Digamos que a história do pensamento ocidental nos legou a tradição,
cada vez mais comum, da «pergunta-e-resposta» como um mero
passatempo, como um simples jogo que brota e está presente na nossa
linguagem de todos os dias. E assim vamos jogando esse jogo, sem que nos
apercebamos da sua existência, em cada acto de pensamento ou em cada
acto de fala.
Até mesmo o interrogar depressa degenerou em pergunta. O interrogar,
qual modo inaugural de questionar o mundo, tivializou-se no jogo de «pergunta-e-resposta»
quotidiano, perdendo, deste modo, o seu enraizamento ontológico
primordial.
O espanto original quebrou-se. O mundo tornou-se deveras evidente
para comportar essa interrogação autêntica: aquela que quer captar o
sentido último das coisas no seu brotar primogénito; aquela que procura
o verdadeiro significado daquilo que é em si mesmo, embora se encontre
algures perdido na trivialidade das aparências e na falsa evidência das
sombras que nos percorrem.
Por isso, ao espanto original de um olhar virgem e indefeso,
pré‑conceptual, não moldado pelos traços artificiosamente
construídos pela “civilização”, pela “cultura” que só vê e
faz ver o quer que seja visto – a que nos habituaram os primeiros
pensadores e que habita constantemente o espírito filosófico de Vergílio
Ferreira – o que nos respondeu não foi, ainda, a suspensão atónita. O
que respondeu foi a resposta. E, assim, sofismado o primeiro porquê,
organizou-se uma cadeia ininterrupta de porquês, sob a base de uma certa
confiança, fácil, ilusoriamente evidente e esquecida como um sono. Não
se perturba mais a certeza ou a suspeita da emergência de uma resposta
provisória, porque uma resposta é, em si mesma, definitiva.
O que está em causa, o que se coloca verdadeiramente em questão, é a
inteligibilidade da vida. Sabemos, obviamente, que o reino do homem é o
reino do humano e que a expressão do seu poder não é propriamente o
domínio da terra, dos mares ou dos astros – já o havia dito Sófocles no
segundo coro de Antígona, onto-ecologicamente interpretado por
Heidegger e que Vergílio Ferreira, como literato e pensador, tão bem
conhece – mas o domínio das sombras.
A interrogação alarmou-nos e, deste modo, acabou em pergunta.
Fecharam-se todas as portas e todas as janelas e, mesmo assim, não
pudemos permanecer no reino das mónadas leibnizianas, mas apenas no
espaço limitado que enquadra a nossa dúvida no extremo rigor de uma
construção.
Aí encerrados, jamais alguma interrogação nos
solicita do espaço livre: «Pesados muros do nosso repouso, aí se
dorme tranquilo, e a pergunta que se formula é a resposta que a dá, que
a condiciona no traçado dos muros onde ela embate, onde ela se estrutura
e se molda».
Vergílio Ferreira instaura, neste contexto, a dialéctica
claridade/sombra, ou, se preferirmos, luz/sombra, nos mesmos
moldes em que Platão no-la apresenta, logo no início do Livro VII da
República, aquando da exposição da “alegoria da caverna”, a
qual corresponde, por sua vez, à dialéctica realidade/aparência,
modelo/cópia, inteligível/sensível.
Caminhando para além de Platão, ao reino das sombras, Vergílio Ferreira
acrescenta o espaço específico do mistério, de cuja voz demoníaca
o homem se alimenta e vivifica. Mas há, também, o miraculoso e o
estranho, o espanto e a inquietação. Há sempre uma outra realidade, para
além da realidade, um outro homem para além do homem, um outro mundo
para além do mundo… E quando o nosso sono se quebrar, o nosso mundo
ressurge, esse mundo das superfícies distintas, mas também das formas
perecíveis. Assim, «à pergunta dos nossos olhos, a resposta vem ter
connosco, adianta-se à sua formulação».
No entanto, o reino das sombras continua a fascinar-nos, exactamente do
mesmo modo que seduzia os prisioneiros algemados, de pernas e pescoços,
dentro da caverna platónica. Talvez ainda não nos tenhamos
libertado dela e, por isso, a voz do mistério continua a atrair-nos com
a mesma intensidade, apesar da sua natureza demoníaca. Além disso, se a
claridade encanta, também decepciona, ofusca, confunde…, porque o que
nos é revelado, quando é revelado, apresenta-se, a um tempo, como
vitória e como derrota.
Se a nossa ânsia de revelação se nos apresenta sempre como infinita, se
o nosso desejo de aceder à suprema epifania é indeterminável, não
deixamos, porém, de manter o obscuro desejo de que o mistério aí habite
e permaneça. O que nele nos atrai é absolutamente invencível: é o desejo
contraditório de aniquilar o desconhecido e, ao mesmo tempo, de
conservar o miraculoso; é o contraditório desejo de subordinar o
estranho à claridade inteligível e, concomitantemente, de manter nele
ainda a voz do insondável. Caminhamos sempre, mesmo que algum freio nos
retraia, para o ex‑traordinário, para o im-possível, para
o e-norme, a limite, para o mais inquietante.
Para Vergílio Ferreira, o mistério é uma forma de
mensagem que se traduz tanto «na evidência desinteressada, como no
desventrado logro do prestidigitador. Assim reconhecemos que há
uma voz atrás da voz, uma força além da evidência, uma realidade
atrás da realidade, uma interrogação além da pergunta. Assim
reconhecemos que um vasto mundo de sombra nos engloba, o da claridade, e
que esse nos fascina».
Sentimos o eco de uma pergunta que nunca chega a perguntar, mas também o
eco da interrogação que não é senão imóvel espanto. Deste espanto
brota a notícia na inquietação de tudo o que nos inquieta, a notícia na
sedução do enigma e, também, o mistério que é apenas o desconhecimento.
A interrogação é o limite de todas as perguntas
que possamos colocar, tal como o mar, infinito, é o limite de todos os
rios que possamos imaginar. Lancemo-nos na profunda interrogação, a
única que verdadeiramente interessa. Na interrogação que ultrapassa
todos os limites, todas as fronteiras; na interrogação que fala ao que
não tem fim e à morte: «Como a luz vibrada ao espaço aí se perde em
vazio, no vazio se nos esgota o interrogar. Não assim na resposta destes
muros que me cercam onde embata a chama breve da pergunta acidental.».
Isabel Rosete -
Ílhavo, 4 de Março de 2007
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