Encontro com o passado
■ Clara Sacramento
Foram muito felizes
O professor falava, a bata branca um pouco curta por cima
do fato cinzento. Os professores e os fatos cinzentos... só que este
tinha colorido na alma e, por baixo das lentes grossas dos óculos, um
olhar inesperadamente terno e sincero. Também a fixação dos
inteligentes. Quantos anos teria? Não sabíamos, mas era novo, apesar dos
trinta, o que seria, para nós, em situação normal, sinal evidente de um
ser caduco e a abater. Este era novo. Era O Professor. Imediatamente
eleito, aceite, introduzido nas tertúlias, convidado para as festas de
anos. Havia sempre, mas sempre, um pequeno grupo que o levava a casa, ao
fim da tarde. Aconteceram paixões secretas que ele recusava
sistematicamente. Não era feliz, contudo. Uma esposa que vinha ao fim de
semana, que era estranha, que dormia com um gorro na cabeça! Sempre
pareceu a Tê que isto do gorro era peta, como é que sabiam que a mulher
dormia assim enchapelada? De qualquer forma, todos achávamos que um
homem como ele não merecia dormir com alguém-de-gorro-na-cabeça. E esse
facto redobrava a nossa afeição, tentávamos tudo para compensar de tão
cruel destino.
O nosso professor não nos poupava a esforços, contudo.
Nas aulas fazia-nos trabalhar muito, e havia um acordo
secreto, mas não explícito, de que ninguém quebraria essa regra. Tê
quebrava-a, mas só exteriormente.
Enquanto ele falava do Platão e de Sócrates, de Camus, de
Sartre. muito de Sartre, olhava os seus gestos suaves, seguia o seu
olhar adivinhador que percorria um a um os cadernos, as cabeças, as
carteiras, ou então vagamente a janela, a cabeça levantada, quando mais
atento. Elegante, e esse cheiro a lavanda fresca quando passava. O
perfume ficava até à aula seguinte. Como é que os perfumes podem ser tão
diferentes, conforme as pessoas que os usam? O Cenoura. O Cenoura, por
exemplo, quando entrava na explicação, era um desgosto. Vinha todo
cheiroso, despejava os frascos de after-shave do pai pela cabeça
abaixo. Toda a gente ficava enjoada. E depois, usava aqueles lenços de
seda ao pescoço, por dentro do colarinho aberto – de tão charmoso que se
punha, acabava por ser rejeitado. Pobre Cenoura, não se pode ser
diferente.
Julieta Bota. Via-a passar já com filhos. Dezassete anos,
dois filhos. Um corpo ainda bonito, mas já amolecido pelos trabalhos. O
olhar, sempre aquele, fixo. Que o olhar dos ciganos é muito diferente,
um misto de raiva e ternura, é selvagem e antigo. Vem do fim dos tempos,
traz a memória dos povos por onde deambularam. Nunca submisso.
Tê andara com ela na escola. Ainda por cima, «os Bota»
moravam na rua de trás. Tê, às vezes, vinha com Julieta, entrava no
quintal pelo portão do outro lado e brincavam, na sala do piano. Não se
pode dizer que fosse a companhia mais edificante, mas Tê gostava dela,
ou tinha curiosidade, sei l*... Julieta falava
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de coisas tão estranhas, dos casamentos, das lutas, dos enterros, das
festas, das músicas, dos parentes, das histórias. Tê ouvia-a, cheia de
cautelosa atenção. Cautelosa, porque sabia, mais cedo ou mais tarde não
resistiria, iria a casa de Julieta Bota conhecer esse fantástico e
assustador mundo. Cautelosa, porque segredo, a mãe nunca deixaria, o pai
talvez.
Numa dessas tardes, Tê resolveu dar-lhe uma prenda, um
servicinho-miniatura de louça da Vista Alegre, pintado à mão, uma
relíquia da casa, coisa finíssima e ancestral. Julieta, incrédula e
muda, levou-o contentíssima e sorrateira. Ninguém deu pela falta e os
dias foram passando, correndo, como correm os dias. Anoitecia e Julieta
apareceu no portão, chamando Tê.
– É por causa do meu pai, ele quer falar contigo e já.
Pede que lá vás. Tem que ser já!
Tê assustada. Ir a casa do cigano? Ao anoitecer?
Julieta que a puxava e Tê a ver tudo a andar à roda, de
repente cinzento e verde. Duas cores que Tê visualiza quando sobe a
adrenalina. Devia ser amarelo, mas não é, é cinzento e verde.
A casa baixa, o cheiro não é propriamente o perfume do
Cenoura, muito menos o do professor. A porta e, a seguir, um cortinado
às flores e depois umas pernas deitadas na cama pobre. Um corpo e, no
fim do corpo uma cabeça, uma cara, um bigode. Na mão, um cigarro. À
volta, cinzento e verde.
Tê estava em casa do cigano.
E o cigano perguntou
– É verdade que deu essas brincadeiras de louça à
Julieta?
– É, fui eu que dei.
– Era só para saber. Não quero que a Julieta roube nada.
De certeza?
– É, é verdade, fui eu.
(cinzento e verde)
– Então está bem. Pode ir embora.
Não agradeceu. Só disse «pode ir embora». Tê sorriu,
aliviada. Já não teve medo e achou o homem simpático, embora com o tal
olhar. Moralmente superior, limpo, uma felina dignidade.
O mistério desaparecera. Acabara o medo dos ciganos, por
isso não voltou a brincar com a Julieta Bota. Hoje diz-lhe adeus e ela
trata-a por «menina». São da mesma idade, mas há um fosso, ou uma
cumplicidade.
Julieta Bota passa, com os filhos. Tê anda no liceu.
Há duas coisas que Tê não esquecerá: os sapatos do cigano
em cima da cama, e o olhar selvagem. Do olhar, já se sabe que é selvagem
e já se disse tudo, dos sapatos ainda não. Os sapatos dos ciganos são
diferentes dos outros. Normalmente são castanhos e bicudos. Vulgarmente
têm aqueles furinhos; até de inverno. Como os ciganos, têm espelhadas na
pele as longas caminhadas. Não são, simplesmente, uns sapatos velhos.
São uns sapatos – vividos e nas rugas do seu couro podemos ouvir
segredos, negócios estranhos, grandes amores. Se forem pretos, têm o
salto um pouco alto e remetem para danças e brigas, salero, espanholices
e coisas assim.
Também os sapatos das ciganas... Muitas luas passaram.
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O liceu lá está, imóvel. Julieta Bota continua a
deambular com a filharada, toda em fila, já tem netos.
Nós andamos por aí.
Do professor, nada sabemos. Desapareceu, quando foi
expulso, por ser diferente e honesto.
O Cenoura guia enormes automóveis e há quem o acuse de
golpadas e negócios escuros. Sempre de lenço-ao-pescoço.
Uns teimam em não se acomodar, buscam sempre o
impossível. Estão, por isso, envelhecidos, embora bronzeados, embora «in»,
estão cansados. Outros foram muito felizes.
Todos tiveram
meninos.
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