QUE HÁ SÉCULOS VIVE IDÍLICA E MONACAL TRANQUILIDADE, PODERÁ SER
TRANSFORMADA EM CALMO RETIRO TURÍSTICO
Por RENATO BOAVENTURA
CONHECIDO
desde tempos imemoriais como lugar de retiro espiritual e repouso
físico, o concelho de Arouca esteve, durante séculos, fora das
principais linhas de comunicação do País e manteve-se, como viridente
ilha de paz, defendida do bulício trepidante para que os novos ritmos de
vida iam sucessivamente arrastando outras localidades. Além da antiga
deficiência dos meios de comunicação, muito contribuíram também, para a
mantença desse mar de isolamento à volta de tão privilegiadas e
aprazíveis terras, as serranias que rodeiam o concelho e a influência
das abadessas do mosteiro, ali fundado no tempo dos godos, em data
imprecisa (mas pensa-se que antes de 716), por dois fidalgos de Moldes,
Frederico (ou Loderico) e Wandílio (ou Vandilo). Os pios senhores
construíram o Convento, que instituíram misto ou dobrado (isto é, para
frades e freiras), entregando-o à Ordem de S. Bento, «para que os monges
rezassem, pelos séculos fora, por suas almas e pelas de seus maiores».
Raras vezes um voto terá sido tão fiel ,e longamente executado, pois o
convento manteve-se (depois segundo a regra de Cister) até 3 de Julho de
1886, data em que morreu a abadessa D. Maria José Gouveia Tovar e
Meneses, última freira. Ali se rezou, ao longo de quase doze séculos,
por intenção dos fundadores.
Esta digressão pela história das ordens
religiosas do Convento de Arouca. a que voltaremos frequentemente,
impõe-se, até porque raras terras portuguesas terão recebido tão forte
influência monástica e terão sido tão profundamente marcadas por ela.
Doçaria conventual
capaz de deliciar os mais exigentes paladares
É evidente que o viajante dos nossos dias
não terá a mínima dificuldade em atingir Arouca. O concelho está riscado
por uma satisfatória rede de estradas e a sua sede dista apenas 48
quilómetros de Aveiro. Todos quantos, por obrigação ou por turismo,
adregam ir parar àquelas bandas de Portugal, nunca mais as esquecem. As
mais das vezes voltam e o concelho começa já a ser conhecido das grandes
correntes turísticas internas e externas. Quebra-se, assim, de certo
modo, aquele exagerado isolamento dos tempos antigos e Arouca
proporciona a todos os visitantes os seus encantos de região
privilegiada.
Surpreendentes panoramas montanhosos, como
as nascentes do Caima
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e a queda de água da Frecha da Misarela, o vale do Arda, as profundas
ravinas, os vales ubérrimos, a diversidade de culturas e de vegetação,
tudo se oferece ao visitante, em contrastes continuados. A cada curva
das estradas, o turista se queda inebriado pelo hálito verde dos
arvoredos (os Serviços Florestais empreendem activamente o repovoamento
dos montes) pelos cambiantes de cores das culturas mais diversas e pelo
sopro quente dos pedregais que o Sol sobreaquece.
Na vila, deparam-se-lhe prédios antigos, de
certa raça e sabor arquitectónicos, bem como as capelas de S. Pedro, S.
Sebastião, Misericórdia, S. Tiago, Santa Luzia, Senhora da Mó e outras.
Nos vales, abundam as nascentes e as
culturas de regadio, com predominância do milho, hortaliças, frutas e
vinhedos. Nestes se colhem as famosas uvas brancas que dão um vinho cuja
fama é quase tão antiga como a do Convento. As carnes são excelentes,
pois provêm de animais nutridos com pastos frescos, e o peixe chega de
Aveiro poucas horas depois de ter sido arrematado na lota da cidade. Há
também o peixe do rio Douro, que fica uns 30 quilómetros para o Norte,
no vizinho concelho de Castelo de Paiva.
Com tais matérias-primas alimentares e uma
tradição gastronómica monacal, abundam os pitéus que fazem as delícias
dos visitantes cuja preocupação dominante é a comidinha boa e abundante
e tornam adeptos da mesa até aqueles enfastiados para quem as refeições
constituem tarefa aborrecida.
São justamente afamados, entre todos os
demais requintes de cozinha, os doces de que as freiras conservaram e
apuraram as receitas, ao longo dos séculos. Os mais apreciados são as
«morcelas doces», o «pão de S. Bernardo» (ou bóIa), «manjar de língua»,
«castanhas doces» e o «pão-de-ló».
Cláusula
testamentária que arruinava o convento
Uma das circunstâncias que contribuiu decisivamente para firmar a boa
reputação de Arouca, no que respeita à boa mesa, resultou de curiosa
disposição testamentária da Rainha Santa Mafalda, filha do Rei D. Sancho
I, que foi abadessa do Convento e faleceu na freguesia de Rio Tinto,
quando andava na colheita de foros e rendas a ele pertencentes, no ano
de 1290 (ao que parece). Uma cláusula do testamento estabelecia:
«A todo o padre que quisesse assistir ao seu
aniversário (quer do vale, quer de fora da terra) se lhe daria – um
tostão em dinheiro, um prato pequeno de ovos reais, outro de tremoços,
outro com uma queijada, um biscoito, uma talhada de pão leve, uma caixa
pequena de marmelada, um prato de trutas, cinco pães de trigo (cada um
com quatro pontas), um sável e três canadas de vinho!»
Mas dispunha mais o testamento que aos
padres chegados na véspera se forneceriam primícias das vitualhas que
seriam entregues no dia seguinte.
As freiras mantiveram esse uso durante
quatrocentos e trinta anos, mas viram-se forçadas a acabar com ele, a
fim de não perderem grande parte das rendas conventuais. De facto, comer
tão pantagruélica refeição, regá-la com seis litros de vinho e ainda
receber um tostão por cima (naquele tempo era dinheiro!), em país tão
devoto como o nosso e onde não havia, então, crise de vocações
sacerdotais – tais festas de aniversário deveriam provocar rápida
bancarrota. Não fora a prosperidade do Mosteiro, preferido por senhoras
da mais nobre linhagem, que sempre traziam consigo avultadíssimos dotes,
não teria sido possível manter a tradição por cerca de quatro séculos e
meio.
O isolamento manteve
a pureza do folclore
Há poucos anos ainda, Arouca era conhecida como «a terra da castanha». A
pouco e pouco, porém, foram morrendo os castanheiros que povoavam as
terras de sequeiro, entre os milharais das terras altas, e a produção de
castanha decresceu, pois não houve o cuidado de substituir as árvores
mortas. Vai-se perdendo, deste modo, uma cultura tradicional que o
Convento sempre fomentou.
Outro dos aspectos que mais atrai o turista
é o folclore da região. Também neste capítulo se nota uma clara
influência dos usos e costumes monacais, como de resto em tudo, no
concelho. Acontece que o isolamento, em que este viveu durante centenas
de anos preservou a pureza do folclore. O maestro Armando Leça e outros
musicólogos recolheram, ali, muitas centenas de cantigas, das mais
originais e puras de todas as nossas manifestações folclóricas. Nessas
danças e cantares mantém-se muito viva e profunda a preponderância dos
ritos e cânticos religiosos da Idade Média, com as inevitáveis
interferências provocadas pela evolução dos próprios rituais. Os
hibridismos introduzidos pelo povo só vieram trazer frescura e riqueza
melódica aos velhos cantos sagrados das freiras.
É tão pródigo o folclore de Arouca que ali
foram buscar grande parte das suas danças e cantares os povos de Cinfães
e de Resende, concelhos vizinhos. E, caso curioso, têm sido os grupos
destas zonas os maiores difusores do folclore de Arouca, visto que os
arouquenses, regra geral, apenas se exibem na sua terra, durante as
festas privadas ou nas feiras e romarias, dentro da área do concelho.
Como estas, no entanto, são numerosas, o turista poderá apreciar o
folclore arouquês em quase todas as épocas do ano, muito especialmente
no fim da Primavera, em todo o Verão e no início do Outono.
Um dos já raros
paraísos de pescadores e caçadores
Para aquele género de turistas que concentra todas as potencialidades do
sistema nervoso no arpéu de um anzol ou no ponto de mira de uma
espingarda, Arouca constitui um dos últimos paraísos em que ainda há
peixes em abundância e a caça vai chegando para os de dentro e os de
fora.
Sulcado de rios de montanha, o concelho é um
verdadeiro alfombre de trutas, barbos, enguias, etc.
Por outro lado, nas serras, nas florestas e
nas culturas, ainda aparecem, numa quantidade que em quase todo o País
seria classificada de fartura demasiada, perdizes, coelhos, codornizes,
galinholas e lebres.
Se, quanto à caça, não julgamos que ela
possa persistir por tanto tempo que venha a chamar para o concelho a
presença de turistas, já o mesmo não pensamos no que à pesca respeita.
Mesmo pagando quase a peso de ouro o
trabalhão de ferrar na ponta do anzol a truta arisca, os pescadores
franceses, alemães, italianos, belgas, holandeses e outros têm cada vez
mais dificuldades em experimentar esse raro prazer, para eles de deuses.
O nosso País começou já a ser invadido por vagas desses turistas
piscatórios. É muito natural que, dentro em pouco, grande quantidade
deles descubra Arouca, onde as trutas ainda existem com abundância.
Uma povoação com
cerca de dois mil e quinhentos anos de existência
Se bem que os vestígios históricos tenham sido quase totalmente apagados
por inúmeras lutas, saques,
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incêndios e catástrofes, pelo próprio arroteamento e pela construção de
edifícios sobre ruínas pré-existentes, Arouca é povoação com cerca de
dois mil e quinhentos anos de existência. Tanto quanto se pode recuar no
tempo, através de testemunhos de certa credibilidade, a fundação da vila
pelos celtas deverá ter-se verificado quinhentos anos antes de Cristo. A
povoação tornou-se muito florescente e foi aquele um dos locais onde
celtas e iberos se fundiram.
Os celtiberos sofreram diversas invasões e
julga-se que a localidade teria sido arrasada diversas vezes.
Igreja matriz de Arouca
Cerca de cinco séculos mais tarde, aquele
mesmo local foi escolhido pelos romanos. César Augusto, segundo rezam
memórias escritas (que alguns põem em dúvida), fundou ali, no ano 34 a.
C, a cidade de Arauca, Aruca ou Araducta. Foi esta que deu o nome à vila
e concelho dos nossos dias. Araducta cresceu e prosperou até 716 da
nossa era, ano em que foi destruída pelos árabes. Havia então ali duas
paróquias cristãs (Santo Estêvão de Vale de Modes e S. Pedro de Arouca),
onde ainda existem a aldeia, a capela e o convento de S. Pedro.
O concelho foi teatro de lutas que se
integraram na reconquista cristã da Península. Assim, em 1038, Fernando
Magno de Castela e Rui Dias de Rivar (O Cid) derrotaram, nos campos
arouquenses, Zadão Iben, rei de Lamego e o seu exército de mouros. Não
foi esta batalha decisiva, quanto ao futuro da vila, que anos depois
voItava à posse dos mouros.
O conde D. Henrique e
Egas Moniz conquistaram definitivamente a vila
Foi só no século seguinte (1102) que o domínio mouro cessou, em Arouca.
O rei mouro de Lamego, Echa Martin, à frente do seu exército, assolou os
campos do concelho, saqueando herdades e aldeias. Incendiou tudo, como
era costume da época e fez numerosos prisioneiros, especialmente
mulheres, que renderiam bom preço nos mercados de escravos. A digressão
militar mourisca fora fácil. O rei muçulmano trouxera até uma das suas
esposas, Aixa Ansora (ou Axa Anzures), a quem muito amava. Ao que
parece, as delícias do amor e a facilidade da vitória fizeram-no demorar
em Arouca, dando tempo a que viesse do Norte, o Conde D. Henrique,
acompanhado de Egas Moniz, à frente dos seus homens de armas. Os dois
exércitos, por assim chamar-lhes, encontraram-se nos campos a Leste de
Santa Eulália. Echa Martin tomou posições estratégicas e dividiu os seus
homens em dois grupos. Mandou um para a Serra Seca (actualmente monte do
Arreçaio) e postou-se à frente do outro, no vale de Arouca.
Por seu turno, D. Henrique ripostou atacando
com parte das suas forças o rei maometano, enquanto outra parte, sob a
chefia de Egas Moniz, acometia o inimigo na montanha.
Foi rija a batalha e a vitória completa
coube aos homens do Condado Portucalense, que fizeram prisioneiros Echa
Martin e Aixa Ansures. Em acção de graças pela vitória, edificaram a
capela do burgo.
Hábil político, D. Henrique tratou bem os
inimigos, que se converteram
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ao cristianismo. É significativo o texto da doação autêntica de Lamego
ao seu rei, vencido pelo Conde. Doava-a a Echa «como a elle sempre teve
de herança dos mouros seus antepassados, que alli reinaram. E porque eu
o venci e sujeitei, de traz do monte Fuste, no valle d'Arouca, e o
prendeu alli o valoroso solldado e rico homem Egas Moniz, e captivou Axa
Anzures, com muitas mulheres que estavam postas sobre a Serra-Secca; e,
depois de os ter em meu poder, se quizeram fazer christãos, asim elle
como Axa Anzures; lhe dou a elle e seus descendentes (se forem bons e
fiéis christãos) o Iogar de Lamego com toda a sua jurisdição e elle nos
pagará cada anno a quadragéssima parte das rendas desta terra, e nós
teremos o cuidado de o defender de seus inimigos e elle nos será fiel e
bom de coração. Foi feita a presente carta em Guimarães, na era de 1102,
aos 13 de Novembro, Eu, Henrique, conde, confirmo. – Eu rainha Thereza,
confirmo. – Ayres Peres, senhor da terra de Vizeu, confirmo. – Egas
Moniz, senhor de Riba Minho, confirmo... (seguem-se assinaturas de
testemunhas, e) Sezinando, notou.»
A lenda da rainha
Santa Mafalda
De então para cá, pode dizer-se que a história da vila é a do seu
convento, que a moldou um tanto à imagem e semelhança da mentalidade das
Freiras de Cister, regra introduzida pela rainha D. Mafalda que, tendo
casado com seu primo, D. Henrique I, de Castela, dele se divorciou ainda
virgem, por ter feito voto de castidade.
De novo em Portugal, quis professar. O rei
seu irmão, D. Afonso II, deu-lhe a escolher o mosteiro e ela preferiu
Arouca. A sua acção foi decisiva para a grande prosperidade do Convento.
Criou, entre o povo do concelho, uma aura de santidade. Quando faleceu,
o povo de Rio Tinto queria que ela ficasse sepultada naquela aldeia.
Opuseram-se os de Arouca.
Segundo reza a lenda, resolveu-se deixar a
solução do pleito à mula em que a abadessa costumava viajar.
Punha-se-lhe o caixão em cima e, onde ela parasse, seria o local da
sepultura. Assim fizeram.
Com grande espanto das gentes de Arouca e
muita mágoa das de Rio Tinto, a alimária meteu patas ao caminho de
Arouca. Só parou na igreja do convento, frente ao altar de S. Pedro.
Ali, foi-se abaixo das mãos, ajoelhou e caiu para não mais se levantar.
Esta lenda é tida como facto consumado e
está ilustrada em pinturas existentes no coro daquela igreja, o mais
rico do País.
Quando, em 1617, se tratou da canonização da
Rainha D. Mafalda, o bispo de Lamego encontrou o corpo inteiramente
incorrupto. Em 1792, completou-se o processo da canonização e a Santa
foi depositada no sarcófago onde ainda hoje ali se encontra. É uma das
relíquias do convento. Todo em ébano, com incrustações de prata e cobre,
encimadas pela coroa real, tem um dos lados em cristal, podendo ver-se,
através dele, o cadáver revestido de cera.
O primitivo túmulo, magnífico exemplar
medieval, está colocado sob o altar de S. Pedro.
Quando da dissolução da ordem, no princípio
do nosso século, as autoridades quiseram retirar as relíquias do
convento, ao que o povo se opôs, numa verdadeira revolta. A despeito de
se ter verificado a intervenção dos soldados... reais, o povo levou a
sua avante e evitou que as relíquias, quase todas pertencentes a Santa
Mafalda, fossem retiradas de Arouca.
A fechar este breve apontamento sobre terra
tão pitoresca e salubre, resta-nos referir, como uma das mais fortes
presunções do seu excelente clima, que a freira D. Tóda Maria Coutinho
lá viveu cerca de cem dos seus cento e vinte e três anos, sendo
contemporânea de sete reinados – os dos três Filipes, D. João IV, D.
Afonso VI, D. Pedro II e D. João V. Virtudes de uma terra onde desfrutou
de paz e que sem muito esforço pode transformar-se numa das mais
tranquilas estâncias de turismo do nosso País.
RENATO BOAVENTURA
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