António Aurélio Fernandes
1.
De uma gestão não democrática para uma
tentativa de gestão democrática
O Estatuto do Ensino Liceal, em vigor no regime do
chamado "Estado Novo", estabelecia que os liceus femininos seriam
dirigidos por mulheres; os liceus mistos seriam necessariamente
dirigidos por homens, "matéria prima" que sempre foi escassa. No ano de
1972 abriu o Liceu de Ovar, a cujo quadro passei a pertencer. O reduzido
quadro apenas contava com dois homens: um estava interessado no cargo, o
outro "tomara que o deixassem em paz". Dizia-se então por graça, mas com
algum fundo de verdade, que o ministério (o Ministério da Educação
Nacional como era designado) dispunha de duas listas a consultar para a
escolha de reitores: a dos professores interessados e a dos professores
não interessados; as escolhas seriam feitas a partir da lista dos não
interessados... Havia ainda outra condição a preencher: o aval da PIDE!
O Ministro Veiga Simão tinha, porém, decidido ultrapassar tais pareceres
e nomeava quem muito bem entendia (a sua intenção era nitidamente
reformar o regime a partir de dentro, só que já era tarde...).
E assim, em Setembro de 1972, fui nomeado reitor do Liceu
de Ovar. Embora vivêssemos já uma época de grande desanuviamento (se
tomarmos como referência os anos negros da minha infância, no apogeu do
nazismo), uma coisa não era possível: "safarmo-nos" tão airosamente,
como hoje, com um "está bem, mas não estou interessado"; a alternativa à
nomeação era a demissão... A acentuada decadência do regime marcelista
tolerava já alguma abertura, mas nada que se parecesse com a recusa em
aceitar a nomeação para um cargo. Tomei posse, claro... Contava ter umas
quantas "chatices", mas estava longe de imaginar as situações quentes
que me esperavam nos próximos três anos!
Nos anos de 1972 e 1973 viveu-se uma tremenda explosão
escolar: bastava que "as forças vivas" de uma qualquer localidade
começassem um tímido pedido "nós também gostaríamos de..." e já o
ministro estava a decidir "crie-se um novo liceu!". A confusão foi
muita, as condições de trabalho para os responsáveis pelas novas escolas
eram deploráveis, o recrutamento de professores... um drama. Pode não se
concordar que a explosão escolar, que era inevitável, tivesse decorrido
tão
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descontroladamente, mas a verdade é que urgia recuperar de dezenas e
dezenas de anos de imobilismo em matéria de educação. A escolaridade da
população portuguesa estava em situação de calamidade. Na segunda metade
dos anos 60 fui responsável pelo departamento de pessoal, e em
particular pelo recrutamento e selecção, de uma grande empresa de
"química pesada" em Estarreja: para preencher postos de trabalho de
grande responsabilidade e perigosidade era um caso sério encontrar
alguém que tivesse, ao menos, a 4.ª classe; e se aparecia um candidato
com o ciclo (actual 6.º ano), era considerado quase um "doutor"!
O recém criado Liceu de Ovar tinha funcionado no ano
lectivo anterior como secção do Liceu de Aveiro, por conseguinte, sem
qualquer estrutura administrativa. O que encontrei foi, portanto, uma
secretaria com armários vazios e um funcionário muito menos preparado
que eu. Tive a tocante ingenuidade de pedir ao Ministério que me fosse
enviada uma compilação da legislação aplicável à gestão de um liceu;
claro que nem resposta tive e devo ter feito rir a bom rir os velhos
"mangas de alpaca" das direcções-gerais. Valeu-me o então chefe de
secretaria do Liceu de Aveiro para o cálculo de vencimentos (o mais
urgente e importante!); quanto à contabilidade, segui o que me pareceu
ser do mais básico bom senso: se tinha dinheiro a mais numa verba e a
menos noutra, eu próprio me encarregava de fazer a transferência –
evitava a praga das facturas falsas e conseguia uma melhor gestão de
recursos (e dispensava a autorização do ministro das finanças...). Claro
que, com este facilitismo, arranjei uma tremenda embrulhada; descobri,
demasiado tarde, que o sistema salazarista de contabilidade nada devia
ao bom senso ou à boa gestão dos recursos; tinha como base a
desconfiança sistemática em relação aos agentes.
As coisas foram correndo sem problemas de maior,
praticamente sem conflitos; é evidente que não havia uma gestão
democrática, nem eu sabia o que isso fosse, por muito que ansiasse a
vinda da democracia: eu decidia e o "povo" obedecia; mas a minha natural
aversão ao autoritarismo levava-me a ir tentando ouvir opiniões e pô-Ias
em prática, sempre que não colidissem com o interesse dos alunos.
Dois anos depois, dá-se o 25 de Abril. Poucos dias
decorridos, alguém decidiu tomar uma medida muito discutível: afastar
todos os reitores de liceus e directores
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de escolas técnicas como pessoas coniventes com o regime deposto;
considero que foi uma medida injusta e populista, para satisfazer os
estudantes; muitos dos reitores e directores, especialmente os mais
jovens, não eram apoiantes do regime, mais, eram publicamente
"desafectos ao regime".
De acordo com as orientações recebidas, promovi uma
reunião para eleger uma comissão de gestão à qual deveria transmitir os
meus poderes: o resultado foi de 100% dos votos em mim. Especial mérito
meu? É evidente que não: a verdade é que ninguém estava para chatices;
dirigir uma escola em regime ditatorial ainda vá... mas em regime de
tremenda confusão, como então se estabeleceu, não tem nada de atractivo.
No fundo continua a ser assim, desde que não haja obrigatoriedade de
aceitação de cargos: uma minoria, a bem ou a mal, vai aguentando e a
maioria vai criticando... Durante longos meses, quase um ano, vivi uma
situação muito difícil, com o poder exclusivamente concentrado em mim;
de facto, nenhum dos meus colegas se dispôs a constituir comigo a
comissão de gestão, de acordo com as normas do ministério. Gerou-se
assim uma situação um tanto caricata: enquanto reitor, tinha de
partilhar com o conselho escolar algumas das minhas competências; após a
revolução democrática, o poder era eu! Poder?!... O meu quotidiano, para
além da burocracia e das treze horas de aulas que, apesar de
reitor/gestor, tinha de dar, limitava-se a "deixar correr" e tentar
evitar conflitos de maior. E não eram poucos os conflitos, os pequenos e
desgastantes conflitos, sobretudo pela parte do pessoal auxiliar. No
entanto o pior conflito resultou de uma calúnia do delegado do
ministério público (parece estranho mas é verdade!) em relação à minha
actuação (teria querido chamar a PIDE, dias antes do 25 de Abril); os
ultras da extrema esquerda tentaram provocar o julgamento popular do
reitor; entretanto o autor da calúnia deu o dito por não dito ... e
voltou-se à "normalidade".
Assim, passei quase um ano, um ano muito, muito penoso.
Entretanto houve o concurso anual para professores efectivos e consegui
finalmente colocação no Liceu Nacional de Aveiro, graças a um enorme
alargamento de quadros: o grupo de Matemática passou de dois lugares (é
verdade: dois lugares!) para dezoito, se bem me recordo. Perante o facto
da minha próxima saída do Liceu de Ovar, os outros professores viram-se,
finalmente, confrontados com a necessidade de
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eleger uma comissão de gestão.
2. Eleição da primeira comissão de gestão no Liceu de
Aveiro
Em Outubro de 1975 mudei para o Liceu de Aveiro, agora
Escola Secundária de José Estêvão.
O ambiente era de grande instabilidade, de tensão, de
profundo abatimento: alguns elementos da primeira comissão de gestão,
pelo seu carácter autoritário e dominador, tinham criado uma situação de
medo, de conflitualidade e de descrença na democracia que ia ser difícil
de sanar: a "caça às bruxas", a divisão entre os "bons" (os que estavam
a seu lado) e os "maus" (todos os outros...), o "auto-de-fé" de símbolos
do anterior regime, deixaram marcas difíceis de sanar.
Quando iniciei a minha actividade no Liceu de Aveiro, o
ambiente estava um tanto melhor: a anterior gestão tinha sido expulsa
por acção dos próprios alunos e o poder estava entregue a uma comissão
perfeitamente razoável, mas a título transitório. Havia necessidade de
promover eleições. Decidiu-se que seria feita uma votação nominal; os
dez mais votados comprometer-se-iam a formar cinco listas, agrupando-se
como entendessem. Ganhou a lista assim constituída:
José Amadil Lapa (actualmente na Escola Sec. de José
Falcão, Coimbra), António Aurélio Fernandes, Manuel Caldeira de Sousa,
Maria Dolores (actualmente numa escola secundária da Guarda) e Maria de
Lurdes (actualmente numa escola secundária do Porto).
Foi para mim motivo de grande satisfação ter sido
escolhido: após ter vivido 44 anos em ditadura e ter sido forçado a "reitorar"
um liceu, constituía para mim, aliás verifiquei que também para os meus
colegas, um apaixonante desafio a possibilidade de dirigir uma escola em
democracia. Foi a única vez na minha vida que entrei num processo de
direcção de escolas com alegria! Tínhamos a ilusão de que em democracia
tudo correria do melhor modo, todos se entenderiam e cumpririam as suas
funções, nada de conflitos.
3. Alguns aspectos do primeiro ano de gestão
É curioso explicar por que razão o prof. José Lapa,
acabado de chegar de Coimbra, /
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praticamente desconhecido, obteve um tão elevado número de votos.
Aconteceu que algum tempo antes da votação, o meu amigo Lapa ia
proclamando, em jeito de campanha eleitoral, que a primeira medida a
tomar, seria restituir a sala dos professores aos professores. Estranho,
não é? De facto, uma das decisões mais acintosas e afrontosas da
primeira comissão de gestão tinha sido a expulsão dos professores da
sala que lhes estava destinada, que passou a ser a sala de Estudos
Sociais. Os professores tiveram de se distribuir por três acanhados
gabinetes, um em cada andar (a técnica de dividir para reinar...); a
reconquista da sala seria assim uma redignificação dos professores.
Reunida a primeira R.G.P.
[Reunião Geral de Professores]
(recordam-se destas saborosas siglas?...), convocada pela nova Comissão
de Gestão, foi-se a votos: querem os professores que lhes seja
restituída a sua sala? Para além dos votos da nova comissão de gestão,
houve três votos (TRÊS) a favor e noventa e tal por cento de...
abstenções! Aliás esta tendência maciça para a abstenção caracterizou
durante bastante tempo os resultados das votações, reflexo do medo em
que ainda se vivia ("não nos comprometam, não vá isto virar outra
vez..."). Foi o primeiro grande golpe no nosso entusiasmo. Logo a
seguir, um elemento da primeira gestão decidiu queixar-se de nós à
direcção-geral, como retaliação por ter perdido a luta da sala, alegando
que "não lhe permitíamos realizar um trabalho honesto". Foi o ponto de
partida para um longo período de dois anos de um desgastante, por vezes
até sujo, processo disciplinar em que a queixosa passou a ré e acabou
por ser penalizada.
Do ponto de vista da gestão financeira, não houve
qualquer problema, para além do facto habitual de o dinheiro ser sempre
escasso... Se bem me recordo, a gestão salazarista manteve-se
perfeitamente incólume: ninguém se atreveu a tocar-lhe...
Quanto à legislação de carácter pedagógico e
administrativo, claro que houve necessidade de profundas alterações.
Teria sido possível fazê-lo com menor dose de confusão?! Talvez não, mas
lá que foi complicado, foi... As decisões de carácter pedagógico e
administrativo sucediam-se, nem sempre coerentes, nem sempre as mais
sensatas.
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Havia entretanto uma larga margem de decisão dentro da
escola. Aliás talvez não fosse tão "larga" como isso, mas tínhamos a
ilusão de que muito poderíamos decidir. Para tal sucediam-se,
infindavelmente, as RGA e as RGP: discutia-se, discutia-se, uma vez por
outra quase se chegava a algum consenso, mas havia sempre algum
"desmancha-prazeres" de serviço que se encarregava de baralhar tudo. Não
me recordo de que alguma vez se tivesse havido uma reunião com decisões
positivas; admito a hipótese de um dia me dedicar à leitura das actas
para tentar encontrar, ao menos, uma decisão que tenha sido aprovada e
posta em prática. Claro que uma coisa importante se aproveitou: a
aprendizagem da democracia. Todos estão ainda bem recordados que o ano
de 1975 foi um ano particularmente quente, dramaticamente quente, de
luta política e, como é evidente, essa luta teria de se reflectir no
ambiente das escolas, algumas vezes com certa dureza, em geral com muito
"folclore"...
Problemas com alunos? Não me recordo de nada de especial.
Tinha havido de facto, em 1974, com o objectivo de substituir a primeira
Gestão. Mas depois da nossa tomada de posse, não houve nada a assinalar.
O principal problema que pessoalmente vivi, resultou de ter sido o
membro da Comissão de Gestão encarregado de coordenar as actividades do
Serviço Cívico; tentei que os alunos se dedicassem a algumas das várias
tarefas que lhes tinham sido propostas, mas não se viu nada,
absolutamente nada. No fundo, até se compreende: "já que não me deixaram
entrar para a universidade, então vou aproveitar para gozar a vida..."
Problemas com professores? Aí sim, embora casos pontuais.
Pessoas que tinham sido sempre respeitadoras do poder, tornaram-se
exigentes, rebeldes, desrespeitadoras das determinações superiores,
mesmo que correctas. Por outro lado, a acentuada clivagem política
criava tensões que perturbavam o bom relacionamento: de um lado o grupo
pró-PC, do outro todo o resto do corpo docente.
Estabeleceram-se as primeiras comissões de pais que, se
pouco contribuíram para a melhor gestão da escola, pelo menos não
perturbaram.
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4. Segunda Comissão de Gestão.
O mandato da primeira Comissão de Gestão terminou no
final do ano lectivo 75/76. Houve necessidade de proceder a novas
eleições, agora com orientações vindas do ministério, com a intenção de
criar uma uniformização. Pela primeira vez se formou uma lista, sem
votação prévia: mantiveram-se os três primeiros elementos atrás citados;
as duas senhoras, por já não estarem na escola, foram substituídas pela
prof.ª M.ª Otília Osório e pelo prof. Nelson Mota.
Nos dois anos que se seguiram começou a desenvolver-se
uma estabilidade ainda muito precária, mas que ia criando alguma
normalidade. A democracia estava a começar a sua consolidação.
Tive ainda oportunidade de participar, durante dois anos, numa outra
comissão directiva, aliás já designada por conselho directivo. Era
presidente o prof. Arsélio Martins. Já que ele está presente, deixo-lhe
o encargo de falar sobre esse período.
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