«Seremos
sempre cúmplices do silêncio
nada mais vagueia no
infinitamente grande espaço
só o chocalhar dos rebanhos
que também se chama solidão
Só o cantar longínquo
Das feras tão perto de nós
Fora das águas e dos abrigos
Apenas o rasto desaparecido
De tantas figuras humanas
Criaturas tão terrenas».
José A. Ribeiro
«Tento,
há quantos anos, vencer a dureza dos dias, das ideias solidificadas, a
espessura dos hábitos que me constrange e tranquiliza. Tento descobrir a
face última das coisas e ler a minha verdade perfeita».
Este é um dos lemas centrais que consagrou um homem e uma escrita que ficou
“para sempre” e “até ao fim” de todos os seus/nossos dias.
Vergílio Ferreira
percorre, em toda a sua obra, os laços mais estreitos da intensa indagação
sobre o destino humano, pautado por uma rara exigência estética e
filosófica. Viveu, até ao limite, o drama do prisioneiro da escura caverna
platónica que, afinal, ainda não nos abandonou. O tangível, em vez de o
saciar como aos demais, desperta-lhe um incontrolável apetite de absoluto.
Tinha presente todas as imagens, as da sua vida, desde a infância de
seminarista involuntário e des-crente, mas também as do mundo e dos homens
que sempre observara com olhos de águia. Sempre pretendeu chegar tão próximo
quanto possível às derradeiras ideias que pelas imagens assomam, e assim
compreender a sua radical significação, porque a luz doce da facilidade, do
elementar, do simplório, queimava-o como chama viva.
Leu Malraux e
deixou-se abalar até ao fundo de si mesmo pelas Vozes do Silêncio,
pelas vozes subterrâneas, que vêm de longe e apenas tocam as almas mais
sensíveis e os espíritos mais atentos e perspicazes, esses que se mantêm
numa espécie de envolvência com o mundo, auscultando-o na sua profunda e
radical significação: «Ouço as vozes subterrâneas, a alegria
mecânica, aos passos cronometrados azáfama de nervo e de esquecimento que
adivinho ao longe, numa metrópole-síntese construída em arame e cimento, e é
bom que essas ressoem na minha boca».
É com estas palavras
que Vergílio Ferreira inicia a sua Carta ao Futuro (1958),
dando conta, afinal, daquela que foi sempre a sua irreprimível vocação – a
de grande questionador. Conforme disse em entrevista à revista Ler
: «Devo ter
tido, muitas obsessões. (...) Mas esta é fundamental: o problema
de me interrogar sobre o meu destino, de dar significação a tudo o que
me ocorre, ao mundo como ele é. A vida tem a sua significação
máxima nela própria e em nada do que a excede. A vida é um
valor maior. É um absoluto. Foi esta a minha principal obsessão,
daquela que fui colhendo outras obsessões secundárias».
Esta é uma linha que
atravessa a obra ficcional e ensaística do nosso autor. Estimulado pelas
sombras tutelares de Camus e Malraux, o itinerário intelectual de Vergílio
Ferreira, oferece-nos uma singularidade imediata de entre os escritores seus
contemporâneos. O seu labor literário, ao contrário de muitos outros, foi
partilhado por igual entre a criação e a reflexão crítica e estética, uma à
outra se inflectindo no sentido que conduziu, por exemplo, ao nascimento de
Aparição (1959), como romance, Do Mundo Original
(1979) e Carta ao Futuro (1958), como ensaios.
A Arte e o
Saber, amplamente discutidos nestes livros, são os milagres possíveis
do humano. E referimo-nos, mais particularmente, a Mundo Original
e aos volumes que compõem Espaço do Invisível (I – IV / 1965 –
1987), obras fundamentais para compreendermos a postura estético-artística
do autor, respectivamente, sobre os temas: «Do não progresso na arte»,
«Da fraude artística», «Discurso e silêncio em arte»; «Da
comunicabilidade das artes», «Do romance viável», a «Arte e
os sentidos» ou «Do artista ao seu crítico»; «Da
responsabilidade artística», «O artista e a legenda», «Existencialismo
e literatura» e, ainda, «Escrever», «No limiar da
palavras/pensamento», «A morte do homem», «O tempo» e o «Humanismo
contemporâneo».
Não esquecendo a
importância crucial de Invocação ao Meu Corpo (1969), onde o
autor, para além de se referir às questões da arte propriamente dita, tece
profundas reflexões sobre essa obsessão de interrogar, ao desenvolver o seu
pensamento na linha de uma hermenêutica assaz cuidada e rigorosa sobre as
noções de “pergunta”, “interrogação”, “resposta”,
“insondável”, “espanto original”, “mistério”,
“enigma”, “apelo”, “o Absoluto”, o
“eu”, a “verdade”, a “evidência”,
a “vida”, o “tempo”, a “morte” e o
“homem”, temas/problemas que perpassam o pensar vergiliano
sempre em demanda.
Em Invocação ao
Meu Corpo, presenciamos, justamente, o homem que escreve «pela
noite fechada de silêncio», sob o signo de uma evidência que brilha
na sua linearidade «no diagrama das estrelas», o homem que ouve as
vozes obscuras, as vozes da sua gravidade, da flagrância terrível e do
excesso que o violenta, essas vozes que estão aí e falam, que «vêm na
opressão da montanha, toda aberta à minha frente, do espaço
irradicado, do silêncio que cresce desde a imobilidade da Terra».
Em Aparição,
esse romance absolutamente espantoso que nos suspende a respiração até ao
último arrepio, sentimos o homem, Vergílio Ferreira, que relembra numa sala
vazia, ao mesmo tempo que escuta, «o indício de um rumor de vida e o
sinal obscuro de uma memória de origens.»
mergulhado nesse «silêncio de estalactites», perante o qual só a lua conhece
a sua voz primeira. E, então, sente nas vísceras a aparição fantástica das
coisas, que de objectos inertes fazem estremecer pela sua face de espectros;
sente as ideias e a ideia de si, convicto de que «nada mais há na vida do
que o sentir original, aí onde mal se instalam as palavras, como
cinturões de ferro, onde não chega o comércio das ideias cunhadas que
circulam, se guardam nas algibeiras».
Aí permanece o
escritor que se sagra em silêncio como um dedo na fonte,
convicto de que a cartilha onde tudo vinha escrito não passou jamais de uma
mera ilusão para todos aqueles que não foram capazes de perceber que nada
estava ainda escrito, porque tudo é sempre novo e fugaz invenção de cada
hora, “isso” que vibra nos ossos e que escorre pelo suor. A própria
presença ilumina-se em si próprio, quando surge o eco longínquo das vozes
que trespassam todo o seu corpo. Estes momentos são verdadeiramente
miraculosos e, por isso, dificilmente pensáveis.
No entanto, assoma
essa simples verdade que se traduz tão-só na constatação que ele, Vergílio
Ferreira, está vivo e se habitua a essa evidência, simplesmente traduzida
num “eu” que se sente como um absoluto divino. Mas a constatação e a
evidência depressa se tornam em certeza fulgurante e Vergílio Ferreira sabe
que ilumina o mundo, porque há uma força que lhe vem de dentro e que se
implanta na vida necessariamente.
Trata-se de uma
auto-totalização – «esta totalização de mim a mim próprio», é
a expressão utilizada pelo autor – que não o deixa ver os seus próprios
olhos, nem pensar o seu pensamento, porque esta totalização é, a um
tempo, os olhos e o pensamento deste homem queimado pela verdade sempre que
vê o absurdo da morte e pretende segurá-la nas suas próprias mãos, revê-la
em todas as horas de esquecimento. A morte, essa outra grande
obsessão, que se lhe escapa por entre os dedos, como fumo, deixando-o «embrutecido,
raivoso de surpresa e de ridículo».
O escritor sabe que só
há um problema na sua vida (na Vida): determinar a sua (nossa) condição de
eterna efemeridade e, a partir daí, restaurar a plenitude e a autenticidade
de tudo. «Tudo» significa aqui: alegria, heroísmo, amargura, cada
gesto, cada acto vivido e/ou evocado. E, só assim, «ter a evidência ácida
do milagre que sou, de como infinitamente é necessário que eu esteja vivo, e
ver de pois, em fulgor, que tenho de morrer».
O autor instaura,
desde o início, a dialéctica vida/morte, presente ao longo de toda a
sua obra, presente em cada pensamento e em cada acto da sua escrita. Digamos
que a mais plena consciência da vida é, simultaneamente, a mais plena
consciência da Morte, ou, como diria Rainer Maria Rilke – poeta de dimensão
universal, poeta da vida e da morte
– a morte não é senão esse outro lado da vida que apenas não está iluminado
ou virado para nós; esse outro lado da nossa existência que nos permanece
sempre velado.
Vergílio Ferreira,
nesse excesso de consciência do humano, assume tão incontestável facto até à
exaustão de si mesmo, mesmo que não o aceite na sua máxima e absoluta
exuberância, familiaridade e inquietante estranheza. É este o grande
mistério, o grande enigma da existência: viver sabendo
que a morte, em cada instante, se avizinha, sem que possamos adiar ou
impedir a sua chegada.
A consciência da
interioridade é abissalmente profunda, tão profunda como a da morte
impregnada na vida, a sua outra face inextricavelmente inseparável. Assim se
lê nesse belo texto introdutório de Aparição: «a minha
presença de mim a mim próprio e a tudo o que me cerca é dentro de mim que a
sei – não do olhar dos outros. Os astros, a Terra, esta sala, são uma
realidade, existem, mas é através de mim que se instalam na vida: a minha
morte é o nada de tudo».
Esta passagem, assaz
elucidativa da trama vergiliana, centraliza-nos em dois pontos essenciais:
1. a dialéctica exterior/interior – eu/outro; 2.
a dialéctica sujeito/objecto. A primeira fala-nos do centramento do
“eu”, do “eu” como espelho de si próprio que prescinde, embora
não negue, da relação com a alteridade, para atingir a sua própria
interioridade e o seu próprio auto-conhecimento. Apela, numa palavra, para a
consciência mais profunda da pura interioridade na sua absoluta diferença e
irredutibilidade em relação ao outro:
«Quantas vezes nos
dizem – pergunta Vergílio Ferreira – que um “eu” é uma ficção? Que só
tarde um “eu” foi descoberto pelo homem? que ele é uma construção causal
exterior? Que esse “eu” não existe senão porque no-lo inventaram?», para
concluir, provisoriamente, que: «Não é pois uma ilusão esse “eu”, essa
presença categórica e terrível que se levanta em nós. Não é uma ilusão nada
do que se nos imponha flagrantemente e que está antes da razão o vir
discutir».
Porque, afinal, «que é um “eu”? E desde quando foi possível ter
consciência desse “eu”? Que modalidades tomou essa consciência? Que há de
ilusório nisso mesmo, justamente por isso?»
O que poderemos dizer
do “eu”, da “consciência” (conceitos que, sem
suficiente problematização, o autor apresenta como sinónimos), nós seres
finitos mergulhados num mundo imenso, povoado por múltiplos entes igualmente
portadores da mesma finitude? Sabemos, apenas, e segundo os dados da
fisiologia – invocados pelo autor – que, não obstante todas as dúvidas e
hesitações, separamo-nos das coisas num instante infinitesimal e assim
confusamente esse “eu” se anuncia em nós, nesse mesmo instante
infinitesimal que é um instante infinito.
Porém, a breve
separação que nos deslocou do mundo teve, desde o início, a dimensão da
nossa divindade. Separarmo-nos das coisas significa apenas: sabermos que
elas existem, mas que as não somos; que existimos em face delas, mas que
somos em separado; que quebramos o momento inicial do sincretismo e que, por
isso, enquanto entes à parte, carregamos o terrível peso da auto‑decisão, de
decidirmos de nós. E, assim, o homem se cumpre mais como homem, segundo a
distanciação do horizonte que instaura como limite. É o próprio da sua
condição humana, que é uma condição, inevitavelmente, metafísica: «Porque
a sua dimensão humana é a dimensão do que o transcende, o amplia para além
de si».
Na
sequência da primeira dialéctica, a segunda remete-nos, a um tempo, para
a autonomia do sujeito relativamente ao conjunto de objectos familiares que
o cercam e ao universo. É explicitamente afirmada a auto-suficiência do
sujeito, cujo fundamento ôntico-ontológico emerge sempre como irredutível,
porque separado do reino das coisas e do reino dos animais. Ou, por outras
palavras, Vergílio Ferreira aponta para uma auto-suficiência ontológica do
sujeito não apenas enquanto ser vivente, existente ou conhecente, mas como o
fundo sem o qual as coisas não existem senão enquanto existem para si mesmo,
para esse sujeito que as instala em vida.
No entanto, a relação
entre os dois pares dialécticos pode tornar-se menos harmoniosa, ou até
mesmo contraditória, se atentarmos noutras passagens de Invocação ao
Meu Corpo, onde o autor afirma que «um “eu” não nos existe,
porque o que existe são as coisas».
Surge, assim um
terceiro ponto, uma terceira dialéctica, tão marcante do pensamento de
Vergílio Ferreira quanto as anteriores: a dialéctica nada/tudo –
morte/vida. A morte é agora definida como «o nada de tudo»,
expressão que traduz, em última instância, a tese central do autor acerca da
problemática da morte nessa sua relação umbilical com a vida.
Todavia, o homem é
nada e tudo ao mesmo tempo, pois dispõe, em uníssono, do poder da vida e
do mistério da morte. Mas, «como é possível?», pergunta ainda
Vergílio Ferreira, mantendo-se nessa postura de eterno questionador que se
confunde com a sua própria vida e com o seu estar perante a morte.
O mesmo
homem que, afinal, se conhece no Deus que recriou o mundo e que o
transformou, que mora na infinidade dos seus sonhos, ideias e memórias
realizadas em si mesmo, como um prodígio de invenções e de descobertas, cujo
conhecimento pertence apenas a si próprio, bem como a re-criação que fez de
tantas coisas belas e inverosímeis, sempre à imagem de si próprio.
É agora a
imagem especular de Vergílio Ferreira que assoma, que se ergue no seio de
tudo isto, qual ser ao mesmo tempo ensimesmado e presente no mundo, nesse
mundo onde se ri e onde se chora, nesse mundo de alegria, embora breve, de
tristeza e de amargura e, por vezes, de felicidade e de esperança; nesse
mundo que é o lugar de todas as epifanias, de todas as aparições, do nada
absoluto, do ser silente, do silêncio e do mistério.
Este mundo, envolto na
sua própria complexidade e "con-fusão", é o próprio mundo do
escritor, um mundo amealhado com o seu próprio suor e com o sangue que o
aquece, sentido até à vertigem. Será o mundo «do nada
absoluto, dos astros mortos, do silêncio»? Não! Este raciocínio –
sempre feito em primeira pessoa, sempre apresentado por um sujeito
solitário, cuja vida se move entre as paredes da sua interioridade e o
espaço infinito do mundo – não é senão uma falácia, porque «a sua
evidência é um milagre instantâneo». No entanto, «a lua subiu ao céu
quente, a sua água escorre-me agora pelo corpo. Lavo nela as minhas mãos e é
como se purificasse num tempo anterior à vida, num luminoso alo de coisas
por nascerem. Súbito, neste silêncio mineral a porta da sala
range (...)» e «ao fim de muitos anos aprendemos a verdade, na
aparição da graça, num limiar de presença, antes que sobre a Terra fosse
pronunciada a primeira palavra».
Deus gastara-se-lhe,
mas, no entanto, continuamos a ser homens. Não somos nem deuses nem pedras,
nem anjos. Se a grandeza que nos coube foi essa, conquistemo-la até onde,
nos limites das evidências primeiras, ela se nos anuncia. E se o absurdo é a
face desses limites, assumamo-lo como quem não rejeita nada do que ainda é
em nós próprios. A cobardia não reside em assumir esses limites, mas em
recusá-los, como também não está em reconhecer uma doença, mas em fitá-la de
frente. Só se é justo, corajoso, pela assumpção consciente do que nos
ameaça.
Vergílio Ferreira
advoga, ao contrário do que pretendem os seus detractores, «um pouco de
humildade, uma íntima nudez». Encontrava-se com o minimalismo de certos
pormenores, porque sabe que o milagre pode surgir quanto menos o
suspeitamos.
O mais simples dos
acontecimentos pode alvoroçar-nos como a mais pura e evidente aparição de
beleza. Por isso, lidou com a vida com a exorbitância do mistério,
convicto de que «há em nós um segredo que nós mesmos não sabemos».
Isabel Rosete
Março de 2005
|