Na
inteira compreensão do dever de orientador dos actuais alunos do
Liceu de Aveiro, lembrou-se o digno Reitor, meu estimado Amigo, de
marcar ao antigo e modesto aluno do Liceu, irmão e condiscípulo do
homenageado, um ponto de português de singular dificuldade.
Tivemos de realizar um
esforço de memória através da implacável sedimentação do tempo e
procurar desta forma arrancar da subtil estratificação em que a vida
se sepulta dia a dia, um pouco como os escavadores de cidades mortas
na pesquisa de tesouros e de sonhadas maravilhas ocultas, um espólio
mutilado e bem pobrezinho. Esbatidas pelo tempo e pela idade, os 73
anos só muito debilmente nos permitem recordar duas imagens da época
doirada em que frequentámos juntos o Liceu Nacional de Aveiro, entre
1899 e 1903.
Mas «O Farol», que é
guia, luz e esperança, nos ilumine e conduza através dos negrumes e
dos escolhos do mar imenso das coisas vividas e das saudades de nós
mesmos.
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Por que motivo foram
transferidos do Liceu Central do Porto para o Liceu de Aveiro o
antigo estudante António Faria Carneiro Pacheco e o rabiscador deste
exercício?
Em 1899 deflagrou no
Porto a peste bubónica e estabeleceu-se o cordão sanitário em largo
perímetro da cidade, com todas as limitações de acesso e receio de
população. A Escola Académica do Porto em que estávamos internados
lembrou-se de estabelecer uma sucursal na «Veneza portuguesa» e o
Colégio Aveirense dirigido em parceria pelo Padre João Ferreira
Leitão recebeu algumas dezenas de internos daquele estabelecimento.
Nosso Pai, Dr. António
Carneiro de Oliveira Pacheco, grande
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advogado nortenho e político, entendeu em extremos de amor paternal
afastar-nos do foco pestífero, e aí viemos, juntamente com o nosso
irmão mais novo, Augusto, até à doce pátria dos ovos moles e dos
afamados mexilhões.
Aqui concluímos o curso
liceal.
Produziu-nos impressão
profunda a mudança de horizontes e de ambiente. Saímos dum grande
meio escolar e urbano para as deleitosas margens da Ria e a quietude
da cidadezinha gentil. E certamente já notaram os colegas de hoje
quanto de estranheza e até de chocante hostilidade sofre o pequeno
estudante ao contacto com novo meio. Sem dúvida, fôramos empolgados
pela sugestiva paisagem, mas o espelho imenso dos esteiros havia de
retratar as nossas saudades dos alegres campos e das rudes serranias
nativas. Nem as canções melodiosas das varinas, nem a colorida e
dura labuta fenícia do moliceiro ou do pescador conseguiam
desvanecer o amor à terra. Mas era forçosa a adaptação e imperioso o
cumprimento do dever.
E os pequenos
estudantes, António de 11 anos, Augusto de 10 anos e Mário de 14
subiram resolutos e unidos a escadaria do liceu, a que o vulto
tribunício de José Estêvão emprestava viril confiança.
Recordo-me de que o
então Secretário, Dr. Elias Fernandes Pereira, meticuloso na função
burocrática, opôs teimosa estranheza ao facto de as certidões de
idade dos dois condiscípulos mencionarem erradamente, na sua, dois
oragos – Santa Maria Madalena de Santo Tirso –, e a intransigência
algébrica daquele «oculto e grande cabo» apenas se aquietou com o
novo documento e a explicação de que a freguesia é Santa Maria
Madalena, e Santo Tirso o alfoz do antiquíssimo convento beneditino
em que a mesma foi erecta.
Temos à mão os boletins
das notas de frequência da 2.ª classe, em que o futuro reformador da
escola e da mentalidade académica tinha o n.º 8. Ao narrador coube o
n.º 25. Lamentamos não possuir os subsequentes boletins, nem nos
recordamos já se a prática salutar foi substituída na informação aos
pais e aos responsáveis da educação.
Mas neste primeiro
contacto com o novo liceu e novos professores logo se revela a
poderosa inteligência e a metódica aplicação do aluno António Faria
Carneiro Pacheco, que numa uniformidade impressionante obteve em
todas as disciplines (Português, Latim, Francês, Geografia,
História, Ciências Naturais e Desenho) a nota de Bom e Muito Bom.
Nos anos seguintes impôs-se o fulgurante talento do aluno que
conquistava o primeiro lugar no curso, como mais tarde havia de
conquistar em todas as
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cadeiras da Faculdade de Direito, no Doutoramento, na Cátedra, no
Foro, na Política e na Diplomacia.
Testemunha e constante
condiscípulo do distinto estudante, foi-nos dado o privilégio de
acompanhar com orgulho a sucessão ininterrupta de tantos triunfos.
Sempre correcto,
intransigente e de carácter rígido e independente, nunca cometeu um
deslize nem tolerou subserviências ou atitudes dúbias.
E na rijeza desta
vontade nunca amortecida aqui fica a traços largos o perfil do rapaz
que um dia daria o talento, a devoção, a energia e a própria vida em
total devoção à Pátria.
Em todo o escolar reside
em potência a precoce fascinação do jornalismo. Também o biografado
dirigiu e colaborou em jornaizinhos liceais. E entrou numa famosa
representação no Teatro Aveirense em espectáculo promovido pela
Academia.
Não ficaria bem o
silêncio sobre alguns dos nossos mais queridos professores que ao
aluno manifestaram o mais carinhoso apreço, correspondido por igual
já mesmo na situação de Ministro.
E acodem-nos numa rápida
visão as figuras respeitadas e cultas do Dr. Rodrigues Soares,
austero e proficientíssimo professor de Francês, a bondade e humana
simpatia do Padre Manuel Rodrigues Vieira, que em dias de magro
comia «bifes de pantera», a impassível personalidade do sábio
filósofo Dr. Ildefonso Marques Mano e a vivacidade coimbrã do Dr.
Álvaro de Almeida d'Eça e até... o vulto patriarcal do Dr. Elias,
temível troçador do «estenderete» do cábula à vara que desmanchava
com ironias culinárias a propósito da má condução do Teorema: ... «e
batatas com bacalhau, azeite e algum vinagre e... pode sentar-se».
Mário Faria Carneiro
Pacheco
N.º 11 da 5.ª classe,
Conservador do
Registo Civil aposentado e Advogado |