| 
         
          
        
        
        
         A 
        ópera «Iadelaide» 
          
        
        
        Na Faculdade de Letras da Universidade Clássica de 
        Lisboa, o Prof. Vitorino Nemésio, – que trisou como meu professor e 
        presidiu ao júri da minha licenciatura, – tratava as moças por 
        «senhorinhas»; o Mário de Albuquerque, das terras de Albergaria-a-Velha, 
        – ainda não se dirigiam, ridiculamente, os políticos, aos Portugueses e 
        Portuguesas», ou vice-versa, – tratava-as por «senhoras» e aos moços por 
        «cavalheiros»; o Pinto de Carvalho referenciava, indicava, chamava os 
        alunos pelo nome todo: 
        
        
        – Idalina da Conceição Pires de Lemos! 
        
        
        Foi o nome da Idalina o primeiro que ouvi o Professor 
        pronunciar e que de imediato fixei, repercutia na memória auditiva como 
        uma obsessão, veio a aparecer, metamorfoseado em Odete, – numa Odete que 
        poderia ser Cristina, Luísa, Patrícia ou Maria, – em poemário deste 
        antigo colega, à volta dos anos sessenta: 
        
        
        "Luísa!, Cristina!, Odete Conceição Pires de Lemos!, a 
        Primavera vem aí". 
        
        
        Antes, no Seminário de Beja, – frequentado, como se sabe, 
        por Hernâni Cidade e Aquilino Ribeiro, e de que fui expulso, por falta 
        de vocação, fixara os nomes do mantuano Públio Virgílio Marão e de Marco 
        Túlio Cícero. No Colégio da Murtosa, os de Joaquim Guilherme Gomes 
        Coelho e de João Baptista da Silva Leitão de Almeida Garrett. Logo 
        depois, no velho Liceu de Aveiro, – para todos nós, sempre, o de José 
        Estêvão, e de cuja proposta de restituição oficial de nome fui 
        porta-voz, em sessão plenária do VI Congresso do Ensino Liceal, no palco 
        do Teatro Aveirense, – foi a turma do 4.º Ano, – hoje, com mudanças, 
        andanças e trangalhadanças de muito engenho e poucos efeitos 
        substantivos, o 8.º, – a turma mais viva, irrequieta, imaginativa, 
        criativa, lembrada e solidária que tive, e ai os grandes heróis tinham 
        também nomes completos, a título de exemplo se citando de cor alguns, 
        esperando-se que sem incorrecções de monta: 
        
        
        – Álvaro Gomes de Bastos Araújo; 
        
        
        – Patrício Bismarck Bento Álvares Ferreira do Agro; 
        
        
        – Joaquim António Calheiros da Silveira; 
        
        
        – João Fernando Resende Vieira; 
        
        
        – António Manuel Pais de Sousa Pasmal; 
        
        
        – João Rebelo Pereira Bóia; 
        
        
        – Joaquim José Ferreira Lopes Campanhã. 
        
        
        E mais e mais, entre três dezenas, passando pelo 
        Gonzalez, – muito alto; pelo Araújo, – o 
        
        / 29 / 
        "Quiliquitites", (de Euclides); o Ramos, o mais velho dos irmãos, – o 
        "Sarratos»; o Lino; o Manuel Ferreira, de Ílhavo, e o Fernando da Costa 
        Ferreira, médico, casado com uma americana que gosta de Portugal à 
        brava; o Brito, das Aguadas, e o António Capão, antigo colaborador da 
        Labor, – como o José de Melo, – e interessado por codornizes e 
        chapins, por teares, por uma série de autores do século passado, do 
        Júlio Dinis ao Cesário Verde, por ele divulgados, em edições 
        para-escolares acessíveis, na Estante Editora, de Aveiro; o Alberto 
        Porfírio, hoje general; o João Bela, etc., etc., tudo o que cabia na 
        "Sala de Geografia", no primeiro andar, lá ao fundo, a Norte, – naquele 
        nobre edifício que hoje é do "Homem Cristo", ao pé da estátua do José 
        Estêvão, por antonomásia o Tribuno, fixe, de bronze, de pé, a apontar 
        aos de Ílhavo para Ílhavo, – lá onde, naquela sala, as presas de um 
        elefante, mapas, carteiras de dois lugares, a secretária sem estrado, o 
        quadro-preto, um globo terrestre, sabe-se lá quê!, recordado pelos 
        amigos, só por eles, no Comboio Azul. Foi mesmo com elementos 
        dessa turma e dessa Sala que se fez o primeiro jornal de parede que 
        conheci, – O Farol, – ulterior ao jornal da Academia, impresso, 
        do Mário Sacramento, (esse com o beneplácito e patrocínio do José 
        Pereira Tavares, o outro, o nosso, não à revelia mas sem autorização 
        explícita de professores ou do Reitor e cujo título viria a ser 
        usurpado, mais tarde, – nós já fora do Liceu, – não interessa por quem). 
        Entusiastas do Farol, o futuro Prof. de Medicina, Álvaro Gomes de 
        Bastos Araújo, já falecido, e este vosso colega e signatário da 
        croniqueta, conhecido então por «o Marquês», título que deixava a milhas 
        o de "Barão", do Tavarede, simples "Barão de Requeixo". 
        
        
        Ouve-se a voz do Pascoal, – engenheiro e professor do 
        Secundário e que uma vez arranjou maneira de me pôr a vice do Beira-Mar, 
        sendo ele presidente do velho e glorioso clube, – ouve-se a voz do 
        Pascoal, com a mania de vencer todos os jogos, já muito beiramarzinho: 
        
        
        – Primum milium pardalorum est... 
         
        
        
        Vêem-se o Gonzalez, a responder, muito compenetrado, ao 
        Dr. Assis Maia (Pai); o João Bela a entrar sempre atrasado na primeira 
        aula da manhã; o Resende Vieira, hoje oficial do Exército, meu 
        companheiro de carteira, sem vontade nenhuma de aulas, a xingar o 
        Campanhã, com abafados risos do Silveira, este sempre da "Oposição", até 
        pelo Marquês de Pombal só porque o Marquês expulsara os jesuítas; o João 
        Bóia, pachola, fazendo-as pela calada; o Bismarck, sem pança, futuro 
        notário. 
        
        
        Ora foi nesse 4.º Ano que a "Ladelaide" aconteceu. 
        
        
        – Não te esqueças... 
        
        
        – Hã? 
        
        
        – Não te esqueças de que estás a escrever para a Labor, 
        a relançada Labor. 
        
        
        Claro que não, – responderia eu, – na medida em que se 
        têm em vista, no número do relançamento, o fundador José Pereira 
        Tavares, apaixonado pelo Teatro Escolar, o próprio Teatro Escolar, e, 
        aliás, é sobre isso, – será?!, – que se escreve, ao abordar uma 
        "opereta" de rapazes, os tais do 4.º Ano e da opereta "Ladelaide", com 
        Reitor, Professores, o fim da macacada. Mas vamos a ver então. 
        
        
        Uma bela manhã, aí pelas oito e meia ou nove e meia, 
        começou a circular a grande novidade, murmurada ouvido a ouvido: o 
        Joaquim José Ferreira Lopes Campanhã estava apaixonado. 
        
        
        – Que tens, pá?  
        
        
        – Nada... 
        
        
        – Nada?!... 
        
        
        
        Insistiu-se, e soube-se, e daí a uma hora, mais ou menos pelas dez e 
        meia da manhã, bem podiam os profes explicar, demonstrar, questionar ou 
        perorar, que estava tudo noutra. Eu e o Álvaro, fomos ao gabinete do 
        Reitor, – a figura seca ou que, pelo menos, infundia respeito, do Dr. 
        José Pereira Tavares, – e expôs-se que precisávamos do Ginásio, lá para 
        as cinco horas, para uma representação cénica. 
        
        / 30 / 
        
        
        – E ele disse que não? 
        
        
        É o dizes. Chamou um contínuo, talvez o Patacão, o 
        Moreira, o Gamelas ou o Estimado, e deu as ordens: pelas cinco horas, o 
        Ginásio livre e com cadeiras, pronto. Que recomendaria a coisa aos 
        Professores. Recomendaria, – tal e qual, – sem nada inquirir, 
        talqualissimamente. Livres como os pardais. Como queríamos. À solta! 
        
        
        Foi a desorganização mais organizada possível, da nossa 
        parte, mas eu estava metido nisso com o Álvaro. A malta era toda da 
        corda e, quanto a desorganizações organizadas, já uma vez o bisneto de 
        Thomaz Ribeiro, – do poeta de D. Jaime e de Sons Que 
        Passam e um dos directores da Mala da Europa, – o 
        nosso colega prof. escritor Rodrigo Emílio, escreveu: "o José de Melo 
        [...] é o desencaminhador de almas mais bem orientado que há", e ele lá 
        deve saber os porquês, porque ele é que sabe, escreve livros, compra 
        livros, além de que conhece a peça que eu sou. O certo é que, pelas 
        cinco horas, estava tudo preparado, ou quase, no Ginásio, o próprio 
        palco, as gentes iam entrando: profs, colegas de vários anos, 
        funcionários, uma pessoa à pressa convidada. Ia começar a função. 
        
        
        Talvez poucos se recordem do "libreto" da Ladelaide, 
        tão parco, tão curto, que rezava assim: «Rapaz apaixonado sofre 
        por Ladelaide, como Quixote por Dulcineia, como jano por joana. Ela 
        chama-se Ladelaide. Quem será o rapaz apaixonado?» 
        
        
        Menos culto em termos de verdadeira cultura que reflexo 
        das leituras que corriam pelos liceus e de troca de impressões com 
        colegas de anos diferentes, o libreto, distribuído à porta do Ginásio, 
        era assim que rezava. O apaixonado Campanhã, resignado, – que remédio! – 
        acabou por aceitar e assistir, como se não fora com ele. Entravam, 
        entretanto, grupos de professores, – uns cromos, não dos de agora, que 
        de quando em vez põem gravata, mas daqueles professores antigos, 
        aprumados, direitos, cheios de regra e de método, de disciplina e de 
        postura, – professores que a pouco e pouco se iam sentando nas primeiras 
        filas da vasta sala multifuncional que servia para a Educação Física, 
        para ensaios do Orfeão, como sala de representação teatral da 
        estudantada. Depois, a malta, expectante e buliçosa. Até que o Reitor 
        fez a sua aparição e, momentos após, ruidosa aparição fizeram, junto do 
        palco, à laia de orquestra, tachos e panelas, pratos, garfos e facas e 
        colheres, pandeiretas e tambores, violinos e violas e guitarras, – até 
        perpassa por momentos a "Desfolhada" do Ary e da Simone, – em 
        ruidoso espalhafato. Versos cantados por vários, vestidos de muitas e 
        variadas maneiras, dos fatos berrantes ao lençol e ao turbante, muito e 
        muito ruído. Os profs sem tugirem nem mugirem. José Pereira Tavares, 
        hierático, digno, um ou outro sorriso discreto perante a palhaçada. 
        Assim, não só ali, mas pelos dias fora. José Pereira Tavares não 
        reprovou nada, nada, até pareceu aplaudir, sem exactamente, exactamente, 
        propriamente aplaudir. 
        
        
        
        Está feita a história da "Ladelaide". Não valerá a pena 
        traduzir em sentença fabular o que se pensa de quem, sem perguntar do 
        que se tratava, liberalmente permitiu uma histórica representação que 
        para a História fica. Petite histoire que seja. 
        ■ 
        
        
        José de Melo Cunha * 
        
        
         _____________________________________ 
        
        
        * Prof. do Q. N. D. da Escola 
        Secundária de José Estêvão. Antigo colaborador da Labor (3.ª Série), 
        para que escreveu "O Estruturalismo, a Gramática e a Lua» ; "Para 
        um Latim Funcional» e sobre "Fidelino de Figueiredo – 
        1889-1967», (artigo biográfico e evocativo do Professor e Historiador da 
        Literatura). Autor, entre outros trabalhos, de três fotobiobibliografias 
        de Miguel Torga, a última datada de 1995 (Estante Editora, 
        Aveiro); de Entendimento e Ensino da Poesia; de Academias e 
        Tertúlias Culturais nos Sécs. XVII e XVIII; da antologia 
        Pedagogia e Educação e de Encontros (ensaios sobre Vergílio 
        Ferreira, Tomaz de Figueiredo, Natália Correia, Urbano Tavares Rodrigues 
        e Tomaz Kim). 
   |