Maria Teresa Silva
(4.º ano)
NA
velha cabana, sumida
na serra, reinava o silêncio. Das brasas
quase extintas da lareira desprendia-se uma luz mortiça que definia
mal os contornos dos objectos.
A um canto, deitado num
pobre leito, uma criança dos
seus onze anos dormia. Nos lábios frescos e entreabertos bailava um
sorriso de inocência como se se sentisse, transportada ao país
longínquo do sonho e da maravilha.
Sentada, com as mãos cruzadas no regaço, o olhar distante, uma mulher, de rosto cavado mas
ainda belo, meditava profundamente. De vez
em quando, o azul aveludado
do seu olhar escurecia como se nele vagueassem enigmáticas sombras.
Quanta tristeza sondava o azul daqueles olhos!
Oh! Aquela frase quanto
a ferira! Penetrara-lhe no mais íntimo da alma, como ferro em brasa
e queimara-lha sem piedade. Sentia o pobre coração estalar de dor.
– «Mãezinha, porque é que o paizinho não volta dessa viagem?
Demora tanto tempo!» – Pobre criança! Saberia ela alguma vez avaliar o mal que
lhe causara? Pobre mãe devorada cruelmente pela amargura!
*
A luz vaga da manhã descia lentamente. A paisagem
surgia pálida e o alvor das
neves sorria às tonalidades róseas que erravam pelo azul esfumado do
céu. Os ramos
mirrados das árvores estavam
envolvidos por um manto de alvinitentes farrapos. Tudo
embranquecera!
Pelo colmo da velha cabana evadia-se um
fumo
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cinzento que era indício de vida. Sim, Benedicta costumava
madrugar. Depois de acender o lume chamava o filho, pois este devia
ir com o rebanho. Naquele dia, embora parecesse estranho, depois de uma
noite de lágrimas, sentia-se satisfeita, quase feliz.
– Ângelo, não ouves? Acorda mandrião! A criança esfrega uns olhos
verdes espantados. Abre a boca uma, duas vezes
e a mãe diz-lhe novamente:
– Quanto tempo demoras a levantar-te! Anda, despacha-te!
O miúdo dá um pulo da rude cama e vai enfiar-se a um canto da
lareira.
*
Sob o olhar terno da mãe,
Ângelo parte com as ovelhas e o fiel cão
de guarda. Com
um sorriso a iluminar-lhe o rosto pálido, ouve as últimas recomendações:
– Não desças ao rio,
ouves? Vê lá o que fazes!
Se te aparecem os lobos...
– Está bem, não vou.
Benedicta olhava longamente o filho, o seu único filho, que nascera depois... da
partida do marido. Quando pensava nisto, sentia a alma invadida por
profunda mágoa e pelo rosto descorado deslizavam lágrimas amargos.
Pobre Eduardo! Por que preço pagara
essa viagem. Era demais! Não podia suportar! Como poderia tolerar a vida, se não fosse aquele
criança de olhos verdes
e caracóis escuros? Nela residia toda a sua esperança. Nela se
apoiava pela tortuosa estrada da existência!
*
O rebanho devorava avidamente a erva viçosa, protegida da neve pela pequena colina. Ali
perto, Ângelo brincava jovialmente com o «Rafeiro», o
corpulento cão: rolavam
ambos pela neve, corriam ao desafio... mas a brincadeira foi
interrompida por agudos vivos! Ângelo empalideceu ainda mais e o
sangue quase lhe gelou nas veias. O Rafeiro ergue as enormes orelhas
e faz soar grandes latidos. As
ovelhas espavoridas desaparecem cada uma para seu lado. Ângelo
tenta fugir, mas o terror paralisara-lhe os membros
e dentro de segundos dava-se o inevitável: o Rafeiro lutava
encarniçadamente, para salvar o seu dono, mas os inimigos eram muitos e, em
breve, estavam ambos prostrados na neve e abandonados à crueldade
dos lobos.
Atraído pelo ruído da luta,
um homem de expressão grave e cabelos grisalhos surge naquela
colina. Tinha ar cansado
como quem regressa duma
longa ausência. Ante os seus olhos desenrolava-se a trágico cena.
Como reagir? Iria em socorro do pobre gaiato inanimado e sem
auxílio? Mas, se o fizesse, não correria
também perigo? No seu espírito
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a indecisão! O desejo de salvaguardar a própria vida obrigava-o a voltar para trás... mas algo o
solicitava para ali, para o lugar da luta, em defesa daquele inocente.
E o homem cai sobre os lobos com a coragem e tenacidade duma fera.
Ângelo dirige-lhe um olhar entre
carinhoso e suplicante, que dá
forças ao desconhecido.
Momentos de expectativa! Quem venceria? Os lobos ou o homem que tão generosamente arriscara
a vida em auxílio da criança? Finalmente,
depois de angustiosa luta, os
lobos desapareceram, escorraçados pelos músculos vigorosos do desconhecido.
Este sentia-se cansado, mas
satisfeito. Acabava de cumprir
um dever. O suor escorria-lhe
pela fronte enrugada e as pernas vergavam-se fatigadas.
Debruçou-se sobre Ângelo que
respirava com dificuldade. Limpou-lhe as feridas e enterneceu-se ao olhar aquele rosto
pálido e aqueles olhos profundos.
– Onde moras? – perguntou o homem.
Ângelo agitou ligeiramente os lábios, mas as palavras negavam-se a sair
da garganta e o silêncio seguiu esta interrogação.
– Se não podes falar,
aponta. – E um dedo esguio
se levantou lentamente e indicou a rude cabana coberta de colmo. Uma onda de emoção
percorreu o corpo do homem
que poisou na criança um
olhar interrogativo. Levantou-o nos braços e dirigiu-se apressado à
choupana designada. O coração batia-lhe fortemente.
*
Benedicta, ao ver Ângelo em tão miserável estado, pareceu
enlouquecer. Correu
para o homem e a ânsia de
salvar o filho impediu-a de
reparar na pessoa que o transportava. Mas, passados os
primeiros instantes de excitação, olhou o desconhecido
e...
– Benedicta!
– Eduardo!
– Oh! É milagre... finalmente...
– Sim, voltei e
salvei-o. |