Liceu
de José Estêvão
Memórias de
José Maria Gouveia
1925 foi o ano da minha primeira entrada no Liceu de
Aveiro. Saí em 1928 (direi porquê) e regressei em 1933.
Assim, para falar da importância que o "meu Liceu" teve
na minha vida, faço-o, naturalmente, com a perspectiva de quem vive em
2001, a perspectiva do "nosso tempo" que é de um "presente" com um longo
passado.
Após o exame da 4.ª classe, entrei na "escola grande", o
Liceu de Aveiro, que então se chamava Liceu Central de Vasco da Gama.
Aluno n.º 10 da classe 1, turma A, com lugar marcado ao
fundo da sala do 1.º andar do Anexo, "abrigado" no vão de uma porta de
ligação com outra sala. Ia "longe" o tempo do "atendimento
personalizado" de que beneficiara, com os meus companheiros, na escola
primária de Ílhavo, por parte do professor José Lourenço Catarino.
Ílhavo foi a terra que o trabalho fixara para residência
dos meus pais, Aníbal e Maria Emília.
Estarreja, a terra onde nasci a 14 de Fevereiro de 1915,
numa casa da Rua José Falcão, do "Outeiro da Marinha".
Ali perto, com seis anos, estava eu na escola da dona
Joaquina, entretido a sacholar um cantinho de terra que a professora
destinara no jardim para eu "semear" quando a Lurdes, que vivia connosco
– a minha mãe tinha-a ido buscar a um asilo – me chamou.
A Lurdes perdera a mãe, quando esta, ao tentar salvar uma
peça de roupa que lhe fugia na corrente, foi apanhada pela roda grande
da azenha do rio Antuã. Que íamos para Ílhavo, dizia a Lurdes, para uma
terra chamada Gafanha de Aquém.
No
cais do esteiro de Estarreja, o barco mercantel estava já carregado com
todas as pertenças da nossa casa. Os meus pais e os meus dois irmãos
aguardavam "a bordo" a nossa chegada para iniciarmos a viagem, através
da ria, a caminho da nova morada, lá longe.
Para trás ficavam as recordações: as idas ao Porto, a
casa do tio Dias, a descida do comboio para evitar a travessia da ponte,
os eléctricos, os carros dos bombeiros movidos a quatro cavalos e as
lembranças, ainda muito vivas, da ocupação das tropas monárquicas e dos
tiros dos republicanos, vindos da Senhora do Monte e a fuga da nossa
casa para a da nossa tia Mariana, camponesa da Póvoa, que nos oferecia
segurança e abrigo. E as saudades: a avó Amélia, os tios e primos, os
ferreiros e os da serração, a "senhoril" mas afectuosa, tia Quinhas e a
irmã dela, a colossal, tão pequenina e tão grande, de trabalho, de
simplicidade, de atenção aos outros, à dezena de filhos, aos amigos a
eles
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ligados, aos servidores ... a tia Guidinha.
Outros e bem diferentes eram os valores deixados pelos
meus pais. Para além da alteração profunda de uma convivência de 40 anos
com familiares e amigos, a profunda alteração no trabalho de ambos: a
minha mãe era obrigada a sacrificar a actividade de costura a que se
dedicava, desde menina, com interesse e amor, mas o meu pai podia
assegurar melhor a nossa sobrevivência, ao ser nomeado aspirante de
finanças para o concelho de Ílhavo, deixando o seu modestíssimo e
aleatório emprego de "escrivão da paz".
Decorria o ano de 1921. Íamos empreender uma nova
caminhada, agora sobre a água.
Com a falta de vento, o esteiro de Estarreja parecia não
ter fim. Os barqueiros não paravam. Chegados à larga ria, então as velas
enfunaram e o barco obedecia ao vento. Ao largo ficava-nos a Torreira,
mais além S. Jacinto.
Já anoitecia, à vista do Forte. Começavam as manobras das
velas e do mastro, que eram arreados, para a passagem da primeira ponte.
Novas manobras para o novo lanço da ria e, finalmente, a chegada à ponte
de Juncal Ancho, na Gafanha de Aquém.
Caía uma chuva miudinha quando atracámos, logo após a
passagem da ponte. Seguiu-se uma longa espera que nos intrigava. A
dúvida e o medo apoderavam-se de nós.
Súbito, uma voz no escuro chuvoso:
– Vamos p'ró Sul!
Só mais tarde o "mistério" deixaria de o ser:
O meu pai, não encontrando casa na então vila de Ílhavo,
pediu a um amigo (o Sr. Reigota ou "Ti Manel Russo") que lhe arranjasse
uma casa na Gafanha de Aquém. E ele assim fez. Mas porque pensou também
numa casa vazia, pertença do seu amigo Rufino, vai a casa deste, na
noite da nossa chegada, e dispara:
– Está ali o Sr. Aníbal que vem p'rá tua casa.
– P'rá minha casa?
– Sim, p'rá tua casa que está vazia e fica perto da
estrada. Ele vem p'ràs finanças e vai ficar aqui com a família.
– Ah isso é que não vai. Manda lá nas tuas coisas que eu
mando nas minhas.
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91 /
E não saiu da sua. Valeu ao "Ti Manel Russo" e a nós,
principalmente, a segunda casa, essa, sim, contratada como devia ser.
O poder caciqueiro e a sua falta de diálogo caíam, assim,
frente à dignidade ferida.
E a regra dos contrários também aqui funcionou, pois
contribuiu para o estreitamento das nossas relações de amizade com a
família Rufino.
Um pouco mais a sul, acostámos de novo. Ficava ali a casa
que seria nossa durante 4 anos, a 100 metros da ria e a 200 do pinhal,
no meio de terras lavradas e semeadas, ora a milho, ora a trevo.
Do pinhal corriam valas de límpida água, onde, no
Inverno, a montante de ocasionais lavadeiras, me lavava de manhã cedo.
No Verão, e sempre que havia bom tempo, o meu pai levava-nos a mergulhar
na ria. Ali aprendemos a nadar. Na maré baixa, um pé no fundo, um
impulso...
Mas, na água, o perigo espreita. Um dia, o meu irmão mais
novo, (tinha 5 anos), a brincar em água pouco funda, ia sendo arrastado
pela corrente. A minha mãe, atenta, correu a agarrá-lo, antes que nós,
que também brincávamos, o fizéssemos.
Noutra ocasião – éramos mais espigados – quando nós, os
três irmãos, com o nosso amigo Claudino, corríamos para uma das lagoas
que se formavam nas dunas do pinhal, 3 ou 4 metros antes da água, fomos
absorvidos até acima da cintura. Valeu-nos a todos o meu irmão mais
velho, que gritou para não nos mexermos. Depois, com o sobretudo que
tinha vestido e que puxou, formou uma base em que se apoiou e saiu. Em
seguida, puxou-nos um a um, com alguma dificuldade. Foi tal o susto que
não voltámos àquele local.
Foi nesta aldeia, toda voltada ao sol e batida pelo
vento, tendo em frente Ílhavo e a Vista Alegre, ladeada a nascente pela
ria e a poente pelo pinhal, que vivi com os meus, durante quatro anos.
Não havia luz, nem fontes, nem estradas, nem transportes.
As distâncias percorriam-se a pé.
Os lavradores – que o eram no sentido verdadeiro –
constituíam a quase totalidade da população. Lavravam, semeavam,
regavam, colhiam. Abriam pequenos poços para usos caseiros e outros
maiores destinados à rega dos seus terrenos.
Para um caminho de carro, ao longo da ria, confluíam os
que eram privativos das habitações espalhadas nas terras de cultivo:
esboço das estradas actuais. A nossa alimentação, ao pequeno-almoço e ao
almoço era a do costume de pessoas que não trabalhavam no campo. À noite
era a "ceia": bacalhau ou peixe conservado em sal, batata, hortaliça e
pão de milho – broa ou bôla quente (em dias de forno).
Recordo serões em casa de vizinhos, à luz da lareira. O
seu comer "de baciada", as suas histórias de "almas penadas" e de
"lobisomens" que não me preocupavam porque nelas não acreditava.
A "escola" era "ao norte" da aldeia, na casa do Sr.
Teófilo: Lá aprendi as primeiras letras e as primeiras contas; primeira
e segunda classe.
Na 3.ª classe fomos para a escola da Lagoa, em Ílhavo.
Ali fizemos o exame da
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4.ª classe. A minha mãe, na aldeia, era conhecida pela "senhora
professora". Não ensinava a ler, nem a fazer contas. Mas sabia de
costura e gostava de ensinar o que sabia. "Herança" que me ajudaria mais
tarde a vencer os "vendavais" que a vida nos reserva.
Também nos levou a aprender a "doutrina" na "senhora
mestra" da rua do Espinheiro. Para aqui e para encurtar distâncias, a
minha mãe, que aprendera a manejar uma bateira, à vara, levava-nos à
Barquinha, "praia fluvial" onde a "malta" de Ílhavo aprendia a nadar.
Dali, à "senhora mestra", através dos campos, era um salto.
Aos domingos, íamos à missa à Igreja de Ílhavo. As luzes,
as cores e a música (os cânticos) atraíam-me e o "catecismo", se me
ajudou a consolidar o que aprendera de leitura nas primeiras classes,
contribuiu também para o aparecimento das minhas primeiras dúvidas. É
que eu lia e relia o pequeno livro.
A entrada no Liceu criou a necessidade de nos
aproximarmos de Aveiro, sem perdermos a ligação a Ílhavo, pois aqui
continuava o trabalho de meu pai. A morada encontrada foi na Quinta da
Boa Vista, em Verdemilho, com fácil ligação à cidade e ao Liceu. O meu
irmão mais novo, o Amílcar, foi para a 1.ª classe da Escola de Aradas. O
Orlando, mais velho que eu ano e meio, foi comigo para o 1.º ano do
Liceu.
A diferença entre o ensino vigiado e "apoiado" da Escola
Primária e o ensino "livre" do Liceu foi por mim bastante sentida. Não
fui bom estudante, a não ser "a espaços". O ambiente na Quinta não era
favorável. Brincávamos muito. Bela Quinta!
No Liceu havia professores que captavam a nossa atenção.
Bastava estar atento nas aulas do Dr. Álvaro Sampaio – e não havia outra
maneira de estar – para aprender o que ele nos ensinava em Ciências
(perdão, em "Sciências"...) Um "momento" numa das suas aulas: «Os
mamíferos são animais que nos primeiros tempos de vida mamam.». Uma
aluna sorriu.
– Menina Laura (...) saia da aula. Leva uma nota de mau
comportamento. Se tiver outra, reprova.
A "presença" do Dr. José Tavares era respeitosa, calma e
propícia ao gosto pela disciplina, o Português. O professor de
Matemática, no 1.º ano, era o capitão Amílcar Gamelas. Explicava muito
bem, mas não se "zangava" se não soubéssemos responder... "Acordei" a
tempo.
As memórias da Escola Primária "renasceram": o desenho
cuidado dos algarismos, a planificação dos cálculos, a execução das
operações e a sua inclusão nos exercícios escritos, o conhecimento da
diferença de designação das operações e dos seus resultados:
adição/soma; subtracção/resto, excesso ou diferença... Mas "nasceram"
novas linguagens. Por exemplo: o professor empregava com frequência a
expressão "é evidente que" e eu não percebia o que ele queria dizer. Eu
tinha dez anos, sem muita convivência com pessoas mais velhas. Talvez
fosse esta a razão de eu não perceber. O certo é que, ainda hoje,
perante a clareza das coisas, é aquela expressão que uso, pois não gosto
do "é
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óbvio" embora tenha gostado muito do "obviamente, demito-o"...
A propósito do cuidado a ter quando se escrevem os
números, conto o seguinte: um dia sou avisado para pagar uma conta de
água. «Até ao dia 25», dizia o aviso. Fui à repartição no dia 24. Está
fora do prazo é até ao dia 20 – disseram-me – mas o pior é que o Sr.
como não tem depósito, tem de o fazer agora e são cinco mil escudos». –
"Não faço, não Sr.ª, estou dentro do prazo. Aqui diz "até ao dia 25". Só
os chefes, cuja presença reclamei, decidiram a meu favor. O zero, por
estranho que pareça, tinha a forma de um cinco.
Do 1.º ao 3.º ano transitei por média, mas no final deste
último ano fui admitido a exame e reprovei. Eu e o meu irmão. Ainda
hoje, mais de 70 anos passados, "ouço" o som gutural com que o contínuo
Moreira pronunciou, após o nosso nome, a palavra funesta REPROVADO!
Muito sofri. Não tanto pela reprovação, que "passou". Mas pelas suas
consequências.
Estávamos no ano lectivo de 1928/29. O meu pai ao
pretender matricular-nos – éramos 3, pois o meu irmão mais novo
terminara a instrução primária, – foi informado que os alunos repetentes
teriam de pagar propinas em dobro. Éramos 3, valíamos por 5. O meu pai
chegou a casa muito preocupado. Não podia ser. O seu ordenado era
pequeno. Mesmo 3 era difícil, quanto mais... Receava pelo nosso futuro.
Só que a vida tem muitas soluções, ainda que seja "nenhuma solução".
Constou-nos, mais tarde, que aquela decisão tinha sido
anulada. Mas nós já estávamos afastados.
Afastados do Liceu e dos companheiros que muito
prezávamos. Dentre eles destaco o Joaquim Seabra Diniz, de Sangalhos,
que, com 13 anos, recitava, como gente grande, na aula do Dr. José
Tavares e o Póvoa dos Reis, de Eirol. Às vezes, nos intervalos das
aulas, sentados num dos bancos do recreio, ele e eu nos "divertíamos"
com a "novidade" das expressões algébricas. Notáveis cidadãos se
tornaram. O Seabra Dinis, médico psiquiatra de grande valor. O Póvoa dos
Reis foi padre, cientista e humanista.
Decorria o ano de 1928. Comemorava-se em Aveiro o 1.º
centenário da revolução liberal de 16 de Maio de 1828. Festas
grandiosas, solenes e populares, recordando a revolta contra os
opressores da liberdade:
Nobreza e clero, "educados" por 3 séculos de absolutismo,
que descobriam na confusão do pais, após a morte de D. João VI, ocasião
favorável à destruição das conquistas de 1820. Revolta que a proclamação
de D. Miguel, como rei absoluto, tornara inadiável. Joaquim José de
Queirós, o seu perseverante organizador. Um aveirense. Derrotas, no
começo, mas a vitória chegaria com a Convenção de Évora Monte, em 26 de
Maio de 1834.
Contrastante, a generosidade dos liberais vencedores com
a repressão dos absolutistas, pletóricos de ódio, sedentos de sangue.
Quero aqui recordar o nome dos aveirenses Mártires da Liberdade:
Francisco Manuel Gravito de Vieira
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e Lima, Francisco Silvério de Carvalho Magalhães Serrão, Clemente de
Meio Soares de Freiras, Manuel Luís Nogueira, Clemente de Morais
Sarmento, João Henriques Ferreira.
Assisti aos festejos de 16 de Maio de 1928, às
homenagens, em que o nosso Reitor tomou uma parte activa, ao lançamento
da primeira pedra do monumento à Liberdade, na Avenida Central.
Já passaram 73 anos sobre estes festejos. Terão de passar
muitos mais para o monumento ser construído? Para quando o acordar dos
aveirenses do sono que os impede de se honrarem e à cidade,
restabelecendo o dia 16 de Maio como o do feriado municipal?
1928... Este foi também o ano de mau augúrio, o ano em
que o Salazar, com pés de lã – tirara as botas – entrava no Governo,
como ministro das finanças. Será que foi ele a mexer os cordelinhos das
propinas? Talvez não, ele ainda não me conhecia...
Frente ao meu velho Liceu, que "parecia" querer negar-me
uma nova oportunidade, ficava a Escola Comercial, de seu nome completo
Escola Industrial e Comercial de Fernando Caldeira, que nos abria as
portas de par em par. Ensino gratuito. Ainda fomos a tempo de nos
inscrevermos nesse ano. Mas como algumas disciplinas eram diferentes da
que se estudavam no Liceu, só pude matricular-me no 2.º ano.
A Escola Comercial funcionava em dois períodos: das 16 às
19 horas, para os mais novos, e das 19 às 23. Não havia, portanto, aulas
de manhã. Mas era uma boa escola, com alguns bons professores e
empregados. Todos preocupados com o bom nome do colectivo. O estímulo da
"vizinhança" ajudava.
Completei o "Curso Comercial" que era de 4 anos, em 1931.
Desde então acompanha-me o princípio, ali aprendido, "quem recebe,
deve/quem dá, tem a haver", que pode traduzir-se por "bem fazer" para
"bem receber”.
As "Noções gerais de comércio" e a "Escrituração
comercial" eram dadas pelo professor Cardoso, um homem bem disposto. Com
o Dr. Fernando Homem Cristo podia aprender-se bem o Francês, lido
e falado, desde que se estivesse com atenção. A maior parte não estava,
ou melhor, estava atenta a alguns "tiques" de vaidade do professor. Era
um Parisiense. Vivera largos anos em Paris. Quando, ao passear nos
"Arcos" lhe caía o monóculo, não hesitava um segundo a tirar outro do
bolsinho do casaco e a colocá-lo com "estilo" no respectivo olho. Eu
gostava da aula de Francês.
O professor que mais se identificava com a Escola
Comercial era o Dr. Manuel Marques Damas. O seu nome lembrava a
Escola. Falar ou pensar na Escola era lembrar o seu nome.
O Dr. Damas foi o professor que teve uma influência
decisiva na minha vida. A ele devo o meu regresso ao Liceu. Terminado o
curso, procurei-o na Escola: – O Sr. Doutor pode ajudar-me a fazer o 5.º
ano do Liceu?
– Sim, senhor. Vamos a isso. – Respondeu-me com a amizade
que lhe conhecia.
/
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Durante dois anos – 1931/32 – eu ia a casa do professor,
na Vista Alegre, a 7 km de Aveiro. Se não levasse um resumo, pequeno que
fosse, de 20 estâncias dos "Lusíadas", "abanava-me", brincando, contra
uma porta, um pouco solta, que fazia muito barulho. E eu ficava com
vergonha das filhas dele, que ouviam, de certeza (10 ou 12 anos mais
tarde 2 delas viriam a ser minhas alunas).
E que bem me fizeram esses pequenos resumos dos
"Lusíadas". Quão importantes eles foram, 40 anos depois, no meu exame de
admissão à Universidade, em 1972.
A minha preparação para o exame do 5.º° ano do Liceu foi
pouco segura. Resultou do grande número de disciplinas, do pouco tempo
que eu dispunha para o ensino e do tempo ocupado a trabalhar como
marçano-caixeiro-pracista (esta a evolução) numa casa comercial em
Aveiro. E sobretudo do meu temperamento. Beneficiei, no entanto, do
"estatuto" de estudante, com que entrei, aos 13 anos, para o campo do
trabalho. Não era obrigado a cumprir um horário que existia ao sabor de
quem mandava. É claro que o meu "ordenado", que entregava à minha mãe,
era condizente com a minha disponibilidade.
Passava-se isto no princípio da década de 30. Cheguei a
fazer parte do Sindicato que reclamava o horário de 8 horas. Sindicatos,
"armas carregadas de futuro" (numa citação do Macedo, do Sindicato dos
Professores).
A este propósito, uma retrospectiva: Salazar e os seus
bem-mandados fizeram inscrever no "Estatuto dos funcionários civis do
Estado" o seguinte preceito: «Os serviços terminarão quando o respectivo
chefe os der por findos.» Mentalidades carregadas, derreadas de
passado...
A 1.ª tentativa de exame do 5.º° ano foi no Liceu
Rodrigues de Freitas, do Porto, em 1931. Não fui admitido à oral. Na
minha caderneta escolar não há qualquer referência a este facto. A 2.ª
tentativa foi no ano seguinte, no Liceu Alexandre Herculano e teve um
êxito "estrondoso", pois fui aprovado com dispensa de prova oral.
A grande alegria que senti comparo-a hoje à do 25 de
Abril de 1974. Corri a casa do Rocha e Cunha a dar a boa notícia ao
Joaquim, o meu fidelíssimo amigo que, todos os dias, às 3 e meia da
tarde, me esperava à porta da loja, onde eu trabalhava, como a avisar-me
que eram horas de ir para a Escola.
Em seguida, sempre a correr, fui a casa, nas "Pombinhas"
à entrada de Aveiro. Dada a boa nova, de bicicleta, voei à Vista Alegre
a abraçar o professor. Como um "maratonista", mas de bicicleta, fui
expandir a minha imensa alegria à Costa Nova e à Barra, após o que
regressei a casa a pensar no meu futuro imediato. Ciências? Letras? E a
loja?
Matriculei-me no 6.º ano de Letras e a minha sala foi, de
novo, no Anexo (regresso completo), no rés do chão, com janela para o
recreio das alunas. Era o ano lectivo de 1933/34.
Logo nos primeiros dias, um "desconhecido", com um
pronunciado acento ribatejano: «Os colegas dão licença? Apresenta-se
Manuel Romeiro Vaz Velho, transferido do Liceu de Santarém.»
Foi um dos espíritos mais brilhantes que passou pelo
nosso Liceu. Inteligente e extremamente popular, o Vaz Velho marcou uma
época.
Recordo os professores, Drs. António Salgado Júnior,
Francisco Assis Maia,
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Armando Coimbra, Alexandre Barbas, o saber, a
solidariedade, a amizade, a camaradagem. E Agostinho da Silva. O
sonho de um mundo novo, com a libertação da criança que existe dentro de
nós. Criador de utopias realizáveis, se... E de alguns mitos, também.
Defeitos? Quem os não tem? Até os deuses, que criaram este mundo,
podendo fazer melhor... Deixaram-nos essa tarefa? Então, mãos à obra!
Foi Agostinho da Silva quem trouxe a ideia das
"solidárias". Cada turma uma "solidária" com o seu patrono: Camões,
Herculano, Garrett, ...
O nosso, no 6.º ano, era Leonardo da Vinci. Cada
"solidária" elegia um presidente e um secretário. A reunião de todos
formava uma Assembleia de onde saía, democraticamente eleita, a
"Direcção dos Estudantes do Liceu de José Estêvão", formada pelo
presidente da academia e os directores das diferentes secções: cultural,
desportiva, recreativa, de tesouraria.
Já antes havia notória actividade cultural e desportiva.
O prestígio duma instituição, como o nosso Liceu, é obra da dedicação de
reitores, professores e de alunos. Teatros, conferências, festivais. No
desporto, o basquetebol de há muito ganhara o entusiasmo dos alunos, que
formaram equipas de bom nível distrital. Só que a chegada de Agostinho
da Silva e a sua permanência no nosso Liceu, durante dois anos, graças à
sua inteligência e aos seus extraordinários dons de expressão e de
iniciativa, foi como se, por todas as janelas abertas, entrasse a
refrescante brisa desta planície aveirense.
O Dr. José Pereira Tavares, no seu livro "Exame de
Consciência" diz: «Nesse ano (1935), foi demitido do cargo de
professor liceal o professor Agostinho da Silva, por se negar a assinar
a declaração exigida a todos os funcionários, de que não pertencia a
qualquer associação secreta! Assim se viu despojado o Liceu de um
professor de real valor, estimadíssimo por colegas e alunos...»
Momentos altos se viveram no Liceu, por iniciativa ou
preponderante intervenção dos alunos, nos anos de 1934 a 1937.
Pesadas sombras ameaçadoras de guerra escureciam os céus.
Em artigos publicados no nosso jornal “A Voz Académica”, os estudantes
mostraram o seu amor à paz, reclamando contra as causas conducentes à
guerra. Como consequência dessa larga e persistente campanha, a
Federação Internacional dos Antigos Combatentes – FIDAC –, em reunião
realizada em 1935, em Varsóvia, capital da Polónia, resolveu atribuir a
"A Voz Académica" a medalha escolar "FIDAC".
A este respeito, transcrevo o teor duma carta do
Presidente da Secção Portuguesa FIDAC, general Ferreira Martins:
Lisboa, 12 de Fevereiro de 1936. Ex.mo Senhor
Dr. Armando Coimbra. Liceu de José Estêvão, Aveiro. Ex.mo
Senhor. Só agora me foi possivel – perdôe-me V. Ex.ª a confissão – ler o
número 6 de "A Voz Académica", do 1.º de Dezembro último, já há muito
recebido e que muito agradeço. Começarei por felicitar V. Excia como
orientador do jornal académico e os jovens estudantes que constituem a
sua Direcção e Redacção por verem coroados de êxito os seus esforços e,
pelo prazer que os orgulha, de fazerem entrar o interessante jornal no
segundo ano de publicação. Que em boa hora nele entre e lhe traga as
prosperidades que bem merece! Neste número que tenho presente merece-me,
porém,/ 97 /
particular interesse e especial referência o notável artigo "Pacifismo"
em que João Costa – que julgo ser o moço redactor principal – a par da
sua interessantíssima lição histórica que nos dá sobre as "as aspirações
de paz" aponta com flagrante oportunidade, o movimento académico mundial
para "arrancar do mundo as raízes geradoras da guerra" e apela com
fervor para a academia
/ 98 /
portuguesa para que secunde esse movimento pacifista. E porque a
doutrina e o objectivo desse artigo está absolutamente dentro dos
princípios que orientam a acção da FIDAC, eu peço a V. Ex.cia
o obséquio de transmitir ao seu autor as felicitações e os
agradecimentos que, em nome dela aqui sinceramente lhe dirijo. A grande
parte que nessas felicitações e agradecimentos cabe a V. Ex.ª na sua
qualidade de criterioso orientador do jornal digne-se V. Ex.ª aceitá-la
com as homenagens desta Secção e o meu testemunho pessoal de particular
apreço e alta consideração. O Presidente da Secção Portuguesa FIDAC a) –
General Ferreira Marfins. P.S. Desejaria divulgar o artigo "Pacifismo"
em jornais dos antigos Combatentes. Quereria V. Ex.ª obsequiar-me
fazendo que, para esse efeito, me fossem enviados três ou quatro
exemplares do número 6 do jornal? Muito lhe agradeceria a) G. F.
Marfins.
Em sessão pública realizada no Teatro Aveirense, em 9 de
Abril de 1937, recebi, na qualidade de Presidente da Academia, no ano de
1935/36, das mãos do representante da Secção Aveirense da FIDAC, a
medalha escolar daquela instituição que, de imediato, transmiti ao novo
Presidente da Academia, António da Rocha e Cunha.
Nesse acto pronunciei o discurso que foi publicado em "A
Voz Académica", no seu número 20, de 30 de Abril de 1937. Apenas algumas
passagens:
«A entrega da medalha da Paz, galardoando o esforço feito
pelos estudantes de Aveiro, em prol da difusão dos ideais pacifistas,
constitui um motivo de regozijo para a Academia Aveirense.
Em diferentes momentos a Academia tem sabido patentear
duma maneira bem clara, o seu grande entusiasmo pelos ideais que
verdadeiramente nos dignificam(...) Foi assim que, em “A Voz Académica”,
se iniciou uma campanha aturada, persistente em que se procurou
desenvolver no aglomerado académico o espírito pacifista.
Por princípio, por responsabilidade e ainda por instinto
de conservação, devemo-nos tornar paladinos da harmonia entre os povos.
A conquista da Paz é uma conquista e liberdade. É a libertação do
espírito para a orientação voluntária dos nossos destinos.
/
99 /
Sem uma organização do trabalho regularmente elaborada,
sem uma justa distribuição das riquezas e dos confortos que do
desenvolvimento da técnica-científica resultaram, sem uma com
participação modelar dos bens que as descobertas científicas legaram à
humanidade, a Paz é irrealizável. A disputa entre os homens continuará,
violentamente, enquanto o problema da miséria não for solucionado.
Companheiras! Raparigas que vos preparais para a vida
melhor do que as vossas antepassadas, que adquiris, com a vossa formação
intelectual e moral uma mais perfeita consciência da vossa missão,
digo-vos como disse Marta Mesquita da Câmara: "Os homens podem destruir
o mundo independentemente das mulheres, mas não conseguem reconstruí-lo
sem o auílio delas.
E Companheiros, estudantes aveirenses, que recebeis hoje
a consagração merecida pelo esforço dispendido a favor duma ideia
generosa e altruísta, e que possuis entusiasmo, impulsividade e
arrebatamento: transmito-vos a medalha que é hoje vossa pertença. Que
ela seja um incentivo para que continueis a unir os vossos esforços por
uma causa que é bem a causa vital da Humanidade!»
Por outra causa e bem nobre se ergueram e uniram os
alunos do Liceu: o protesto contra a ofensa à memória de José Estêvão.
Estávamos no ano lectivo de 1934/35. Começaram a chegar-nos notícias
(corriam mais devagar, nesse tempo) de protestos em Lisboa, contra a
retirada da estátua de José Estêvão da frente da (actual) Assembleia da
República para um pátio interior.
"Ardiam" essas notícias numa espécie de lume brando,
quando em Aveiro se leu no "Diário da Manhã", ou noutro jornal
"semelhante", um artigo de Alfredo Pimenta – vesgo historiador da área
salazarista justificando e apoiando esse cobarde feito dos inimigos da
liberdade.
Tanto bastou para que diversas associações aveirenses
conjugassem os seus esforços e organizassem uma grande manifestação de
protesto. A Banda de José Estêvão a convocou. Manifestação popular. Só
popular. Dela se alhearam as "entidades oficiais". E porquê? Não se
pense que era para não dar muita importância ao sectário jornalista...
Não! Foi por medo! Por medo do risco. Salazar entrou a governar com pés
de lã, mas calçou as chancas. E os instalados e instaláveis sentiam
isso. Lenta e progressivamente se instalava também o medo – o mais
duradouro sentimento nos 48 anos de ditadura.
Depois de sucessivas recusas dos "notáveis" de Aveiro de
aceitarem ser porta-voz da indignação dos aveirenses, os organizadores
vieram apelar aos estudantes. Recaiu sobre mim a escolha. O cortejo já
partia do Rossio, enquanto eu, sem experiência em discursos sérios (dos
"outros" havia, claro) procurava alinhar algumas frases apropriadas para
dizer junto da estátua do grande tribuno. Todas me pareciam (e eram) sem
o brilho necessário. Mas foram ditas, não havia outras. No dia seguinte
realizou-se, na sede da Banda, um banquete de 3niversário e, então, aí,
tendo sido convidado, pude exprimir com mais cuidado, os sentimentos
colectivos da cidade. Dos presentes ouvi agradecimentos 30S estudantes
do Liceu que galhardamente se tinham associado e distinguido na
homenagem ao Patrono comum.
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100 /
Nesse mesmo ano, viveu-se internamente no Liceu um
movimento de solidariedade contra a "suspensão por dois anos" que se
dizia ter sido aplicada a um aluno do 6.º ano.
O "Manel Codim" – Manuel Nunes de Oliveira – estava
inocente. A palavra ofensiva que, manuscrita, estava a seguir ao nome de
uma aluna, na planta da aula, não foi ele que a escreveu. Era uma
palavra de quatro letras. Mas o professor pensou que talvez um exercício
escrito pudesse ajudar a descobrir o culpado. Dizem haver em cada um de
nós um poeta. Também há um polícia. E o Manel foi apontado. Acusado,
disse não ter sido ele. A malta procurava-me. Que era preciso defendê-lo
Encontro-o a jogar à bola, no largo frente ao Liceu. Corria, chutava,
não parava.
– "Manel! Quem escreveu aquilo lá na turma?"
– "Não sei. Eu não fui". – E continuava a correr, a
chutar.
– "Vai ter com o Reitor e diz-lhe que estás inocente".
– "Eu disse, mas ele diz que fui eu"...
Só se viesse a polícia é que o jogo acabava...
Os companheiros afirmavam-me que ele era assim. Era um
rapaz simples. Não podia ter feito aquela parvoíce. Mas não sabia
defender-se.
Fui a casa dele, em Ílhavo, junto ao cruzeiro, em Cimo de
Vila. O pai era oficial da marinha mercante, com muito boa fama, calmo e
bondoso. A mãe, mãe de meia dúzia de filhos. "Aquele filho é "assim".
Não fazia uma garotice dessas. Tem irmãos e irmãs. Conhecemo-lo bem..."
Reuni com a malta. Estávamos convencidos. Só faltava um
"abaixo-assinado" e colher assinaturas.
O João Costa e eu sentámo-nos a uma mesa e redigimos uma
petição ao Sr. Reitor. Não pedíamos clemência. Pedíamos justiça com base
na nossa convicção. Num universo de 500 alunos, colhemos 300
assinaturas, apesar da campanha negativa que o professor investigador
andou a fazer em várias salas de aula.
Acusado e defensor chamados ao Conselho Escolar. Os drs.
João Pires (Reitor), Álvaro Sampaio e Assis Maia aguardavam-nos.
(Sabíamos que as suas ideias preconcebidas se baseavam em exame
comparativo de letras, mais que falível).
O Reitor (excelente cidadão!) não interrogava, acusava.
Mostrava-se magoado com a má-criação e ofendido com os termos do
abaixo-assinado. Que iria investigar para saber quem tinham sido os seus
autores Logo ali ficou esclarecido. Tomava a responsabilidade, por mim e
pelo meu colega João Costa. Isso permitiu que, atentamente, ouvisse a
minha exposição.
À tarde a malta informou-me: "O Reitor perguntou por ti".
Corri ao seu encontro. "Diga ao aluno que pode continuar a frequentar as
aulas" (e subindo de tom) "Mas as investigações continuam!"
Se houvesse um castigo, mínimo que fosse, seria um erro.
O Manuel estava inocente, como previa. Anos mais tarde, recordando cenas
passadas, com um seu antigo companheiro, este revelou-me ter sido o
autor da garotice. Viu a asneira que fez e o mal que podia causar. Mas
teve medo. Não se acusou...
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101 /
Todos defendiam o Manel.
Também houve uma "Rebelião" ... folclórica.
No 6.º ano tínhamos feito uma excursão ao Minho. Foram
dois dias de alegre convívio, que teve o seu ponto culminante na
recepção que nos prepararam professores e alunos do Liceu de Viana.
Aliás, na tradição de amizade entre as duas cidades.
No 7.º "sonhámos" com uma excursão de 3 dias ao Ribatejo.
O beneplácito do Reitor era essencial, como é evidente. Concedeu-nos 1
dia e fez um comunicado, que foi lido em cada uma das "solidárias" do
Complementar, dizendo que a excursão que pretendíamos não era
"exequível". Esta expressão ribombou em todas as salas.
Estávamos a comentar esta decisão – que não aceitámos –
quando vimos passar um almocreve com o seu burro à arreata. "Associação
de ideias"... E deu "burricada". Não, lá na minha terra, o único burro é
este. Onde os senhores podem encontrar os que quiserem é em Sanchequias,
além de Vagos". Lá fui, de bicicleta, com o Zé Madaíl. As ruas da aldeia
eram de areia. Sentadas à porta de casa, pessoas com lepra.
Contratámos 22 burros a 15$00, cada. Sem que pedíssemos,
os donos (ou os que falavam em seu nome) prometiam limpar muito bem os
animais e pôr-lhes em cima mantas limpas. Em Aveiro juntaram-se dezenas
de bicicletas.
Enfeitados os burros como pudemos, percorremos algumas
ruas da cidade, após o que nos dirigimos a Ílhavo onde nos esperavam as
nossas colegas com flores e muito povo.
De novo a caminho de Aveiro. Na Avenida, junto à
Capitania,
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dispostos em fila, uns nas montadas, outros nas bicicletas, tomámos
parte na recepção a um numeroso grupo de teatro de revista, de Viana do
Castelo, que vinha dar um espectáculo no Teatro Aveirense.
Era já tarde quando libertámos os burros e os seus donos
das tarefas. "Cumprimos" apenas...
À noite, junto ao Teatro, éramos multidão. Tínhamos
conquistado o "direito" a borlas. – "Quantas?" Perguntou-me o Sr.
Osório, gerente do Teatro, ao avistar-me. – "Para quem tiver capa" –
gritei-lhe. E foi "um vê se te avias" de troca de capas, através das
portas na presença do sorriso benévolo dos porteiros. Grande
espectáculo, teatro ao rubro!
"Ela" atravessava o Largo do Liceu. Levava nos ombros um
pequeno xaile preto. Pareceu-me que vestia toda de preto. Não sei bem.
Sei que levava um xaile preto. Eu descia a Rua Coimbra, pelo passeio do
lado esquerdo. Ela ia já longe. O Largo ficou vazio. Isto é, deixei de a
ver. Só isso. Não fiquei ansioso, sequer perturbado. Lembro-me que
sorri, comigo só. Depois esqueci-me de sorrir...
Eu tinha completado o curso complementar de letras do
Liceu em Junho de 1935. A entrada na Universidade era um sonho mal
sonhado, dadas as condições do momento que vivia. Não iria desistir.
Sentia que era um adiamento.
O professor Dr. Alexandre Barbas, cuja amizade semelhava
camaradagem, bem nos incitava a mim e ao Vaz Velho, a irmos para Lisboa.
Lá, venceríamos, dizia. Mas o Vaz Velho estava preso à sua Manuela e à
família Lemos, por laços de amor e de amizade. Eu tinha forças de
"ficar" não de "partir". O espírito aventureiro não é obrigatório ser
próprio do português.
Decidi, então, ficar. Iria candidatar-me a funções
públicas. Entretanto, fazia o que mais gostava: ajudar a estudar,
estudando e ensinando.
Procurava dar a conhecer o interesse prático do estudo
que fazíamos, para que a atenção ficasse mais desperta, o empenhamento
fosse maior. Alertava para o facto de cada ciência, cada arte, cada
profissão ter a sua linguagem de que fazem parte expressões e
conceitos-base, que têm de ser conhecidos, sob pena desse linguajar não
ser entendido pelos que o ouvem. Quando os médicos falam uns com os
outros, os juristas, os mecânicos, os marítimos, ficamos a ver navios
(Sabem o que é "paiol grande"? Não sabem, mas se lhes disser que é o
mar, já entendem.)
E a matemática (falo sempre nela, porque muito me ajudou)
tem os seus códigos. Só quem os conhecer poderá descodificar a sua
linguagem e, portanto, compreendê-la. Às vezes, para levar a água ao meu
moinho, invocava os logaritmos e as suas relações para concluir que
sozinhos não somos nada, que é errado pensarmos e dizermos que contamos
só connosco. Não esquecia a fundamental ligação do Português a ... a
tudo.
Pois é... Como disse, "fiquei". E aceitei tomar parte nos
ensaios e últimos espectáculos de uma revista regional, organizada pelo
Clube dos Galitos, de Aveiro, que se chamava "Ao cantar do Galo".
E "ela" estava lá. Ávia, se chama. Casámos em Junho de
1940. Temos dois filhos. José Manuel e Carlos Alberto são os seus nomes.
Deles, netos e destes
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bisnetos.
Após curta passagem pela C.G.D., como aspirante
estagiário, esse foi o 1.º cargo público que exerci (posse em 1 de Julho
de 1938), fui nomeado aspirante estagiário da D.G.C. Impostos e colocado
em Lamego, tendo tomado posse em 12 de Agosto de 1939.
Tempos sombrios ensombravam o nosso país. "Os sinos
dobravam" por Espanha (Hemingway). É dessa época que as divisões no seio
do povo se acentuaram. À aspiração de paz e de liberdade que era sentida
pela maior parte do nosso povo, respondia o Poder ditatorial com a
criação e desenvolvimento de forças repressivas que instalaram a dúvida,
a desconfiança e o medo na nossa sociedade. E a década de quarenta
chega. Com ela, uma das maiores tragédias sofridas pela humanidade: a
guerra de 1939/45. Portugal não era beligerante... Mas fazia parte do
mundo e todo o mundo foi atingido por mortes, sofrimentos e miséria.
Ílhavo e outras terras a Ílhavo ligadas pela actividade
pacífica da pesca e da navegação viveram os dramas da guerra marítima.
Torpedos, minas trouxeram o luto a muitos lares ilhavenses. A tal ponto
que não havia ninguém na nossa terra que não chorasse a perda de um
familiar ou de um amigo na guerra dos mares.
Em Abril de 1942 fui transferido para Ílhavo, onde
permaneci até ser promovido, mediante concurso a 3.º oficial e colocado
em Portalegre em Dezembro de 1948.
Decorria a campanha para a eleição do Presidente da
República. O candidato da Oposição era o general Norton de Matos. Na
véspera da ida às urnas, a que a oposição se recusou, dada a ausência de
condições, a polícia política efectuou centenas de prisões em todo o
país.
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Os períodos eleitorais, só aparentemente, eram períodos
de liberdade. A vigilância aumentava e os vigilantes-rafeiros presos
apenas à trela das suas contradições.
Os democratas sabiam isso. A sua dignidade, porém,
obrigava-os a usar a liberdade consentida para a transformar em
liberdade conquistada.
Só em Portalegre foram presos 10 trabalhadores que faziam
parte da comissão eleitoral. Julgados, foram condenados a ano de prisão
que se alongaram com as famigeradas "medidas de segurança".
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105 /
Em Janeiro de 1951, saí de Portalegre, transferido para a
Direcção de Finanças de Aveiro.
Aqui, em 8 de Maio de 1952, à saída do meu trabalho, fui
preso pela 1.ª vez (outras se seguiriam em 55 e 62). Após 78 dias de
isolamento nos vários "curros" ou "gavetas" do 3.º andar do Aljube,
seguiu-se idêntico período de transferências sucessivas de Caxias-
Aljube, Aljube-Caxias. Era a instabilidade na própria prisão. Os
esquemas de trabalho (ensino a camponeses) e de estudo eram destruídos.
Em 3 de Outubro do mesmo ano, sou restituído à liberdade,
sem processo judicial, pelo que regressei ao serviço na direcção de
finanças de Aveiro.
A consciência dos graves problemas que se viviam no nosso
país exigia tomadas de posição que pudessem, sem violência, travar o
agravamento desses problemas. Não se devia, não se podia ignorá-los. O
Tarrafal, que sobrevivera aos fascismos derrotados. No Alentejo,
agrários protegidos, camponeses explorados. Em todo o pais "alianças"
estranhas...
Em Aveiro, desde longa data que se tomavam posições pela
liberdade, a favor dos oprimidos, contra os opressores. Lembrei aqui os
que se "ergueram" em 16 de Maio de 1828. Lembro hoje, 16 de Maio de
2001, um grande cidadão do "nosso tempo", Mário Sacramento.
O seu nome, ele próprio, esteve ligado a todos os
movimentos de libertação do nosso país.
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Foi também um brilhante aluno do nosso Liceu, fundador e
1.º director de "A Voz Académica" e presidente da academia de 1937/38.
Com Mário Sacramento e Manuel Andrade, fui um dos
responsáveis pela folha volante "16 de Maio", nos anos 50.
Como apoiante do M.N.D., movimento democrático, sediado
no Porto e dirigido por Ruy Luís Gomes, Virgínia Moura e, Lobão Vital,
Albertino de Macedo e José Morgado, fui preso, 2.ª vez, em 5 de Março de
1955 e libertado, sob fiança, em 13 de Setembro do mesmo ano.
Processado, fui julgado no Tribunal Plenário do Porto. Ainda sob fiança,
fui suspenso das minhas funções na Direcção de Finanças, em 30 de
Dezembro de 1955. Condenado naquele Plenário a 1 ano de prisão, perda
das funções públicas que exercia, o Supremo, para o qual recorri, baixou
a prisão para 6 meses, mas manteve o principal que foi a perda das
funções públicas. Apesar do Tribunal reconhecer "não se verificar
nenhuma agravante, tendo-se provado, pelo contrário, a seu favor as
seguintes atenuantes: "o seu bom comportamento anterior, ser homem
honesto e bom chefe de família, ter sido durante 16 anos funcionário
zeloso e cumpridor, ter-se mostrado em vários passos da sua vida dotado
de elevado espírito de solidariedade humana, ser estimado por todos que
privam com ele, merecendo a maior simpatia e consideração", e ainda a
circunstância de ser "funcionário público de situação económica
modesta".
Companheiros de prisão e de julgamento, os antigos alunos
do nosso Liceu Mário Sacramento e Manuel Andrade. A minha sentença
"apenas" excedeu a do Mário na perda de emprego. Mas o Mário seria
"compensado" com medidas posteriores. Não faltava imaginação aos que
pensavam ser donos do nosso país. O Andrade iria cerca de 5 anos para o
Forte de Peniche, pois consideraram-no merecedor de "medidas de
segurança".
Este julgamento realizou-se ao arrepio do pedido de uma
ampla amnistia para os presos políticos (cuja existência era negada pelo
ditador), pedido assinado por milhares de pessoas entre as quais o
Reitor do nosso Liceu, José Tavares, o Director de Finanças do nosso
distrito, José IIharco e o Bispo de Aveiro, Evangelista de Lima Vidal.
Era o ano de 1958. Todo o país tinha vibrado, vivido,
momentos de grande unidade e esperança na libertação, com o aparecimento
do general Humberto Delgado.
O povo o apoiou. O ódio dos fascistas, do topo à base,
não o esqueceu. E matava-o.
A partir do meu afastamento da função pública, como me
sentia vocacionado para o ensino, optei pela actividade de explicador, a
única que, nesse campo, estava ao meu alcance, pois só possuía os cursos
do ensino secundário. Mais tarde fui admitido como professor num
externato de Aveiro (Externato João Afonso de Aveiro).
Entretanto obtivera um primeiro prémio no curso superior
de língua francesa, no Instituto de Francês do Porto.
No ano seguinte, 1962/3, com 15 Aveirenses, fui de novo e
pela 3.ª vez preso em Caxias e Aljube.
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Explicador e professor, que era, tinha de ser estudante:
Por outro lado, se queria ser professor a nível oficial, num futuro
ainda incerto, tinha de prosseguir os estudos. Era além do mais,
consequência natural da minha actividade.
Assim, em 1972, quando ainda era professor no Externato,
fui admitido, mediante exame, na Faculdade de Letras da Universidade de
Coimbra.
Em 15 de Julho de 1978 concluí a Licenciatura em
Filologia Românica daquela Faculdade, tendo-me sido atribuída a
informação final de bom, com 14 valores.
Estava no 2.º ano e colocado como professor provisório na
Escola Preparatória Manuel Trindade Salgueiro, em Ílhavo, quando surgiu
o 25 de Abril. Vivi a surpresa e a alegria desse dia em Coimbra, com o
entusiasmo que devem calcular.
No entanto, não pude satisfazer o meu desejo de, a partir
daí, me dedicar ao ensino. Pensava que seria mais útil numa escola do
que numa repartição. O meu afastamento dos serviços tinha sido muito
longa... Mas um decreto, publicado logo no dia seguinte à revolução de
Abril, prescrevendo a reintegração dos funcionários públicos demitidos
por motivos políticos, previa apenas o seu regresso às antigas funções.
Fui reintegrado como subdirector de finanças. A justeza da decisão foi
muito valorizada pela rapidez com que foi tomada. Sinal de libertação!
Agora, antes de terminar o meu testemunho sobre a marca
profunda que o "meu Liceu" imprimiu na minha vida, lembro uma conversa
tida com José Barreto, subdirector do jornal "O Ilhavense" que me
perguntava o que Abril trouxe de novo ao povo português:
Só quem não conhece o passado pode ignorar o quanto Abril
nos trouxe. Na marcha da humanidade sempre alguém sai prejudicado. Os
regressados das colónias foram-no e muito: Mas para a larga maioria do
povo português, o 25 de Abril foi a libertação, sem deixar de ser como
lhe competia, o braço da solidariedade: Para sintetizar digo-lhe que,
para os democratas foi a libertação do terror fascista e para todos,
para toda a população do nosso país foi o fim da guerra. Não mais
mobilizados, não mais telegramas, não mais heróis. A guerra, "mal de
todos os males" acabara. Começava a liberdade, fonte da vida.■
Ílhavo, 16 de Maio de 2001.
José Maria Oliveira Gouveia
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