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farol n.º 12 - mil novecentos e sessenta e três ♦ sessenta e quatro, págs. 15 a 17.

Finalmente

Maria Teresa Silva
(4.º ano)
 

NA velha cabana, sumida na serra, reinava o silêncio. Das brasas quase extintas da lareira desprendia-se uma luz mortiça que definia mal os contornos dos objectos.

A um canto, deitado num pobre leito, uma criança dos seus onze anos dormia. Nos lábios frescos e entreabertos bailava um sorriso de inocência como se se sentisse, transportada ao país longínquo do sonho e da maravilha.

Sentada, com as mãos cruzadas no regaço, o olhar distante, uma mulher, de rosto cavado mas ainda belo, meditava profundamente. De vez em quando, o azul aveludado do seu olhar escurecia como se nele vagueassem enigmáticas sombras. Quanta tristeza sondava o azul daqueles olhos!

Oh! Aquela frase quanto a ferira! Penetrara-lhe no mais íntimo da alma, como ferro em brasa e queimara-lha sem piedade. Sentia o pobre coração estalar de dor. – «Mãezinha, porque é que o paizinho não volta dessa viagem? Demora tanto tempo!» – Pobre criança! Saberia ela alguma vez avaliar o mal que lhe causara? Pobre mãe devorada cruelmente pela amargura!

*

A luz vaga da manhã descia lentamente. A paisagem surgia pálida e o alvor das neves sorria às tonalidades róseas que erravam pelo azul esfumado do céu. Os ramos mirrados das árvores estavam envolvidos por um manto de alvinitentes farrapos. Tudo embranquecera!

Pelo colmo da velha cabana evadia-se um fumo / 16 / cinzento que era indício de vida. Sim, Benedicta costumava madrugar. Depois de acender o lume chamava o filho, pois este devia ir com o rebanho. Naquele dia, embora parecesse estranho, depois de uma noite de lágrimas, sentia-se satisfeita, quase feliz.

– Ângelo, não ouves? Acorda mandrião! A criança esfrega uns olhos verdes espantados. Abre a boca uma, duas vezes e a mãe diz-lhe novamente:

– Quanto tempo demoras a levantar-te! Anda, despacha-te!

O miúdo dá um pulo da rude cama e vai enfiar-se a um canto da lareira.

*

Sob o olhar terno da mãe, Ângelo parte com as ovelhas e o fiel cão de guarda. Com um sorriso a iluminar-lhe o rosto pálido, ouve as últimas recomendações:

– Não desças ao rio, ouves? Vê lá o que fazes! Se te aparecem os lobos...

– Está bem, não vou.

Benedicta olhava longamente o filho, o seu único filho, que nascera depois... da partida do marido. Quando pensava nisto, sentia a alma invadida por profunda mágoa e pelo rosto descorado deslizavam lágrimas amargos. Pobre Eduardo! Por que preço pagara essa viagem. Era demais! Não podia suportar! Como poderia tolerar a vida, se não fosse aquele criança de olhos verdes e caracóis escuros? Nela residia toda a sua esperança. Nela se apoiava pela tortuosa estrada da existência!

*

O rebanho devorava avidamente a erva viçosa, protegida da neve pela pequena colina. Ali perto, Ângelo brincava jovialmente com o «Rafeiro», o corpulento cão: rolavam ambos pela neve, corriam ao desafio... mas a brincadeira foi interrompida por agudos vivos! Ângelo empalideceu ainda mais e o sangue quase lhe gelou nas veias. O Rafeiro ergue as enormes orelhas e faz soar grandes latidos. As ovelhas espavoridas desaparecem cada uma para seu lado. Ângelo tenta fugir, mas o terror paralisara-lhe os membros e dentro de segundos dava-se o inevitável: o Rafeiro lutava encarniçadamente, para salvar o seu dono, mas os inimigos eram muitos e, em breve, estavam ambos prostrados na neve e abandonados à crueldade dos lobos.

Atraído pelo ruído da luta, um homem de expressão grave e cabelos grisalhos surge naquela colina. Tinha ar cansado como quem regressa duma longa ausência. Ante os seus olhos desenrolava-se a trágico cena. Como reagir? Iria em socorro do pobre gaiato inanimado e sem auxílio? Mas, se o fizesse, não correria também perigo? No seu espírito / 17 / pairava a indecisão! O desejo de salvaguardar a própria vida obrigava-o a voltar para trás... mas algo o solicitava para ali, para o lugar da luta, em defesa daquele inocente. E o homem cai sobre os lobos com a coragem e tenacidade duma fera. Ângelo dirige-lhe um olhar entre carinhoso e suplicante, que dá forças ao desconhecido.

Momentos de expectativa! Quem venceria? Os lobos ou o homem que tão generosamente arriscara a vida em auxílio da criança? Finalmente, depois de angustiosa luta, os lobos desapareceram, escorraçados pelos músculos vigorosos do desconhecido.

Este sentia-se cansado, mas satisfeito. Acabava de cumprir um dever. O suor escorria-lhe pela fronte enrugada e as pernas vergavam-se fatigadas. Debruçou-se sobre Ângelo que respirava com dificuldade. Limpou-lhe as feridas e enterneceu-se ao olhar aquele rosto pálido e aqueles olhos profundos.

– Onde moras? – perguntou o homem. Ângelo agitou ligeiramente os lábios, mas as palavras negavam-se a sair da garganta e o silêncio seguiu esta interrogação.

– Se não podes falar, aponta. – E um dedo esguio se levantou lentamente e indicou a rude cabana coberta de colmo. Uma onda de emoção percorreu o corpo do homem que poisou na criança um olhar interrogativo. Levantou-o nos braços e dirigiu-se apressado à choupana designada. O coração batia-lhe fortemente.

*

Benedicta, ao ver Ângelo em tão miserável estado, pareceu enlouquecer. Correu para o homem e a ânsia de salvar o filho impediu-a de reparar na pessoa que o transportava. Mas, passados os primeiros instantes de excitação, olhou o desconhecido e...

– Benedicta!

– Eduardo!

– Oh! É milagre... finalmente...

– Sim, voltei e salvei-o.

 

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08-06-2018