JOSÉ AUGUSTO, UM HOMEM NASCIDO DA ARGILA
Vasco Branco – págs. 5 e 6
Aveiro foi uma cidade plana,
branca e líquida. Assim o escrevi inúmeras vezes. Hoje, já o não faria
com essa facilidade porque, na retina, os constantes atentados à sua
virgindade arquitectónica. Mas suponho que vivemos ainda numa região
privilegiada pelo aparecimento constante de valores adentro das artes
plásticas, como das artes rítmicas. Só que o conhecimento do facto pelas
entidades responsáveis pela cultura do país, gente sediada na capital,
ou tem sido nulo ou frequentemente tardio. Os íncolas dessa nossa Lisboa
nunca desceram à paisagem que lhes serve de mero enquadramento
geográfico, se não através de surtos meramente ocasionais apressados e,
portanto, pouco ou nada expressivos.
A despeito do olvido sistemático
(perdoem-me se exagero), cá nos vamos governando estranhos e quaisquer
influências promocionais. E este divórcio, para nós, já volveu hábito.
Escrevo tudo isto a propósito de um artista (porque se trata de um
verdadeiro artista) vivendo as suas dificuldades à margem de quaisquer
estímulos alheios ao seu próprio esforço. Há muito que nos contentamos
com o entusiasmo dos nossos locais vivendo, assim, uma espécie de
forçado narcisismo que o hábito já transformou em necessário alimento.
Com o José Augusto, o artista em
causa, acontece não ter podido furtar-se à fatalidade no que concerne à
exigência da manutenção de um nível de vida que lhe permitisse a procura
de um caminho sem a obsessão constante das condições mínimas de
sobrevivência o que, quanto a mim, lhe limitou, logo à partida os seus
voos legítimos da superação artística. Tudo isto agravado pelo gosto
duvidoso dum público comprador oscilando ainda em períodos próximos da
pedra lascada.
Durante o primeiro decénio da
existência do grupo Aveiro/Arte, de que me honro de ter sido um sócio
fundador, eu visitava, sistematicamente, a casa-oficina do José Augusto,
ali na rua Mário Sacramento, frente às Pombinhas. Junto escolhíamos a
sua presença necessária na exposição anual obrigatória. E a sua voz
magoada, que ainda trago nos ouvidos, sobre as suas inúmeras limitações
de carácter material, e de que ele tinha a consciência plena, expressava
o enorme desgosto de não poder criar com inteira liberdade. De facto, a
necessidade obrigava-o a repetir pequenos trabalhos que ele tinha como
menores e que não correspondiam exactamente ao seu talento e gosto
pessoal. Pena é que este desequilíbrio entre o que se deseja criar e o
que realmente importa fazer, seja o real imperativo que condiciona
muitos e autênticos artistas. E outro tanto tem acontecido a inúmeros
criadores geniais espalhados pelo espaço-tempo. Lembro apenas o
judeu-italiano Modigliani a quem a necessidade obrigou à venda de
desenhos pelos cafés de Paris sem o valor acrescentado que o seu génio
justificaria por inteiro.
Seduzido pelo "eldorado" que lhe
sopravam das nossas áfricas, para aí partiu o nosso artista José Augusto
cheio de esperança de que a sua arte era real garantia. Mas o destino
não estava a seu lado e para o contrariar trouxe-lhe a guerra colonial
com os malefícios que todos conhecemos.
Este pequeno grande homem, de novo
no continente, espremeu a coragem suficiente para tudo recomeçar a
partir da estaca zero.
Este gesto define o homem porque o
artista não necessita de se valorizar através de quaisquer romances.
Esse nunca foi esquecido aqui, na sua terra. Ninguém se esquecera da sua
arte mais conseguida, quanto a mim, aquela que executa com folha de
barro vermelho e que continua com uma categoria inigualável. O José
Augusto nasceu com as mãos feitas na matéria argilosa. Daí o sóbrio
requinte (seja-me relevada a aparente contradição), o equilíbrio das
formas, a verdade plástica das suas adoráveis figuras.
Mas o Zé experimentou
variadíssimas técnicas, algumas delas muitíssimo dignas de registo, mas
cedo verificou serem invendáveis por falta de adesão de muitos daqueles
que, por pura demagogia, afirmavam desejar uma arte inovadora.
De qualquer maneira, bastava a sua
perícia na feitura das suas figuras populares para o creditar entre os
melhores barristas do nosso país. Mas ele é um artista completo. Os seus
desenhos têm imaginação criadora e domina a técnica das cores cerâmicas
com real mestria. Além disso, trata com saber qualquer aspecto da
modelação, das texturas e "degradé". Foi e é o criador de tipos de uma
riqueza humana invulgar nos quais o sorriso tímido ou aberto, às vezes
enigmático, alterna com o espanto doce ou doloroso. Amaro Neves, no seu
livro "Barristas Aveirenses" faz uma resenha mais pormenorizada das suas
obras mais significativas, neste plano escultórico, do nosso talentoso
barrista.
As suas figuras de carácter
religioso, onde um discreto barroquismo é criteriosamente aplicado, são
de extraordinária inspiração, pois quase deixam extravasar o carinho com
que foram tratadas. Assim é José Augusto em tudo que intenta.
"Et creavit Deus hominem ad
imaginem suam; ad imaginem
Dei creavit illum, masculum et feminam creavit eos".
Dir-se-ia que este amigo nasceu do
barro como o sugerem a lenda ingénua das Sagradas Escrituras, tão
afeitas estão à matéria plástica as suas mãos que já desvendaram todos
os segredos para encontrar as formas aí contidas.
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