Rui Manuel L. Araújo
1.º Prémio – Prosa – 3.°
Ciclo
SILÊNCIO
fundo.
Uma porta entreaberta.
Meia luz.
Uma respiração branda,
compassada, em ritmo...
Um ruído, um rumor
surdo. Depois silêncio. De novo algo se ouve.
Alguém que ressona.
Lá ao fundo, no escuro,
arqueja o velho despertador num tic-tac monótono e pesado. O
ponteiro grande avança, avança cada vez mais através daquele
silêncio profundo e morno. Corre, corre, avançando no seu passinho
miúdo, mas certo.
Assim é o tempo.
Eis que chega. Algo
ressoa no escuro, arrepiando o ambiente. Alguém mexe, rolando no
quente, mergulhando no travesseiro, afundando-se mais e mais....
Uma mão sai, tacteando
nas trevas. Tacteia e encontra.
Tudo cai de novo em
silêncio.
Mais uma volta e mais
outra e aquele alguém adormece.
O ponteiro grande corre
e corre cada vez mais no silêncio morno e fundo.
Abrem-se uns olhos em
sobressalto, vermelhos e inchados. Alguém num repente, melenas
descaídas e olheiras fundas, salta da cama lançando longe cobertores
e lençóis.
De pé, pijama de
listras, alguém se espreguiça e uma boca grande se abre num bocejo
quente.
Um outro repente e as
portadas abertas de par em par.
Alguém se ofusca por
momentos.
Depois um céu azul muito
aberto, caindo sobre o vermelho dos telhados, brilhantes ainda no
seu manto de orvalho.
Ao escancarar a janela
alguém pensa nesta natureza bela, toda luz e cor. Uma fufada fria e
cortante e um sol a brilhar lá no alto, muito no alto.
A carroça das hortaliças
correndo no empedrado, os tamancos dum bom velhote batendo calçada
acima, as leiteiras muito
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apressadas nas suas batas brancas... tudo isto numa manhã de outono.
Já vão longe as matinas.
Ali um telhado, mais
além outro e ainda outro, vermelhos, dum vermelho garrido salpicado
pelo verde amarelecido do musgo.
Num beiral soalheiro um
pombo atrevido e uma pombinha recatada beijam-se discretamente.
Beijos e arrulhos.
Acolá, noutro telhado um
gato lambe-se todo, estirado ao sol acolhedor.
E pronto. Alguém sai.
Fecha-se uma porta.
E lá na cama sozinho
fica o travesseiro amarrotado a brincar satisfeito com um fio de luz
matutina...
◄►
Noite encharcada e fria.
Sem lua.
Por trás das vidraças um
vulto recortado na claridade.
Sorri, não. Chora,
também não. Que faz, que faz ele?
Olha para mim, sim para
mim que sou a chuva.
E eu caio gota a gota lá
do cimo, do escuro....
Caio num pingo grosso
sobre o asfalto negro, brilhando à luz mortiça do candeeiro da
esquina. Coitada de mim, que de tão alto caio.
Venho, poiso de mansinho
sobre as ralas folhas de uma tília, escorrego pelas nervuras e
também caio.
E ali um guarda-chuva,
muito preto e esticado a amparar-me na queda. Eu lá fico sem
escorregar.
Embalo-me além numa poça
de água barrenta; bem no meio da rua, onde um pé grande, desmedido
me calca e esmaga.
Dorida, eu grito em voz
rouca.
Aqui, nesta janela de
caixilhos desbotados, cá vou eu devagarinho, vidro abaixo... Lá de
dentro vem um bafo quente, embacia-se o vidro e um dedo comprido e
magro risca um boneco.
Tombando das trevas,
saltitando no telhado eu canto chorosa.
Desço grossa, em grandes
pingos sobre a cidade e depois, arrepiada, correndo na valeta, caio
num buraco escuro e muito fundo.
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Abre-se acolá uma porta
e sai uma mãozinha pequenino e rechonchuda.
Deixei-me cair
devagarinho.
E aquela mão pequenina
arrepiou-se e fugiu. Uma toalha, um breve esfregar e morri.
Triste fim. Eu que fui, sou e serei sempre as lágrimas do SENHOR.
◄►
Um vento frio e cortante
silva pelas frestas das janelas bem trancadas.
Lá fora, um nordeste
gelado assobiando nos ramos despidos I e enrugados...
A última, a derradeira
folha, queimada e amarelecida pela geada desprende-se, baloiça no ar
por momentos e depois lentamente cai morta.
Mas aqui está quentinho.
Ali, debaixo da mesa, um crepitar vivo faz adivinhar a velha
braseira sempre acolhedora.
Ouve-se o tilintar dos
garfos, o tinir dos copos, o barulho duma conversa animada, o riso
alegre das crianças...
A porta está aberta.
Entremos.
Uma mesa enfeitada,
coberta de bolos, queijadas, filhós, rabanadas e tanta coisa
apetitosa.
Ainda ali, bem no centro
vemos duas pinhas a brilhar à luz trémula das velas.
À volta da mesa, muitas
pessoas... a avozinha vestida de preto e o cabelo todo branco,
branquinho de neve, as faces rosadas e os cabelos loiros dos
netinhos, o sorriso aberto da mamã, e os óculos grossos e a careca
brilhante do papá e a cadeira vazia do avozinho.
Junto aos guardanapos
ali estavam os raminhos airosos de azevinho.
O peru, recheado e bem
tostadinho, lá estava no aparador, ao lado da faca brilhante e
afiada.
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À mesa, uma mão pega numa concha bem cheia de sopa, enche um prato,
outro e mais outro...
É uma rica canja com
suculentos nacos de chouriço a boiar. E a terrina sempre a fumegar.
E assim se foi comendo
naquela noite, uma noite de natal agreste e ventosa.
Acabaram por fim. Um
arrastar de cadeiras e uma voz doce, alquebrada pela velhice, fez-se
ouvir no silêncio da sala:
«Pelo avôzinho, meus
filhos, Avé-Maria, cheia de graça....»
E ela, a pobre velhinha,
de olhos baixos, chorava.
Na mesa, as velas também
choravam em silêncio, choravam lágrimas de cera.
Lá longe, na escuridão,
o sino batia as suas badaladas imensas. Chamava à missa do galo.
No alto, muito no cimo
uma estrelinha tremia de frio.
SENHOR? |