José Pereira Tavares
■ Cecília Sacramento
Os outros só liam o nome e o número.
E aquele professor, na minha primeira aula de Português,
a ler na caderneta o meu nome, a perguntar-me onde eu vivia, como vinha
para Aveiro todos os dias. E parar um pouco, ante a minha resposta a
esta última pergunta. E depois a falar do meu nome e a contar à turma a
história da Santa Cecília, lá de longe, do tempo dos romanos, e do muito
que ela dava nas melodias que entoavam nas catacumbas para os que
sofriam as perseguições por serem cristãos. E aqui parar a explicar o
que eram catacumbas e o porquê de nelas se refugiarem homens e mulheres
que nenhum mal faziam, antes o bem. Depois, continuava no nome para
dizer que essa mulher tanto dera aos que sofriam, em momentos de beleza,
com os seus cânticos, tanto se expusera, por isso, a ser perseguida, que
acabara barbaramente martirizada às mão dos seus perseguidores. E assim
passara a ser chamada Santa Cecília. E que de há muito era considerada a
advogada, a patrona, a protectora da música e dos músicos.
E sorria-se para mim, depois de ter contado tão linda
história. Como quem dizia que eu tinha um lindo nome. E eu envergonhada,
ali desadaptada, mas um enlevo a percorrer-me, na minha pequenez
comovida.
Foi assim que conheci este grande Mestre, que para todos
os alunos tinha palavras de humanidade e simpatia, mesmo no simples acto
de ler as folhas de uma caderneta escolar. Foi assim que para sempre
fiquei ligada a ele por uma enorme admiração e por uma grande ternura,
quando ainda nem sequer sabia o que era ternura. De facto, «sentir é
coisa mais profunda que saber».
Vinha da escola primária, que se reduzia a uma única
sala, a uma única professora, a umas dezenas de alunos das várias
classes, postas na tal mesma sala a aprenderem e a ensinarem-se uns aos
outros, na familiaridade. E via-me assim caída numa grande escola, que
nem escola se chamava, tinha o nome pomposo de liceu. Com muitas salas,
muitos alunos meus desconhecidos e sobretudo com professores que de hora
a hora se sentavam àquela secretária, cada um para ensinar cada
disciplina, quando na minha outra escola a mesma professora ensinava
tudo. O meu espanto, a minha timidez, a sensação de que não estava numa
escola, mas numa outra coisa muito mais complicada e muito superior às
minhas forças.
E numa primeira aula, sem eu entender, veio aquele
professor e tudo se começou a humanizar.
Não posso contar como este deslumbramento se foi
cimentando através de muitas aulas, pois tive a felicidade de ter este
Mestre durante os sete anos do curso, primeiro em Português e depois em
Latim. Não posso contar como cada aula era desejada, era fruída, era
depois uma grata recordação. Aula-convívio, aula-aproximação,
aula-relâmpago. Nunca um berro, nem sequer um altear de voz. Nunca uma
deselegância. Nunca um amesquinhar. Antes e sempre um
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estímulo a ficar em nós, uma proximidade professor-aluno exemplar.
Extraordinária. E as aulas decorriam num clima de tranquilidade, sem
sobressaltos, mesmo nos testes, eram uma conversa em que o mais velho de
nós aproveitava a oportunidade dos textos, pelo apontar daquilo que os
faziam belos ou curiosos ou interessantes, o tema, a escrita, a
urdidura, o vocabulário, a ironia, a leveza formal, as ideias, as
personagens, os diálogos. E mais: pelas histórias que, a propósito
deles, aqui e ali contava, uma peripécia, um pormenor, do autor, da
época, do assunto, a transmitir habilmente a verdadeira cultura.
«Os Lusíadas» – qual divisão de orações em catadupa,
sistemática, enfastiante? Apenas, aqui ou além, para buscar a clareza
difícil de achar pela nossa pequenez, apenas a preocupação de elucidar a
construção do período e de pôr em relevo, por exemplo, a oração
principal do mesmo, para mostrar como as outras, as subordinadas, se
encadeavam nesta. E outras coisas formais, de certo modo básicas para
seguirmos o fio condutor do discurso poético e aí o ver, profundo e
eloquente. Mas tudo temperado, como o sal na comida. Com a mestria dos
verdadeiros pedagogos. Porque o que fundamentalmente acontecia era
sermos conduzidos, sim, para as grandes linhas do poema e para a sua
força, que eram a soma de tantas marcas de talento: as harmonias
linguísticas de belos versos, o desdobrar do ímpeto poético dos grandes
episódios, o génio com que erguia as figuras que perpassam no poema,
como uma Inês de Castro, um velho do Restelo, um Vasco da Gama, um Nuno
Álvares Pereira, etc., etc. Até um assombroso Adamastor, até a graça de
um «Veloso Amigo». «Os Lusíadas», com o seu sopro de génio e a força da
sua beleza, sempre sublinhados pelo Mestre, ficaram bem como um marco na
nossa caminhada cultural. A enriquecer-nos. Nunca a enfadar-nos.
Perto do 5.º ano, começámos o Latim. E a mesma subtil
arte de ensinar. Uma língua tão diferente das outras já conhecidas
nossas – e tudo ia sendo apreendido com o método, o desfazer de
dificuldades, o atender ao fundamental. E a temperá-lo, ao método, à
progressiva descoberta, havia as historietas que, a propósito de certos
vocábulos, certas expressões, certos passos, contava. E essas
historietas, precisamente pelo seu carácter lúdico, ajudavam a fixar
para sempre coisas fundamentais da língua latina. Quem não se lembra do
«busíllis», do «Apparent rari mantes in gurgite vasto», do «Quosque
tandem, Catilina, patientia nostra abutere»? Do «Mons Parturiens»?
O grande Mestre. O grande Amigo. Não quero alongar-me,
mas lembro apenas o que significou, o muito que significou para Mário
Sacramento ver aparecer-lhe, um dia, o seu velho Mestre a oferecer-lhe o
Caderno Diário de Português, que guardara quando fora seu aluno. Pelo
muito que nele encontrara. Coisa que só os grandes professores
encontram. E que só os maiores guardam.
Lembro apenas mais nós quatro, a Nereida, a Generosa, o
Zé Santos e eu, lembro a nossa alegria, ao vermos aparecer-nos o nosso
querido Professor, em Coimbra, no nosso primeiro ano universitário, a
visitar-nos, para nos abraçar e nos levar o ânimo. Como só os grandes,
raros Amigos fazem.
Que felicidade não foi ter encontrado no meu percurso
este Homem. Este Mestre.
Este Amigo. ■
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