Crisanta Augusta Rosa Soares Carinha
(7.° Ano)
PARA inteira compreensão da figura do Infante D. Henrique na obra histórica de
Oliveira Martins, «Os Filhos de D. João I», não se poderá desprezar,
de forma
alguma, a atmosfera literária que envolveu o nosso escritor.
É sabido que surgira a corrente realista como reacção aos exageros e extravagâncias sentimentais em que haviam caído os
ultra-românticos. Assim, a geração dos novos escritores teria como
único objectivo a realidade material e a vida sensível, orientando
os seus trabalhos com base na frieza discursiva da razão, encetando
uma obra demolidora e de extrema severidade crítica. Apresentam-nos, desta forma, a faceta mais grosseira e
menos edificante da natureza e do homem, este em luta constante
entre tendências superiores e inferiores, à mercê do instinto a
superar a razão, sendo colocada a moral em segundo plano,
incompreendida e espezinhada, posto Que em quase todos estes
escritores haja uma pseudo-intenção didáctica.
O homem, porém, não é só um ser materialista. Nele existe algo
que o
distingue dos outros animais, a sua alma, os seus sentimentos, o seu
tão rico mundo subjectivo. Não nos admira,
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portanto, que esta atitude pessimista com que os realistas encaram a natureza e
a humanidade, esta actividade destrutiva, não
satisfizesse as novas gerações e até mesmo os próprios adeptos. É
então que já no final do século XIX, esta orientação literária sofre
alterações. O homem sente-se cansado da sua preocupação
destruidora, a qual não é compensada por novas criações; principia a
olhar os homens e a natureza com mais optimismo,
torna-se mais transigente, vê que, para além do árido materialismo
existe o tão belo mundo ideal. E assim toma uma atitude, em certos
aspectos, quase oposta à que seguia, olha mais para o alto, para o
espírito e começa a desprezar o sensível.
Surge uma mentalidade renovadora, da qual constituem flagrante
exemplo algumas obras de escritores participantes de os «Vencidos da
Vida» ou do «Grupo dos Cinco»: Antero de Quental, Ramalho Ortigão,
Guerra Junqueiro, Eça de Queirós e Oliveira Martins. São estes
grandes espíritos que, segundo Feliciano Ramos, «atenuam o seu
azedume em face dos homens e da natureza; tornam-se mais
complacentes; prestam mais atenção ao sentimento (...), numa
palavra, alcançam a serenidade intelectual dos espíritos
superiores». As últimas obras destes escritores exprimem o declínio
do naturalismo e o alvorecer da nova literatura espiritualizante e
idealista, a caminho da literatura
simbolista. É outra a atitude de Ramalho Ortigão nas «Últimas
Farpas» e no «Culto da Arte em Portugal». Guerra Junqueiro, em «Os
Simples», embebe-se em nacionalismo estético, o mesmo acontecendo
a Eça de Queirós na «Correspondência de Fradique Mendes», na
«Cidade e as Serras» e nas «Últimas Páginas». Oliveira Martins
debruçar-se-á sobre Nuno Álvares e «Os
Filhos de D. João I».
Encontramos, pois, a obra de que nos vamos ocupar integrada nesta
corrente idealista e construtiva. Na verdade, o autor, quase
esquece em «Os Filhos de D. João I» o materialismo
histórico, para dar a primazia à arte, aos estudos psicológicos.
Dá-nos uma visão geral e em certos aspectos pormenorizada da
dinastia de Avis, empregando poderosos recursos de expressão, prosa
descritiva, colorida e animada, embora a sua visão seja ainda algo
prejudicada pela preocupação de emprego de processos realistas. A
sua história não tem como única finalidade a narração de factos sem
ligação, mas sim o contribuir para a formação moral do povo
português, pelo conhecimento da vida virtuosa do passado. Já não
destrói totalmente, já não deita por
terra, mercê da sua crítica acérrima, o que é do seu país. Vai até
ao passado e de lá arranca figuras de retábulo, fazendo-as
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renascer, viver, para exemplo do futuro. É por isso que não nos devemos admirar ao ver as suas
figuras apresentadas sob um ângulo ou outro mais vincado, com prejuízo talvez da sua verdade
humana. É que a ele só lhe interessa o perfil moral das suas
personagens. Oliveira Martins adultera frequentemente os factos,
atribuindo-lhes uma significação que estão longe de possuir, emprestando muito do seu carácter e sensibilidade às personagens.
Isto valoriza o lado literário da sua obra, embora a prejudique
científica e historicamente. Ao descrever-nos a veneranda e rígida figura do Infante D. Henrique, Oliveira Martins, entusiasmado
pelas afinidades de carácter que encontra nesta personagem com
a sua própria pessoa, esquece-se talvez que está a descrever
outrem, dando-nos quase um auto-retrato psicológico. É certo que há
um grande paralelismo entre a sua vida e a do Infante, pois ambos
são seres onde domina uma vontade impaciente que não sofre que
qualquer realização seja protelada. São almas que tudo calcam, que
se sacrificam até ao âmago das suas forças, para que
uma ideia sonhada se torne uma realidade concreta. Desde muito jovem
que Martins foi obrigado a enfrentar a dura realidade da
vida, tomando a seu cargo os irmãos e mãe desamparados pela morte do
pai. Interrompe forçadamente os estudos e revela-se um
trabalhador dotado de grande maleabilidade e enorme capacidade de
trabalho. No entanto a vida intelectual nunca o deixou de
interessar, sobretudo os estudos históricos, não impedindo ainda
este interesse que se tivesse tornado um excelente perito em
minas e caminhos de ferro, onde operou modificações com grande
êxito.
O nosso escritor empresta muito da sua personalidade às personagens,
orientando a sua obra com um fim pedagógico e moralizante. As
personagens são, portanto, símbolos que a humanidade deve seguir.
Por isso, encontrou na dinastia de Avis os mais altos e valorosos
símbolos, os quais trata com desvelado
carinho e escrúpulo, desde a mãe modelo, D. Filipa de Lencastre, até
D. Duarte, que ele apresenta vítima da falta de energia e joguete de
incertezas. É todavia a austera figura do Infante D. Henrique a
que mais lhe agrada e a que melhor retrata quer física quer
moralmente. Nela se demora, nela, melhor diríamos, se enamora, como
se contemplasse a sua própria imagem voluntariosa num espelho.
Primeiro, o traço físico: «alto e corpulento, de largos
membros, com a pele tostada pelos sais e ventanias, os cabelos
negros, espessos, rijos e empinados, um bigode farto, negro também e hirsuto, este infante não era belo; pelo contrário. Faltava-lhe
/ 28 / na fisionomia o encanto da bondade sem o qual não há formosura. A dureza do seu olhar era antipática. Descendia
directamente do pai, no qual se vira um exemplo acabado do temperamento enérgico e tenaz, sem poesia, que sabe aliar a violência
à astúcia, quando o propósito formado o reclama para atingir um
fim. A vontade manda exclusivamente em homens destes, pouco
dados à contemplação». É assim que do bem delineado perfil
do nobre Infante ele se vai estender para a sua obra: «a simpatia e a grandeza dos homens, como foi o infante D. Henrique,
não está propriamente, pois, no carácter ou na individualidade:
está na empresa a que se devotaram. Devemos-lhe, nós, Portugueses, uma segunda pátria; e deve-lhe a civilização
europeia
uma das suas três ou quatro conquistas fundamentais. É isto que
faz dele um herói na mais nobre acepção da palavra». Porque o
deseja esculpir no austero material da vontade, os traços que lhe
imprime são duros, hirtos, quase desumanos. Daqui o retrato
moral: casto, abstémio, soldado e sacerdote dessa religião que
despontava (..), a dureza ingénita do carácter do Infante encontrava nas visões do seu plano um objecto e uma sanção tão
profunda (..,) que tinha alucinações de génio, julgando proceder
por mandados da divindade. Esta fé e esta inclinação de génio
(...) deviam concorrer para acentuar ainda mais o carácter reservado do Infante.
À primeira vista, o seu aspecto era
temeroso,
segundo diziam os que o tratavam, e, arrebatado em sanha, o
semblante tornava-se muito esquivo (...).
Mas o Infante não era expansivamente colérico, não tinha
acessos nem fúrias: era, pelo contrário, esquivo, isto é, reservado.
Amodorrava, franzia a testa, empinava as sobrancelhas e com a
palavra mansa e gesto comedido mandava passear quem o desgostava:
«Dou-vos a Deus, sejais de boa ventura!». Nunca foi
avaro e compreende-se, porque a sua paixão tinha objecto
diverso (...). Esse carácter fatídico e assustador vinha da alma,
que lhe devorava o peito, enleando-lhe não a vontade, mas sim as manifestações externas dela, nas relações com os seus semelhantes. Trazia na alma
um incêndio e por isso mesmo o
exterior
era gelado (...) Consumia os dias, velava as noites, estudando,
indagando, meditando (...)».
Para melhor e mais amplo conhecimento desta figura
singular e para exemplificação das virtudes acima referidas, eis
passagens dolorosas e difíceis da sua vida. Assim, logo após a tomada
de Ceuta, D. Henrique idealizou a conquista de Tânger, praça
forte, bem defendida pela moirama. Expôs esse plano ao pai, então já
velho, plano esse que foi rejeitado, atendendo à pobreza
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da nação e à potente defesa de Tânger. Mas o Infante não era homem
que desistisse à primeira contrariedade. respeitando a velhice e
vontade do pai, não mais o atormenta com pedidos; mas, após a morte
deste, cai como milhafre esfaimado sobre D. Duarte. Este, tal como o
pai, opõe-lhe o seu veto. A nação também se sente fatigada e como
que tem o pressentimento da catástrofe. D. Henrique, porém, não
desanima facilmente. Julga-se inspirado por Deus para a realização
deste feito, luta contra o rei, contra o povo e encontra o ponto
vulnerável, D. Leonor, esposa de D. Duarte, que está para ser mãe.
Sabe que o rei nada
nega à esposa e sobretudo nesta ocasião. É dona Leonor a sua nova
vítima. Esta está de acordo com os seus planos e promete interceder.
D. Duarte cai na armadilha e a autorização é dada, embora contra sua
vontade. Os preparativos são iniciados. Tudo parece adverso à
empresa; paira no ar um pressentimento de tragédia, de catástrofe. Mas D. Henrique está cego, está obcecado pela
ideia fixa da tomada de Tânger. E as naus partem para o seu fatal
destino. Após a derrota esmagadora e o cativeiro de D. Fernando, a
D. Henrique «cosiam-no remorsos como facadas ». E é então que,
«desenganado por fim e vergando sob o peso da
desgraça, veio ao Algarve enterrar-se na sua Tebaida de Sagres,
a engolir as lágrimas de desespero e raiva, não obstante tão cruéis
infortúnios não o abandonarem. Enlevado na sua ambição, o Infante
esquecia o luto e a vergonha pela esperança de prear de novo a caça
que voara». E sempre forte e tenaz propõe uma
segunda expedição a seu irmão. Este chega a duvidar da integridade mental do desvairado Infante. Uma segunda expedição seria nova
catástrofe e D. Duarte tem a consciência nítida da gravidade da
resolução». Outro homem, por tal forma vítima da fatalidade,
bateria contrito nos peitos (...) Ele não. Tinha a energia animal
preponderante, e oração, penitência, contemplação e piedade, tudo
isso transformava em trabalho ardente. Não se escondera em Sagres
para gemer, passivo a inclemência da sorte: fugira para lá, porque a
desforra do mundo inimigo havia de tirá-la, persistindo no seu plano». Enceta, assim, a sua grandiosa obra de
mostrar ao mundo novos mundos, erguendo bem alto o nome
de Portugal.
É talvez um esboço demasiado rígido, duro em excesso e não muito
certo, mas este exemplo de vontade parecia a Oliveira Martins
oportuno, para o momento político do final do século XIX.
Que se volvesse o olhar
para essa «Ínclita Geração» e que lá se
colhessem lições proveitosas para o presente e para o futuro.
Há um pouco de exagero, sem dúvida, na reconstituição
desta figura singular. Oliveira Martins idealizou nela o tipo de
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homem de vontade inabalável, feroz, imperativa. É assim que nos
apresenta o Infante. Não será talvez a verdade histórica, mas nos
principais traços há uma verdade simbolista que dá grandeza à
escura silhueta que do alto de Sagres, ia rasgando um Portugal
maior. É desta forma que Oliveira Martins é um apologista da
«Ínclita Geração», como Fernão Lopes e Zurara o foram. O seu
estilo assemelha-se muito ao do primeiro escritor, assim como se
lhe assemelha na maneira carinhosa como trata os infantes. No
entanto, enquanto aqueles dois historiadores põem em relevo nas
qualidades dos retratados, tendo em mira uma recompensa, pois
foram seus contemporâneos, Oliveira Martins exalta-os o mais
desinteressadamente, movido só pela fascinação que lhe causou
esta geração sublime, à qual devemos, em grande parte, o prestígio alcançado pelo nome de Portugal. |