ARTISTAS ENTRE NÓS - ZÉ AUGUSTO
Amaro Neves – págs. 15 e 16
Zé Augusto é, certamente, dos nomes mais conceituados entre os actuais
ceramistas aveirenses. Ninguém tem dúvidas de que assim é e como talo
reconhecia, no Litoral de 3 de Setembro de 1976, o seu próprio director,
Dr. David Cristo, escrevendo, a propósito de uma exposição que o artista
preparava então, na cidade: "Zé Augusto é, hoje, um dos mais lídimos
representantes da multissecular e prestigiadíssima barrística
aveirense".
Dotado de invulgar sensibilidade
no amanho do barro, ao qual se tem entregado de alma e coração, soube
criar como ninguém, num misto de caricatura e altivez graciosa, as
figuras típicas da nossa terra, agarradas estoicamente à vida que acaba
por definir cada um desses tipos sociais. São os seus "bonecos" (como o
artista gosta de lhes chamar) e numa apreciação popular que muito lhe
agrada, também ele concorda que o que mais encanta neles é serem
simultaneamente "tão feios e tão engraçados".
É assim que, numa atitude de
criador, ele tem dado a vida a cortejos etnográficos sem conta, em que
avultam os homens do mar, da ria, das salinas, do campo e da vida
urbana, das artes e das profissões liberais, mulheres da Beira-Mar com
os seus trajos e utensílios... apanhados pela crítica do artista, mas
trabalhados com a mestria invulgar de quem nasceu fadado para tornar
grande uma arte olhada tantos séculos como arte menor, ainda que tão ao
gosto popular e a mais nacional das artes portuguesas.
Também as tradições e as
actividades decadentes que até nós chegaram (e outras que só lembram aos
mais velhos) por ele têm sido tratadas e documentadas, face à voracidade
do tempo e à "insignificância" que lhes atribuem os poderes políticos
que, apesar de tudo, sabem os pergaminhos com que foram honradas,
nomeadamente a partir do século XVI, as tradicionais actividades
cerâmicas de Aveiro.
Com Zé Augusto podemos dizer
novamente que, "em Aveiro, é de barro a corte do Céu", como escrevia o
Dr. David Cristo em estudo sobre a barrística aveirense do século
XVII-XIX. Na verdade, os santos mais populares na região como S.
Gonçalinho, Santo António e a princesa Santa Joana, a par com presépios,
Santos Cristos e em particular a Virgem das Virgens, voltaram a ser de
barro e dignificados com este vil pó que tornou ricas as terras do baixo
Vouga. Curiosamente, no entanto, as cores (se as há) e os adornos ou
simplesmente o ar sorridente dos componentes da corte celeste falam uma
linguagem diferente, em que as penas do purgatório e os fogos do inferno
parecem ter sido banidos.
E neste aspecto, também,
estabelecidas as diferenças de concepção religiosa, quanta proximidade
dos escultores barristas que em Seiscentos e Setecentos aqui produziram
imaginária de boa qualidade, justamente apreciada por estudiosos,
coleccionadores e museus.
José Augusto Ferreira dos Santos,
de seu nome completo, nasceu em pleno coração do bairro da Beira-Mar, na
rua do Vento, freguesia da Vera-Cruz, a 12 de Fevereiro de 1930. Foi sua
mãe Maria dos Prazeres Máxima e seu pai Joaquim Ferreira Oliveira Júnior
que, depois de ter aprendido o ofício de sapateiro como herança, viria a
exercer a profissão de enfermagem, conhecido por Joaquinzinho do
Lactário. Restantes familiares dedicaram-se às tradicionais tarefas do
sal ou emigraram, não constando que algum tenha andado ligado às artes
do barro.
Zé Augusto, porém, viria a
frequentar as aulas de Desenho e Pintura na Escola Comercial e
Industrial Fernando Caldeira em Aveiro, em cujas matérias marcou
presença digna de registo, tendo como professores Júlio Sobreiro e
Porfírio de Abreu, na primeira, Gervásio Aleluia e Ernâni Moreira, na
segunda. Mais tarde frequentou também as aulas de Escultura do mestre
Mário Truta, experiência que determinaria parte da sua vida.
Entretanto, já a iniciação na
cerâmica ia longe, tendo começado como servente de oleiro e auxiliar de
forneiro nas "Faianças S. Roque", onde esteve de 1946 a 1948; os dois
seguintes foram dedicados à "Artibus", sita no canal da Fonte Nova, onde
trabalhou como oleiro e ocasionalmente praticou a pintura cerâmica; de
1950 a 1973 esteve ligado à "Aleluia", também localizada no canal da
Fonte Nova, dedicando-se nas suas oficinas artísticas à pintura de
painéis de azulejo e desenvolvendo actividade de modelador; ao mesmo
tempo e conjuntamente com outros, iniciou uma experiência de certa
autonomia em part-time numa oficina que se situava na viela da Azenha,
freguesia de Aradas, e dava pelo nome de "Barros de Aveiro".
Em 1973 deu noivo rumo à sua vida,
embarcando para Angola, onde montou, com seu irmão Manuel, na cidade de
Sá da Bandeira, uma oficina cerâmica. Os acontecimentos resultantes do
25 de Abril, com o cortejo de alterações que se deram nessa antiga
colónia portuguesa, fazem-no regressar, integrando-se nas "Faianças do
Outeiro", em Águeda, como modelador, ao mesmo tempo que, nas horas
vagas, relança os seus trabalhos - os seus bonecos!, na oficina de sua
casa, na rua de Ílhavo (depois chamada de Mário Sacramento), n° 51.
A partir de 1976 deixa as
"Faianças do Outeiro" e dedica-se com entusiasmo à construção de nova
oficina e casa, face ao acanhado espaço em que laborava. Não abandonou,
porém, a actividade cerâmica, continuando a ser a velha oficina local de
encontro de artistas e apreciadores da sua capacidade criativa.
Com uma experiência tão rica,
colhida nas fábricas mais evoluídas da cerâmica artística do Distrito de
Aveiro, Zé Augusto é hoje nome representado em vários museus do país e
em grandes colecções nacionais e estrangeiras, acorrendo com frequência
muitos deste à sua oficina por saberem da dificuldade de encontrar no
mercado ou em exposições trabalhos de pura criação do artista. No
entanto, sempre que há qualquer certame de maior vulto no campo das
artes de Aveiro, a sua presença tem sido uma constante, mais pela
qualidade que pela quantidade. Neste sentido, várias vezes tem visto a
sua obra galardoada, apesar de não ter tempo para entrar em concursos e
não estar à espera de prémios.
Nós, que não nos contamos entre o
reduzido número daqueles que têm direito à categoria de artista, tudo
faremos, também, para que as artes da nossa região encontrem espaço e
condições de desenvolvimento, nomeadamente as que se nos deparam como
menos favoreci das da sorte, e todavia se identificam connosco,
trabalhadas por quem tem méritos e usa deles para valorizar o nosso
património. É que o património cultural também é a criação artística
qualquer que ela seja. Por isso e sempre, esperamos mais trabalhos e
mais "bonecos" dos ceramistas aveirenses e, em particular, do Zé
Augusto.
O mérito, indiscutível, que a
outros foi reconhecido graças à divulgação feita pelos órgãos de
informação, faz-nos esperar que também, em breve, dando-lhe o destaque
merecido, façam chegar a sua vez!
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