Evocando...
Chamava-se nesse tempo "o Liceu". A escola primária
ficara para trás de uns dez anos tímidos e deslumbrados. Numa cidade
luminosa, numa praça aberta, uma fachada imponente. Lá dentro, no
desejado espaço do saber, a esperança do novo, do diferente, a promessa
de outras coisas, de outras pessoas, da grande experiência. Em breve
tempo, o conhecimento dos lugares, o hábito dos gestos, o à-vontade das
atitudes.
No recreio, por sobre o banco de todas as conversas, de
todas as risadas, a glicínia vestia-se de lilás em cada Primavera e
perfumava tudo à sua volta. E ao longo dos corredores passavam os
Mestres e, entre todos, em passo ágil, o porte esguio, a fisionomia
grave do Senhor Reitor. Inconfundível, vendo tudo, compreendendo tudo,
solucionando qualquer desarmonia com os meios infalíveis da bondade, da
justiça, da imparcialidade. Sempre o educador, nunca o juiz frio e
distante.
Muitas gerações de crianças e adolescentes cruzaram o seu
percurso de pedagogo atento, com ele aprenderam a descobrir a beleza da
língua que falavam. Pela vida fora, provavelmente esqueceram uma ou
outra designação gramatical; mas de certeza lhes foi impossível perderem
o amor à língua-mãe, para sempre presente lhes ficou na memória a voz
que transmitiu, a alma que imprimiu tal amor no seu entendimento e no
coração.
A possibilidade de monotonia e automatismo na
aprendizagem do Latim transformava-se numa aventura viva: era a
descoberta do rigor e simultaneamente do encanto duma língua morta. E a
aula de declinações escritas no quadro negro podia mesmo ser entremeada
de momentos de ironia face a uma celta heterodoxia caligráfica («há duas
coisas célebres na tua terra: as galinhas e os teus tês»).
E para além da bonomia, o sentido de humanidade, de
carinhosa aproximação dos alunos. Uma ternura aliada ao permanente
cuidado de querer o melhor para o seu Liceu; o desejo de nele ver
desabrochar ao longo do tempo a curiosidade de uma criança em início de
vida escolar («daqui a sete anos, quando terminares o 7.º ano, virás
aqui à Reitoria para, tal como agora, receberes de novo um beijo de
parabéns.»)
Era assim, o Senhor Reitor, tal como me surge a sua
figura nestes farrapos soltos da recordação, tal como o verá para sempre
o olhar da minha saudade.
Era assim, o Doutor José Pereira Tavares, o "meu Reitor"
de sempre.
Maria Marques Chaves de Almeida
16.05.96
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