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farol n.º 2 - mil novecentos e cinquenta e sete ♦ cinquenta e oito, págs. 8-10

O antigo estudante do Liceu de Aveiro

Na inteira compreensão do dever de orientador dos actuais alunos do Liceu de Aveiro, lembrou-se o digno Reitor, meu estimado Amigo, de marcar ao antigo e modesto aluno do Liceu, irmão e condiscípulo do homenageado, um ponto de português de singular dificuldade.

Tivemos de realizar um esforço de memória através da implacável sedimentação do tempo e procurar desta forma arrancar da subtil estratificação em que a vida se sepulta dia a dia, um pouco como os escavadores de cidades mortas na pesquisa de tesouros e de sonhadas maravilhas ocultas, um espólio mutilado e bem pobrezinho. Esbatidas pelo tempo e pela idade, os 73 anos só muito debilmente nos permitem recordar duas imagens da época doirada em que frequentámos juntos o Liceu Nacional de Aveiro, entre 1899 e 1903.

Mas «O Farol», que é guia, luz e esperança, nos ilumine e conduza através dos negrumes e dos escolhos do mar imenso das coisas vividas e das saudades de nós mesmos.

Por que motivo foram transferidos do Liceu Central do Porto para o Liceu de Aveiro o antigo estudante António Faria Carneiro Pacheco e o rabiscador deste exercício?

Em 1899 deflagrou no Porto a peste bubónica e estabeleceu-se o cordão sanitário em largo perímetro da cidade, com todas as limitações de acesso e receio de população. A Escola Académica do Porto em que estávamos internados lembrou-se de estabelecer uma sucursal na «Veneza portuguesa» e o Colégio Aveirense dirigido em parceria pelo Padre João Ferreira Leitão recebeu algumas dezenas de internos daquele estabelecimento.

Nosso Pai, Dr. António Carneiro de Oliveira Pacheco, grande / 9 / advogado nortenho e político, entendeu em extremos de amor paternal afastar-nos do foco pestífero, e aí viemos, juntamente com o nosso irmão mais novo, Augusto, até à doce pátria dos ovos moles e dos afamados mexilhões.

Aqui concluímos o curso liceal.

Produziu-nos impressão profunda a mudança de horizontes e de ambiente. Saímos dum grande meio escolar e urbano para as deleitosas margens da Ria e a quietude da cidadezinha gentil. E certamente já notaram os colegas de hoje quanto de estranheza e até de chocante hostilidade sofre o pequeno estudante ao contacto com novo meio. Sem dúvida, fôramos empolgados pela sugestiva paisagem, mas o espelho imenso dos esteiros havia de retratar as nossas saudades dos alegres campos e das rudes serranias nativas. Nem as canções melodiosas das varinas, nem a colorida e dura labuta fenícia do moliceiro ou do pescador conseguiam desvanecer o amor à terra. Mas era forçosa a adaptação e imperioso o cumprimento do dever.

E os pequenos estudantes, António de 11 anos, Augusto de 10 anos e Mário de 14 subiram resolutos e unidos a escadaria do liceu, a que o vulto tribunício de José Estêvão emprestava viril confiança.

Recordo-me de que o então Secretário, Dr. Elias Fernandes Pereira, meticuloso na função burocrática, opôs teimosa estranheza ao facto de as certidões de idade dos dois condiscípulos mencionarem erradamente, na sua, dois oragos – Santa Maria Madalena de Santo Tirso –, e a intransigência algébrica daquele «oculto e grande cabo» apenas se aquietou com o novo documento e a explicação de que a freguesia é Santa Maria Madalena, e Santo Tirso o alfoz do antiquíssimo convento beneditino em que a mesma foi erecta.

Temos à mão os boletins das notas de frequência da 2.ª classe, em que o futuro reformador da escola e da mentalidade académica tinha o n.º 8. Ao narrador coube o n.º 25. Lamentamos não possuir os subsequentes boletins, nem nos recordamos já se a prática salutar foi substituída na informação aos pais e aos responsáveis da educação.

Mas neste primeiro contacto com o novo liceu e novos professores logo se revela a poderosa inteligência e a metódica aplicação do aluno António Faria Carneiro Pacheco, que numa uniformidade impressionante obteve em todas as disciplines (Português, Latim, Francês, Geografia, História, Ciências Naturais e Desenho) a nota de Bom e Muito Bom. Nos anos seguintes impôs-se o fulgurante talento do aluno que conquistava o primeiro lugar no curso, como mais tarde havia de conquistar em todas as / 10 / cadeiras da Faculdade de Direito, no Doutoramento, na Cátedra, no Foro, na Política e na Diplomacia.

Testemunha e constante condiscípulo do distinto estudante, foi-nos dado o privilégio de acompanhar com orgulho a sucessão ininterrupta de tantos triunfos.

Sempre correcto, intransigente e de carácter rígido e independente, nunca cometeu um deslize nem tolerou subserviências ou atitudes dúbias.

E na rijeza desta vontade nunca amortecida aqui fica a traços largos o perfil do rapaz que um dia daria o talento, a devoção, a energia e a própria vida em total devoção à Pátria.

Em todo o escolar reside em potência a precoce fascinação do jornalismo. Também o biografado dirigiu e colaborou em jornaizinhos liceais. E entrou numa famosa representação no Teatro Aveirense em espectáculo promovido pela Academia.

Não ficaria bem o silêncio sobre alguns dos nossos mais queridos professores que ao aluno manifestaram o mais carinhoso apreço, correspondido por igual já mesmo na situação de Ministro.

E acodem-nos numa rápida visão as figuras respeitadas e cultas do Dr. Rodrigues Soares, austero e proficientíssimo professor de Francês, a bondade e humana simpatia do Padre Manuel Rodrigues Vieira, que em dias de magro comia «bifes de pantera», a impassível personalidade do sábio filósofo Dr. Ildefonso Marques Mano e a vivacidade coimbrã do Dr. Álvaro de Almeida d'Eça e até... o vulto patriarcal do Dr. Elias, temível troçador do «estenderete» do cábula à vara que desmanchava com ironias culinárias a propósito da má condução do Teorema: ... «e batatas com bacalhau, azeite e algum vinagre e... pode sentar-se».

Mário Faria Carneiro Pacheco

N.º 11 da 5.ª classe, Conservador do
Registo Civil aposentado e Advogado

 

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06-04-2013