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farol n.º 2 - mil novecentos e cinquenta e sete ♦ cinquenta e oito, págs. 20-22.

Vagueando pela Ria

Francisco da Silva Gomes dos Santos
(4.º ano)


NESTAS tardinhas outonais, quando o Sol é mais do que nunca o Deus todo poderoso que estende docilmente os seus numerosos e acolhedores braços, o coração do homem, ardendo em febre confusa de sensações, parece elevar-se e sonhar, sonhar baixinho!... As refulgências nítidas de luz; o brilho cristalino das águas ondeantes; o murmúrio acorde dos remos incansáveis; o vaivém contínuo das marés; os reflexos exóticos das pirâmides alvas e bizarras; enfim, todo este conjunto harmonioso de aguarelas, que transformam a nossa, a tão nossa ria, num quadro vivo e celestial, num quadro puro e maravilhoso, onde o coração que sente se vai esconder... e sentir...

Qualquer recanto é pitoresco; qualquer ervita que desponta, sorrateira, é uma imagem da luta natural e eterna pela vida; qualquer murmúrio incontido, que sai espontaneamente das águas entrechocadas, é um hino admirável que, entre múltiplas essências, parece louvar o Criador; tudo, tudo o é verdadeiramente um âmbito de singeleza, um horizonte de aguadas reais, simples, mas soberbas, é bem o que eu, talvez embalado pela atracção do sonho, apelido de éden.

Com efeito, as manchas coloridas e variegadas que a superfície das águas irrequietas deixa transparecer, envolvem os nossos olhares indiscretos, hipnotizam-nos, fascinam-nos. E, não contentes com tanto, atraem-nos, enleiam-nos, e penetram, irresistível e imparavelmente até ao mais subterrâneo dos nossos corações enamorados. Há então um despertar de mil ilusões, mais de mil embalas de criança.

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Mas tudo, – como confrange confessá-lo! – tudo é transitório, instável, ilusório. Depressa nos apercebemos de que vivemos, de que estamos a ver, e de que não sonhamos nem somos adormecidos pelo narcótico da crença. Um não sei quê de nostalgia vem preencher então o vácuo doloroso que o sonho deixou no nosso coração. Depois dos prazeres insubstituíveis do sonhar, nada é mais consolador e compensador que a nostalgia. E então seguimos, olhos postos na ria, mãos sobre o coração, alma complexa.

O sol baixa no ocaso, e, cheio de pleno poder e deslumbrante majestade, passa de deus a homem, para se curvar e dar-nos as boas noites. Deixa então o horizonte e vai dormir, descansar, sem o brilho constante e peculiar, num leito alcatifado de trevas densas. À nossa volta, apenas uma claridade duvidosa e quase opaca e um sem número de imagens, de espectros, de espirais rigorosas. A noite vem beijar enfim a terra, para dormir com ela um sonho nupcial maravilhoso. Mas olhemos novamente, se é que já deixámos de contemplar o que nos rodeia. Reparemos! Oh! Toda a Natureza vai dormir, toda a humanidade se vai refazer de mil canseiras quotidianas, mas só as águas não dormem, só a ria não adormece! Sublime! Duas correntes, ora silenciosas e sossegadas, ora murmurantes e buliçosas, correm a par, ofegantes, em direcção ao mar. Quando silenciosas, vão pensativas, tristes, desfeitas em lágrimas copiosas e cristalinas. Quando murmurantes, topam-se a cada instante, brincam infantilmente, vão numa algazarra deveras animada. Passam momentos, acumulam-se os minutos, as horas passam, passam os meses, os anos, os séculos, e as águas não cessam de labutar, dia e noite. Somos então levados a meditar nesta máquina prodigiosa que se chama Natureza. Somos então forçosamente levados a conceber urna mão criadora, um ser sobrenatural, que um dia, há muitos séculos, construiu esta máquina.

E Deus, o criador único, absoluto da Natureza, fica então como figura eminente, a bailar, a permanecer na nossa alma...

Continuamos e somos interrompidos subitamente por um clarão, um enorme clarão que vem do cimo do universo e atinge a terra fascinantemente, tornando-a uma superfície mal alumiada, onde tudo fica então submetido aos caprichos dum colorido deslumbrantemente esbatido.
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A lua acaba de enviar sobre a ria todo o esplendor do seu fúlgido brilho e acaba de produzir um dos mais belos quadros que os olhos pecadores e desinteressados do homem podem presenciar nesta vida terrena e espinhosa.

Este recanto, este pedaço de ria que nos ladeia, é agora, não um local escassamente iluminado; não um recanto belo, mas sim um paraíso onde a musa acaba de vir poisar indiscretamente o seu manto proverbial. Todo o coração aqui pode ter ilusões; todo o ser aqui pode descansar tranquilo; todo o poeta aqui se pode inspirar; só a boca humana não pode exprimir o quanto de sublime, belo e divino há neste berço, que embala todos aqueles que, levados por uma corrente de ilusória saudade, vêm repousar nele para recordar e chorar os tempos da infância, aqueles tempos em que se é menino...

 

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04-06-2018