,
sofre, esquece e
perdoa.
Sofre com o insucesso dos seus alunos; sofre com o desgosto
dos pais dos mesmos alunos, às vezes seus amigos pessoais; sofre ao
verificar que lhe não fazem justiça aos seus méritos ou às suas boas
intenções; sofre com as pedradas que frequentemente lhe
arremessam; sofre com o reconhecimento das suas próprias imperfeições;
sofre por não poder dar-se mais; sofre, em suma, por se reconhecer
o sacerdote indigno desta Santa Cruzada que é o ENSINO.
E esquece.
Ah, meus caros Amigos, e
esquece!
Esquece para perdoar os pequenos e frequentes deslizes dos
seus alunos; esquece para perdoar as incompreensões dos que
criticam sem razão; esquece para perdoar as censuras dos que lhe
atribuem a responsabilidade das deficiências próprias; esquece para
perdoar a falta de gratidão dos pais, por aquilo que fez em benefício
dos filhos; esquece para perdoar a leviandade e inconsideração com
que dele se fala nos locais de cavaco, principalmente na altura dos
exames; esquece para perdoar o trabalho malévolo dos que acintosamente tentam destruir a sua obra de educadores, nas próprias
pessoas dos seus alunos; esquece para perdoar aos que o avaliam
mais pelos seus pequenos defeitos do que pelas suas grandes qualidades ; numa palavra,
esquece as paixões humanas e as dificuldades
financeiras, para perdoar tudo a todos.
Idealista que sofre, esquece e perdoa!
É a síntese da personalidade do professor.
Não se proferem estas palavras para provocar lamentos
ou
afugentações. Ao contrário.
idealismo, sofrimento, esquecimento e perdão
são quatro marcas,
quatro barreiras,
quatro carris,
que conduzem ao campo da dignidade e requintam a nobreza
dos sentimentos.
Com efeito:
não tem destino na vida quem não possui um ideal;
não é valente quem não tem coragem para sofrer;
não é nobre quem não sabe esquecer;
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e não tem alegria quem não sabe perdoar.
O professor, portanto, será tanto mais professor quanto mais elevado
for o grau da vivência dos sentimentos e qualidades apontadas».
E o Ex.mo Sr. Reitor, na continuação do seu discurso, passa a traçar
nas suas linhas gerais alguns passos da vida de quem foi um distinto
professor do nosso liceu:
«Em Outubro de 1909, com a idade de 10 anos, começava a frequentar
este Liceu, com o n.º 28 da 1.ª turma do 1.° ano, o menino
Francisco
de Assis Ferreira da Maia, natural da freguesia da Vera-Cruz, de
Aveiro.
Tinha talentos apreciáveis este menino, e prometia já vir a ter uma
estatura física imponente e majestosa, como suporte para a
correspondente grandeza moral. Com efeito, esta criança de então
fora forjada no seio de virtuosa Família, de que assimilara
sofregamente o muito de grande e belo do seu ambiente normal e
permanente.
Trazia portanto um corpo grande e um coração enorme, onde fora
semeado abundantemente o germe do bem, da virtude e do amor. E este
rapazinho soube aguentar os embates da vida; e não se transviou, e
deu abundantes florações das belas sementes com que
amorosamente fora brindado.
E, mais do que isso:
Alguém da sua Família vivia apaixonadamente os problemas
do ensino, e soube inocular-lhe o vírus produtor daqueles requisitos
apontados como necessários a um professor.
Foi assim que, em 1926, surgiu como professor deste Liceu
o Dr. Francisco de Assis Ferreira da Maia, ornado com diplomas de
dois cursos superiores, mas que, apesar de formado em Direito,
preferiu abraçar fervorosamente a carreira de professor, pondo de
parte as prováveis maiores glórias e proventos que a carreira
jurídica lhe poderia ter trazido.
Provavam-se deste modo dois factos: a boa qualidade da semente
lançada na formação deste jovem que abria para a vida; e a boa
receptividade desta alma igualmente jovem, para afagar a semente e
para se dar generosamente à própria generosidade que é a vida do
professor.
Um ano depois, em Outubro de 1927, era nomeado professor agregado,
para 3 meses depois alcançar a situação de professor efectivo do
Liceu de Chaves e depois, no mesmo ano lectivo, a de professor
efectivo do Liceu de Vila Real.
Logo de princípio se evidenciaram as boas qualidades do novo
professor e, em Fevereiro de 1928 substituía o Prof. Rebelo de
Queirós nas suas funções de Director da 5.ª classe, o que
significava um especial apreço para quem começara há tão pouco tempo
a sua carreira num Liceu em cujo Colégio Docente existiam elevados
valores.
Em Agosto de 1929 realizava o seu sonho querido de voltar à
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sua terra de Aveiro, e ao seu Bairro querido da Beira-Mar, e à sua
casa familiar de onde se aspira a maresia e avista a paisagem incomparável da Ria até os horizontes longínquos da orla marítima
e São Jacinto.
Apenas um ano lectivo andou por fora, mas a partir de
Outubro desse ano de 1929 instalou-se e radicou-se no seu Liceu, para
devotadamente se entregar a ele e, de modo especial, aos seus
alunos.
Mereceu desde logo a plena confiança do seu reitor que o nomeou
Secretário do Liceu, devendo meditar-se no que então este cargo
tinha de honroso e na enorme dedicação e confiança exigidas pelo
exercício das respectivas funções.
De então para cá, passaram 35 anos durante os quais a
personalidade do Dr. Assis Maia se multiplicou vezes sem conta e
desabrochou em numerosíssimas florações de carinho, de compreensão
humana e de amorosa pedagogia que o levaram a despejar sobre os
seus alunos, com extraordinário talento pedagógico, catadupas de
ciência e de lições vivas, tão vivas e reais como o eram as suas
próprias aulas.
E agora, chegado este momento, ei-lo que vem até nós, e
ainda e sempre para nos dar a todos a grande lição viva da sua presença e o grito que sempre lhe foi tão querido: ESCOLA!!!».
E, quase a finalizar, o Sr.
Dr. Orlando de Oliveira acrescentou:
«O Liceu, ao promover
esta sessão de homenagem a V. Ex.ª
pretendeu educar os seus alunos, ensinando-os a apreciar o mérito,
o zelo, a dedicação, a amizade, a camaradagem, e todas as demais
qualidades reais e positivas que o exornam. Procurou exaltar a figura
do Homem, do Professor e do Amigo, em todas as manifestações,
para que os seus alunos aprendam a respeitar e a admirar os atributos que podem enobrecer e dar um sentido à vida.
Numa palavra: o Liceu quis cumprir o que considerava seu
dever, e quis honrar-se, honrando quem tanto e tão bem o serviu».
Usou em seguida da palavra o
coronel Aires Martins, chefe
do Estado Maior da 1.ª Região Militar, que procurou explicar a maneira de ser do homenageado em conformidade com o carácter
geográfico da região.
A Sr.ª
Dr.ª D. Esmeralda Rainho, em nome dos Antigos
Alunos, proferiu em seguida algumas palavras plenas de gratidão, de
que destacamos alguns passos:
«Estamos a viver uma hora da mais flagrante justiça
– prestar
homenagem a Alguém que podemos considerar o Paladino da Justiça, impregnada de compreensão, por uma análise profunda do ser
humano.»
E mais adiante: «O nosso dedicadíssimo Professor, penetrando
com amor a nossa alma, correspondia à nossa ânsia mal contida de
saber, com lições de clareza cristalina, apresentando-nos o facto
histórico como consequência dum fluir natural dos acontecimentos,
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levando-nos com mão habilíssima a descobrir coisas novas e belas,
Servia-se de meios tão sugestivos, que ainda hoje poderíamos narrar
muitas passagens dessas lições, tal a intensidade com que ficaram
gravadas no nosso espírito.»
Noutro passo do seu discurso a Ex.ma Sr.ª D. Esmeralda afirma: «A
dedicação de tão singular Mestre pelos seus alunos, verdadeiramente
paternal, inspirava-lhe frases e a narração de episódios da vida
real que se nos gravaram no espírito de tal forma, que têm sido,
através da nossa vida, farol a guiar-nos nas horas de hesitação,
incerteza e até mesmo trevas». E ainda: «Mas o Sr. Dr. Assis
continuava a ser o Professor Amigo, jovial e educador, fora do
Liceu.
A saudação que nos dirigia era como que uma bênção, depois de com um
olhar rápido e penetrante nos examinar bem, sempre exigente na nossa
compostura e aprumo».
E, quase a terminar, dirigindo-se ao homenageado, afirma: «V.
Ex.ª
não foi um Mestre que passou e apenas gratamente se recorda. V. Ex.ª
foi um Mestre que ficou connosco, de quem nós sentimos a estima
tonificante e inabalável, a cada instante, e por quem nós – a despeito de essa
palavra ser tantas vezes uma palavra vã – ficamos
presos por enorme gratidão.»
Em nome dos actuais alunos falou o finalista
António M. Vieira da
Silva que se referiu ao homenageado com palavras cheias de respeito, de admiração e de justiça.
Nesta altura foram entregues por alunos dois livros ao Sr. Dr.
Assis, bem como uma salva de prata pelo antigo aluno Sr.
Dr. Sisenando da Cunha. Ao mesmo tempo uma aluna oferecia à esposa do homenageado um ramo de flores.
O Sr. Reitor leu, então, muitos telegramas, chegados durante a
sessão, e que constituíam mais uma prova de apoio à homenagem justa
que se estava fazendo.
Falou depois o Sr. Governador Civil que terminou as suas palavras
com a leitura dum louvor do Ministro da Educação Nacional ao Sr. Dr.
Assis Maia, publicada no «Diário do Governo» e que transcrevemos em
lugar de relevo.
No final, agradecendo a homenagem, o Sr.
Dr. Francisco de Assis Maia
pronunciou o seguinte discurso:
«Conta-se que, estando Sócrates na prisão, a aguardar a hora de ser
executada a iníqua sentença de morte a que fora condenado,
recebera, um dia, a visita de um amigo – destes que a Providência raramente nos apresenta
– que lhe foi propor a fuga, já devidamente
preparada.
Obtemperou-lhe, rápido, o famoso filósofo:
– «Não!... Que diriam as
leis, se me encontrassem na rua: Ó Sócrates, tu, que toda a vida
ensinaste o respeito às Leis; Tu, que sempre ensinaste se deviam
respeitar as decisões dos Tribunais, tu, Sócrates, foges?!
E o Mestre dos Mestres, como sabemos, não fugiu!
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Reminiscência de antigas leituras, logo este episódio, tão simples
e enorme, me ocorreu, – e foi decisivo, para me resolver a abandonar
o primitivo propósito, em que estive, de sofrer em silêncio, para
vir
aqui... sofrer com alegria.
Desde menino e moço habituado a estender a mão à palmatória,
a assumir, com desassombro, a responsabilidade dos meus actos, e,
até,
a assistir religiosa, estoicamente, à morte de entes queridos, e
tendo
sempre procurado incutir nos alunos coragem para tudo, – eu tinha
o dever de não fugir.
Aqui estou, pois!
*
Neste momento, em que sou alvo de homenagem que julgo não
merecer, é-me grato endossá-la, de alma ajoelhada, à memória de meus
queridos Pais e Irmã. Estou-lhes muito grato por tudo e nunca mais
esquecerei os sacrifícios a que de boa vontade se sujeitaram, para
que eu pudesse chegar onde quis chegar: – aqui (ao Liceu)!
Quero dirigi-la, também, à memória dos meus queridos Professores já
falecidos – de instrução primária (no Colégio do saudoso P.e Leitão), do Liceu e da Universidade, assim como aos felizmente
ainda vivos –
Drs. Agostinho de Sousa;
Álvaro de Ataíde;
José Duarte Carrilho;
José Pereira Tavares – e
António de Oliveira Salazar;
Manuel
Gonçalves Cerejeira;
Manuel Paulo Merêa; e
Mário de Figueiredo –
– que todos estão no meu coração.
Muito respeitosamente os saúdo, na pessoa do Sr.
Dr. José Tavares, velho e querido Mestre e Amigo, que muito me honra com a sua
presença e me veio dar mais uma prova – que muito penhorado agradeço
– da amizade com que me vem distinguindo, há quase meio
século – (desde 1916).
*
Quando, no princípio deste mês, o Sr. Reitor me deu
conhecimento do que se projectava, logo me senti enleado, profundamente
abalado, e vi dolorosamente desfeito o sonho, que já acalentava, de
partir... para férias.
Pedi, insisti, mas fui vencido. Vencido, mas não convencido.
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*
Tenho, realmente, a consciência de que posso reivindicar para mim o
ter dado ao Liceu, desde os primeiros passos (1926), alguma coisa:
dei-lhe a mocidade; todas as energias de que fui capaz, desprezando
as horas, desprezando os sagrados direitos da família e, até, o
conselho do poeta do meu quinto ano jurídico – Dr. Joaquim Torres da
Costa Reis (em 1922):
«..........
Coração, coração, vai de mansinho,
Olha que cansas e erras o caminho!».
Como saí antes da meta,... ele foi profeta!
Afinal, tudo se resume
numa palavra – dedicação.
Mas dedicação implica amor; e, salvo melhor parecer, o amor
é estranho à vontade. Logo, não tem mérito a acção por mim exercida.
Aconteceu... Fiz só o meu dever... E o grande Vieira já nos
ensinou: –
– «Vós mesmos que fizestes o vosso dever, vós mesmos vos
pagastes».
Portanto, perdoai-me, insisto: eu não merecia tanto...
Quando muito, posso interpretar, esta manifestação como
carinhosa e expressiva demonstração de estima, semelhante ou da mesma
ordem da que, felizmente venho surpreendendo, contente, ao longo de
quase quatro décadas, o que, para mim era já recompensa bastante.
*
Que mundo de recordações me invade neste momento!
Por mais que me esforce, não consigo apagar da memória a
dolorosa, amarga lembrança das horas terríveis e difíceis porque o Liceu
passou – e eu também vivi e sofri –, resultantes da torpe calúnia,
manejada pela não menos torpe baixa política.
Que tristeza! Que miséria! Mas, felizmente, foi esmagada! Não
há nada como ter razão!...
Em contraste, que saudades imensas das inúmeras horas de
prazer espiritual, intenso, forte e vivo, que me foi dado viver nas
aulas!
Não as trocaria pela maior fortuna do mundo!
*
Muito sensibilizado, agradeço ao Senhor Reitor, ao Sr. Governador
Civil, aos distintos oradores e a todos os bons Amigos presentes,
com um afectuoso abraço, a grande generosidade que tiveram, de
mandar
à minha alma, na hora da abalada, uma onda de alegria, com a
intenção, certamente, de afogar a mágoa que sinto, por ser forçado,
pela doença e
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pelo desgaste, a abandonar o Liceu, onde sempre trabalhei com o
coração agradecido.
Nunca a profissão – consola-me repeti-lo!
– me deu qualquer
desgosto, destes que deixam marca.
E – desejo acentuá-lo – não tenho razão de queixa de ninguém.
Nada tenho, pois, que perdoar. Mas, aos que porventura guardem de
mim motivo de queixa, por qualquer falta involuntária, daqui, humildemente, lhes peço perdão.
Para terminar, peço licença à Senhora D. Esmeralda, minha
distinta Colega, para, respeitosamente, lhe beijar a mão.
Bem hajam todos!».
Depois da sessão foi descerrada na Secretaria do Liceu uma
fotografia do Dr. Assis como testemunho de gratidão pelo Secretário
que Ele foi durante longos anos.
*
Na segunda-feira seguinte, dia 24, foi oferecido pelos Srs.
Professores um almoço na Cantina ao Sr. Dr. Francisco de Assis
Maia.
Ao almoço assistiram também os representantes das turmas que foram
este ano do Sr. Dr. Assis, e ainda os antigos professores Srs. Drs.
José
Pereira Tavares,
Álvaro Sampaio,
Ferreira Neves e
Manuel Gaspar. |