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EXPOSIÇÃO ANTOLÓGICA - 14 a 29 de Setembro de 1996

JOSÉ AUGUSTO, UM HOMEM NASCIDO DA ARGILA
Vasco Branco – págs. 5 e 6

Aveiro foi uma cidade plana, branca e líquida. Assim o escrevi inúmeras vezes. Hoje, já o não faria com essa facilidade porque, na retina, os constantes atentados à sua virgindade arquitectónica. Mas suponho que vivemos ainda numa região privilegiada pelo aparecimento constante de valores adentro das artes plásticas, como das artes rítmicas. Só que o conhecimento do facto pelas entidades responsáveis pela cultura do país, gente sediada na capital, ou tem sido nulo ou frequentemente tardio. Os íncolas dessa nossa Lisboa nunca desceram à paisagem que lhes serve de mero enquadramento geográfico, se não através de surtos meramente ocasionais apressados e, portanto, pouco ou nada expressivos.

A despeito do olvido sistemático (perdoem-me se exagero), cá nos vamos governando estranhos e quaisquer influências promocionais. E este divórcio, para nós, já volveu hábito. Escrevo tudo isto a propósito de um artista (porque se trata de um verdadeiro artista) vivendo as suas dificuldades à margem de quaisquer estímulos alheios ao seu próprio esforço. Há muito que nos contentamos com o entusiasmo dos nossos locais vivendo, assim, uma espécie de forçado narcisismo que o hábito já transformou em necessário alimento.

Com o José Augusto, o artista em causa, acontece não ter podido furtar-se à fatalidade no que concerne à exigência da manutenção de um nível de vida que lhe permitisse a procura de um caminho sem a obsessão constante das condições mínimas de sobrevivência o que, quanto a mim, lhe limitou, logo à partida os seus voos legítimos da superação artística. Tudo isto agravado pelo gosto duvidoso dum público comprador oscilando ainda em períodos próximos da pedra lascada.

Durante o primeiro decénio da existência do grupo Aveiro/Arte, de que me honro de ter sido um sócio fundador, eu visitava, sistematicamente, a casa-oficina do José Augusto, ali na rua Mário Sacramento, frente às Pombinhas. Junto escolhíamos a sua presença necessária na exposição anual obrigatória. E a sua voz magoada, que ainda trago nos ouvidos, sobre as suas inúmeras limitações de carácter material, e de que ele tinha a consciência plena, expressava o enorme desgosto de não poder criar com inteira liberdade. De facto, a necessidade obrigava-o a repetir pequenos trabalhos que ele tinha como menores e que não correspondiam exactamente ao seu talento e gosto pessoal. Pena é que este desequilíbrio entre o que se deseja criar e o que realmente importa fazer, seja o real imperativo que condiciona muitos e autênticos artistas. E outro tanto tem acontecido a inúmeros criadores geniais espalhados pelo espaço-tempo. Lembro apenas o judeu-italiano Modigliani a quem a necessidade obrigou à venda de desenhos pelos cafés de Paris sem o valor acrescentado que o seu génio justificaria por inteiro.

Seduzido pelo "eldorado" que lhe sopravam das nossas áfricas, para aí partiu o nosso artista José Augusto cheio de esperança de que a sua arte era real garantia. Mas o destino não estava a seu lado e para o contrariar trouxe-lhe a guerra colonial com os malefícios que todos conhecemos.

Este pequeno grande homem, de novo no continente, espremeu a coragem suficiente para tudo recomeçar a partir da estaca zero.

Este gesto define o homem porque o artista não necessita de se valorizar através de quaisquer romances. Esse nunca foi esquecido aqui, na sua terra. Ninguém se esquecera da sua arte mais conseguida, quanto a mim, aquela que executa com folha de barro vermelho e que continua com uma categoria inigualável. O José Augusto nasceu com as mãos feitas na matéria argilosa. Daí o sóbrio requinte (seja-me relevada a aparente contradição), o equilíbrio das formas, a verdade plástica das suas adoráveis figuras.

Mas o Zé experimentou variadíssimas técnicas, algumas delas muitíssimo dignas de registo, mas cedo verificou serem invendáveis por falta de adesão de muitos daqueles que, por pura demagogia, afirmavam desejar uma arte inovadora.

De qualquer maneira, bastava a sua perícia na feitura das suas figuras populares para o creditar entre os melhores barristas do nosso país. Mas ele é um artista completo. Os seus desenhos têm imaginação criadora e domina a técnica das cores cerâmicas com real mestria. Além disso, trata com saber qualquer aspecto da modelação, das texturas e "degradé". Foi e é o criador de tipos de uma riqueza humana invulgar nos quais o sorriso tímido ou aberto, às vezes enigmático, alterna com o espanto doce ou doloroso. Amaro Neves, no seu livro "Barristas Aveirenses" faz uma resenha mais pormenorizada das suas obras mais significativas, neste plano escultórico, do nosso talentoso barrista.

As suas figuras de carácter religioso, onde um discreto barroquismo é criteriosamente aplicado, são de extraordinária inspiração, pois quase deixam extravasar o carinho com que foram tratadas. Assim é José Augusto em tudo que intenta.

"Et creavit Deus hominem ad imaginem suam; ad imaginem
Dei creavit illum, masculum et feminam creavit eos".

Dir-se-ia que este amigo nasceu do barro como o sugerem a lenda ingénua das Sagradas Escrituras, tão afeitas estão à matéria plástica as suas mãos que já desvendaram todos os segredos para encontrar as formas aí contidas.
 

 
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