Hierarquia superior

Vergílio Ferreira nos caminhos da interrogação

A interrogação tem para Vergílio Ferreira um sentido ontológico e não apenas lógico, tal como as perguntas para as quais encontramos sempre respostas nesses mesmos espaços prometaicos de que o autor sistematicamente se afasta.

Perante as interrogações que o intrigam, e à medida que vai chegando ao fim, Vergílio Ferreira guarda o silêncio, vocábulo de mérito primeiro em toda a obra vergiliana. A Natureza, por si mesma, encarrega-se de ir organizando esse espaço metafísico, bem como a maneira de ser e de sentir do Eu que o incorpora, para o harmonizar com a morte real, sempre presente em cada acto humano, que um dia virá, amanhã ou depois, sempre acompanhada das mais radicais interrogações, por entre as quais se entretece o jogo da temporalidade da existência, quiçá a hora do balanço final, onde se esgotaram todas as perguntas e, por conseguinte, todas as respostas.

Esta postura assumida por Vergílio Ferreira, puramente conceptual, que o conduz a fazer uma distinção absolutamente clara entre interrogação e pergunta, emerge, no seio da sua obra, como uma das teses centrais defendidas em Invocação ao meu Corpo. As diferenças entre os dois termos são substanciais. Convém atentar, com precisão, em cada uma delas, na medida em que não se trata aqui de simples nuances, mas de questões de fundo que marcam a finura e a própria trajectória, a concepção de mundo, de vida e de homem perfilhada pelo autor. À semelhança de Heidegger, vislumbramos uma postura que adopta como traço marcante a indagação permanente, a interrogação não apenas como forma de estar, mas, sobretudo, como forma de ser de um Eu inextrincavelmente irredutível.

Senão vejamos: «Uma pergunta não interroga: uma pergunta diz a resposta. Porque uma pergunta está do lado do problema a resolver, do ainda simplesmente desconhecido; e a interrogação está do lado do insondável. A pergunta desenvolve-se na clara horizontalidade; a interrogação na obscura verticalidade. Como em jogo de cabra-cega, em que há seres à nossa volta, a pergunta orienta-se entre os que lhe não pertencem até achar o que procura. Mas a interrogação não encontra, porque nada há para achar. O limite da sua esperança está menos no triunfo de um encontro, do que no cansaço, na resignação, ou na evidência natural do que nos coube, como nos é evidente ter cinco sentidos e não mais»[1].

Digamos que a história do pensamento ocidental nos legou a tradição, cada vez mais comum, da «pergunta-e-resposta» como um mero passatempo, como um simples jogo que brota e está presente na nossa linguagem de todos os dias. E assim vamos jogando esse jogo, sem que nos apercebamos da sua existência, em cada acto de pensamento ou em cada acto de fala.

Até mesmo o interrogar depressa degenerou em pergunta. O interrogar, qual modo inaugural de questionar o mundo, tivializou-se no jogo de «pergunta-e-resposta» quotidiano, perdendo, deste modo, o seu enraizamento ontológico primordial.

O espanto original quebrou-se. O mundo tornou-se deveras evidente para comportar essa interrogação autêntica: aquela que quer captar o sentido último das coisas no seu brotar primogénito; aquela que procura o verdadeiro significado daquilo que é em si mesmo, embora se encontre algures perdido na trivialidade das aparências e na falsa evidência das sombras que nos percorrem.

Por isso, ao espanto original de um olhar virgem e indefeso, pré‑conceptual, não moldado pelos traços artificiosamente construídos pela “civilização”, pela “cultura” que só vê e faz ver o quer que seja visto – a que nos habituaram os primeiros pensadores e que habita constantemente o espírito filosófico de Vergílio Ferreira – o que nos respondeu não foi, ainda, a suspensão atónita. O que respondeu foi a resposta. E, assim, sofismado o primeiro porquê, organizou-se uma cadeia ininterrupta de porquês, sob a base de uma certa confiança, fácil, ilusoriamente evidente e esquecida como um sono. Não se perturba mais a certeza ou a suspeita da emergência de uma resposta provisória, porque uma resposta é, em si mesma, definitiva.

O que está em causa, o que se coloca verdadeiramente em questão, é a inteligibilidade da vida. Sabemos, obviamente, que o reino do homem é o reino do humano e que a expressão do seu poder não é propriamente o domínio da terra, dos mares ou dos astros – já o havia dito Sófocles no segundo coro de Antígona, onto-ecologicamente interpretado por Heidegger e que Vergílio Ferreira, como literato e pensador, tão bem conhece – mas o domínio das sombras.

A interrogação alarmou-nos e, deste modo, acabou em pergunta. Fecharam-se todas as portas e todas as janelas e, mesmo assim, não pudemos permanecer no reino das mónadas leibnizianas, mas apenas no espaço limitado que enquadra a nossa dúvida no extremo rigor de uma construção.

Aí encerrados, jamais alguma interrogação nos solicita do espaço livre: «Pesados muros do nosso repouso, aí se dorme tranquilo, e a pergunta que se formula é a resposta que a dá, que a condiciona no traçado dos muros onde ela embate, onde ela se estrutura e se molda»[2].

Vergílio Ferreira instaura, neste contexto, a dialéctica claridade/sombra, ou, se preferirmos, luz/sombra, nos mesmos moldes em que Platão no-la apresenta, logo no início do Livro VII da República, aquando da exposição da “alegoria da caverna”, a qual corresponde, por sua vez, à dialéctica realidade/aparência, modelo/cópia, inteligível/sensível.

Caminhando para além de Platão, ao reino das sombras, Vergílio Ferreira acrescenta o espaço específico do mistério, de cuja voz demoníaca o homem se alimenta e vivifica. Mas há, também, o miraculoso e o estranho, o espanto e a inquietação. Há sempre uma outra realidade, para além da realidade, um outro homem para além do homem, um outro mundo para além do mundo… E quando o nosso sono se quebrar, o nosso mundo ressurge, esse mundo das superfícies distintas, mas também das formas perecíveis. Assim, «à pergunta dos nossos olhos, a resposta vem ter connosco, adianta-se à sua formulação».

No entanto, o reino das sombras continua a fascinar-nos, exactamente do mesmo modo que seduzia os prisioneiros algemados, de pernas e pescoços, dentro da caverna platónica. Talvez ainda não nos tenhamos libertado dela e, por isso, a voz do mistério continua a atrair-nos com a mesma intensidade, apesar da sua natureza demoníaca. Além disso, se a claridade encanta, também decepciona, ofusca, confunde…, porque o que nos é revelado, quando é revelado, apresenta-se, a um tempo, como vitória e como derrota.

Se a nossa ânsia de revelação se nos apresenta sempre como infinita, se o nosso desejo de aceder à suprema epifania é indeterminável, não deixamos, porém, de manter o obscuro desejo de que o mistério aí habite e permaneça. O que nele nos atrai é absolutamente invencível: é o desejo contraditório de aniquilar o desconhecido e, ao mesmo tempo, de conservar o miraculoso; é o contraditório desejo de subordinar o estranho à claridade inteligível e, concomitantemente, de manter nele ainda a voz do insondável. Caminhamos sempre, mesmo que algum freio nos retraia, para o ex‑traordinário, para o im-possível, para o e-norme, a limite, para o mais inquietante.

Para Vergílio Ferreira, o mistério é uma forma de mensagem que se traduz tanto «na evidência desinteressada, como no desventrado logro do prestidigitador. Assim reconhecemos que há uma voz atrás da voz, uma força além da evidência, uma realidade atrás da realidade, uma interrogação além da pergunta. Assim reconhecemos que um vasto mundo de sombra nos engloba, o da claridade, e que esse nos fascina»[3].

Sentimos o eco de uma pergunta que nunca chega a perguntar, mas também o eco da interrogação que não é senão imóvel espanto. Deste espanto brota a notícia na inquietação de tudo o que nos inquieta, a notícia na sedução do enigma e, também, o mistério que é apenas o desconhecimento.

A interrogação é o limite de todas as perguntas que possamos colocar, tal como o mar, infinito, é o limite de todos os rios que possamos imaginar. Lancemo-nos na profunda interrogação, a única que verdadeiramente interessa. Na interrogação que ultrapassa todos os limites, todas as fronteiras; na interrogação que fala ao que não tem fim e à morte: «Como a luz vibrada ao espaço aí se perde em vazio, no vazio se nos esgota o interrogar. Não assim na resposta destes muros que me cercam onde embata a chama breve da pergunta acidental[4].

Isabel Rosete - Ílhavo, 4 de Março de 2007


[1] Vergílio Ferreira, Invocação ao Meu Corpo, pp. 20 – 21.

[2] Idem, Ibidem, p. 22.

[3] Idem, Ibidem p. 23.

[4] Idem, Ibidem, p. 24.

 

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