Francisco da Silva
Gomes dos Santos
(4.º ano)
NESTAS tardinhas outonais, quando o Sol é mais
do que nunca o Deus todo poderoso que estende
docilmente os seus numerosos e acolhedores braços, o coração do
homem, ardendo em febre confusa de sensações, parece elevar-se
e
sonhar, sonhar baixinho!... As refulgências nítidas de luz; o
brilho cristalino das águas ondeantes; o murmúrio acorde dos remos
incansáveis; o vaivém contínuo das marés; os reflexos exóticos das
pirâmides alvas e bizarras; enfim, todo este conjunto harmonioso de
aguarelas, que transformam a nossa, a tão nossa ria, num quadro vivo e
celestial, num quadro puro e maravilhoso, onde o coração que sente
se vai esconder... e sentir...
Qualquer recanto é pitoresco; qualquer ervita que desponta,
sorrateira, é uma imagem da luta natural e eterna pela vida;
qualquer murmúrio incontido, que sai espontaneamente das águas
entrechocadas, é um hino admirável que, entre múltiplas essências,
parece louvar o Criador; tudo, tudo o é verdadeiramente um âmbito de
singeleza, um horizonte de aguadas reais, simples, mas soberbas, é
bem o que eu, talvez embalado pela atracção do sonho, apelido de
éden.
Com efeito, as manchas coloridas e variegadas que a
superfície das águas irrequietas deixa transparecer, envolvem
os nossos olhares indiscretos, hipnotizam-nos, fascinam-nos. E, não
contentes com tanto, atraem-nos, enleiam-nos, e penetram,
irresistível e imparavelmente até ao mais subterrâneo dos nossos
corações enamorados. Há então um despertar de mil ilusões, mais de
mil embalas de criança.
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Mas tudo, – como confrange confessá-lo! – tudo é transitório,
instável, ilusório. Depressa nos apercebemos de que vivemos, de que
estamos a ver, e de que não sonhamos nem
somos adormecidos pelo narcótico da crença. Um não sei quê de
nostalgia vem preencher então o vácuo doloroso que o sonho deixou no
nosso coração. Depois dos prazeres insubstituíveis do sonhar, nada
é mais consolador e compensador que a nostalgia. E então seguimos,
olhos postos na ria, mãos sobre o coração, alma complexa.
O sol baixa no ocaso, e, cheio de pleno poder e
deslumbrante majestade, passa de deus a homem, para se curvar e dar-nos as
boas noites. Deixa então o horizonte e vai dormir, descansar, sem o
brilho constante e peculiar, num leito alcatifado de trevas densas.
À nossa volta, apenas uma claridade duvidosa e quase opaca e um
sem número de imagens, de espectros, de espirais rigorosas. A noite
vem beijar enfim a terra, para dormir com ela um sonho nupcial
maravilhoso. Mas olhemos novamente, se é que já deixámos de
contemplar o que nos rodeia. Reparemos! Oh! Toda a Natureza vai
dormir, toda a humanidade se vai refazer de mil canseiras
quotidianas, mas só as águas não dormem, só a ria não adormece!
Sublime! Duas correntes, ora silenciosas e sossegadas, ora
murmurantes e buliçosas, correm a par, ofegantes, em direcção ao
mar. Quando silenciosas, vão pensativas, tristes, desfeitas em
lágrimas copiosas e cristalinas. Quando murmurantes, topam-se a cada
instante, brincam infantilmente, vão numa algazarra deveras animada.
Passam momentos, acumulam-se os minutos, as horas passam, passam os
meses, os anos, os séculos, e as águas não cessam de labutar, dia e
noite. Somos então levados a meditar nesta máquina prodigiosa que
se chama Natureza. Somos então forçosamente levados a conceber urna
mão criadora, um ser sobrenatural, que um dia, há muitos séculos,
construiu esta máquina.
E Deus, o criador único,
absoluto da Natureza, fica então como figura eminente, a bailar, a
permanecer na nossa alma...
Continuamos e somos interrompidos subitamente por um
clarão, um enorme clarão que vem do cimo do universo e atinge a
terra fascinantemente, tornando-a uma superfície mal alumiada, onde
tudo fica então submetido aos caprichos dum colorido
deslumbrantemente esbatido.
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A lua acaba de enviar sobre a ria todo o esplendor do
seu fúlgido brilho e acaba de produzir um dos mais belos quadros que
os olhos pecadores e desinteressados do homem
podem presenciar nesta vida terrena e espinhosa.
Este recanto, este pedaço de ria que nos ladeia, é agora,
não um local escassamente iluminado; não um recanto belo,
mas sim um paraíso onde a musa acaba de vir poisar indiscretamente o seu manto proverbial. Todo o coração aqui
pode ter ilusões; todo o ser aqui pode descansar tranquilo;
todo o poeta aqui se pode inspirar; só a boca humana não
pode exprimir o quanto de sublime, belo e divino há neste
berço, que embala todos aqueles que, levados por uma corrente de ilusória saudade, vêm repousar nele para recordar
e chorar os tempos da infância, aqueles tempos em que se é
menino... |