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De Águeda a Vila da Feira (1) por estrada

Já nos tempos da ocupação romana a mais importante via de comunicação do litoral da Lusitânia era a calçada militar que, saindo de Scalabis, tinha como principais pontos de escala, Conímbriga (Condeixa-a-Velha), Aeminium (Coimbra), Talabriga (lugar não identificado) e Cale (Vila Nova de Gaia – Porto), e daqui seguia para Bracara, onde se encontrava com a via militar proveniente de Astorga. Ao longo dessa estrada, cujo traço em grande parte está por determinar, havia, naturalmente, aqui e além, entre os aglomerados urbanos e militares essenciais, pequenos escalões fortificados (castros) e como demarcações das distâncias, os costumados marcos miliários. Quando se abriu a actual estrada nacional em 1856, junto da Mealhada, descobriu-se, a 630 metros a Sul da povoação, o troço dum desses marcos cilíndricos, de 2,04 metros de alto (recolhido no Museu de Machado de Castro) com os restos duma inscrição (pág. 465), na qual, todavia, o nome do imperador já não é legível, nem a data da colocação, nem a estação tomada como referência para a contagem de doze milhas (AE SAR DIVI | PRON AVG | TMAX TRIB | COS DESI | P.P. | XXII). Mais ao norte, em Oliveira e Azeméis achou-se outra coluna da mesma natureza com o letreiro: TlB (erius) CAESER DIVI AVG(usti) FlLlUS AUGUSTUS PONTlFEX MAXIM (us) TRIB (unicia) POTES (ate) XXV XlI, cuja colocação no tempo corresponderia, / 589 / segundo interpretação autorizada, a uma data situada entre 27 de Junho do ano 23 da era Cristã e igual dia do ano seguinte.

Um dos miradoiros defensivos da via luso-romana, ao sul do Águeda, era presumivelmente o castro de Anadia (pág. 463), dada a persistência do nome (modificado para Crasto) e a sobranceira do outeiro. Entre o Águeda e o Vouga, haveria o oppidum do Marnel, recentemente objecto de algumas escavações arqueológicas (1941) e no qual, segundo uma obra actual, estariam em via de ser identificados, finalmente, os escombros do último reduto de resistência dos lusitanos da vertente marítima, a tão falada Talábriga (2), submetida e demolida por Décimo Júnio Bruto. Ao Norte do Vouga (o antigo Vacca ou Vacua), a estrada romana talvez tivesse outras pequenas estações de vigilância militar: uma em Albergaria (castro de S. Gião), outra em Oliveira de Azeméis (castro de Lações) e outra, dotada duma forte guarnição militar, em Lancóbriga, que alguns autores julgam ser o lugar depois ocupado pelo castelo de Santa Maria, hoje Vila da Feira. Por essa calçada sólida, cortada a direito por montes e vales, deslocavam-se rapidamente, de vez em quando, fazendo chispar, ao sol, os metais dos capacetes e das lanças, as coortes vindas da Itália incumbidas de conter as recidivas lusitanas de rebelião. Se a reconstituição do traçado desta estrada antiga é extremamente difícil, a causa está, em boa parte, no enorme trabalho de colmatagem realizado pelos rios que ela atravessava. As pontes que lhe davam passagem foram completamente / 590 / soterradas pelas aluviões do vale do Mondego, do Águeda, do Marnel e do Vouga. Subsiste, apenas, dessas obras de engenharia imperial, a modesta Ponte da Pica, em S. Tiago de Riba de Ul. As pesquisas destinadas a serem mais produtivas são, por isso, as dos segmentos planálticos. Perto de Albergaria, na freguesia de Branca, verifica-se a existência de um troço de calçada ou estrada-velha que parece dever considerar-se vestígio da via militar. Bastante mais ao Norte, dentro do concelho de Vila Nova de Gaia, no decorrer de algumas rectificações da estrada actual, pôs-se a descoberto (1937) um outro troço de calçada, esse incontestavelmente da via romana. No decorrer dos tempos, entre nós, a velha estrada das legiões, ao Norte de Coimbra, tornou-se mais conhecida pela designação de estrada coimbrã ou estrada mourisca, no primeiro caso por ser muito utilizada pelos estudantes da Universidade, e no segundo por se supor, como é tendência popular, que era obra dos sarracenos.

A partir do final do século XVIII, serviço regular de malaposta (muito melhorado pelo secretário de Estado José de Seabra e Silva, ministro de D. José e D.ª Maria I) passou a fazer-se por uma estrada que em alguns pontos se afastou certamente da via arcaica e em outros pontos a decalcou. [As diligências, segundo o testemunho de viajantes de então, eram de notável pontualidade, fazendo-se as mudas de postilhões e cavalos em estações submetidas a regulamentos militarizados; havia estações comandadas por capitães, tenentes e alferes de cavalaria, consoante a sua importância.]

A estrada actual, com faixa de rodagem diminuta para o seu trânsito, mas betuminosa, é bastante pitoresca, ora correndo ao longo de airosos plainos arborizados de eucaliptos e pinheiros marítimos, ora transpondo em rápidas subidas e descidas valeiros rústicos com muitos casais, hortedos e campos de água abundante. Os horizontes, com as excepções da ladeira de Serém e do alto do Pinheiro de Bemposta, que são amplas surpresas para os olhos, apresentam-se limitados, mas sempre interessantes, em movimentadas mutações de arvoredo. Posto que a linha do litoral se vá aproximando, do Sul para Norte, de vinte para cinco quilómetros, o Atlântico somente é visível, até o Porto, duas ou três vezes, e de modo fugaz.
 

BIBLIOGRAFIA

Félix Alves Pereira, Situação conjectural de Talábriga, 1907;

Francisco Tavares Proença, Ensaio de inventário dos castros portugueses, 1908;

Vergílio Correia, O domínio romano (in História de Portugal. ed. de Barcelos, voI. I, p. 241 e seg.);

Rocha Madahil, Estação luso-romana do Cabeço do Vouga (in “Arquivo do Distrito de Aveiro”, n.ºs 27 e 28), 1941;

Joaquim Soares de Sousa Baptista; Vestígios de vias romanas no concelho de Águeda, (in loc. cit. n.º 30), 1942;

Arlindo de Sousa, Antiguidade do concelho de Feira-Lancóbriga (id.), 1942;

Alberto Souto, Romanização no Baixo-Vouga – (novo «oppidum" na zona de Talábriga), 1942;

Amorim Girão, Geografia de Portugal.

 

À saída de Águeda a estrada nacional transpõe sobre um viaduto (53 metros) o ramal do caminho de ferro do Vale do Vouga e sobe um pouco até alcançar um plaino relativamente seco mas revestido de tapadas frondosas / 591 / de pinheiros bravos. Desaparece o risonho vale do Águeda para ficar só ao longo do caminho a multidão uniforme dos caules escuros, quase lineares, coberta pelo copado rumoroso que rescende a resina.

No meio destes pinheirais travou-se em 27 de Janeiro de 1919 um combate bastante rude entre as forças republicanas que sob o comando do coronel Peres guarneciam a linha do Vouga e as tropas da Junta Realista constituída no Porto por Paiva Couceiro, combate em que estas foram vencidas e obrigadas a retirar para o norte do rio. Dentre os muitos episódios militares, foi este seguramente o mais influente na sorte da Revolta do Norte, na luta então travada ao longo das margens do Águeda e do Vouga. A linha de combate então estabelecida ia até à foz do Vouga, passando pelas pontes estratégicas da Rata, de S. João de Loure, Angeja e Cacia.

A primeira povoação a aparecer (3 km.) é Mourisca, populosa e bastante extensa. O seu casario dispõe-se de um lado e outro da estrada, num alinhamento de quilómetro e meio.

Como tantas outras do distrito de Aveiro (Arada, Quintãs, Ílhavo, Sobreiro, etc.), Mourisca é caracteristicamente uma povoação alongada. Casas térreas e alguns chalés construídos com pecúnia de emigração, patente nas varandas envidraçadas, nos pináculos de telha francesa, nos azulejos, nos quintais com uma ou outra palmeira e ramadas de ferro bem tratadas. Realiza-se na povoação uma feira no dia 24 de cada mês. Em volta, alguns olivedos e campos de milho de sequeiro. A dois palmos de profundidade, sob a camada arável, notam-se espessos depósitos de argila, utilizada no fabrico de adobes. Mas a indústria local típica e antiga é a de cravos de ferrador. A produção segue principalmente para o Alentejo. Numerosas / 592 / oficinas na povoação e cercanias. Um operário de mão adestrada produz a média diária de um milheiro de cravos. A perícia necessária para atingir esse rendimento é digna de ver-se.

A poucos metros da estrada nacional, estação no ramal do caminho de ferro do Vale do Vouga (pág. 583). Duas ramificações de estrada municipal conduzem, a 2 km Oeste da povoação, à igreja da Trofa do Vouga, valiosa pelos monumentos tumulares dos Lemos (pág. 577).

O rio Vouga corre nas proximidades de Mourisca, entre as freguesias de Trofa e Alquerubim, num amplo vale, relativamente fundo, de pujantes milheirais, que outrora teria sido o ponto de encontro das águas do rio com um braço de mar colmatado pelas aluviões até às margens da Ria (pág. 501).

Do lugar da Trofa pode conhecer-se esse vale, descendo por uma estrada municipal, pela freguesia de Segadães até ao lugar da Fontinha. (Perspectivas agradáveis, ao descer, na direcção das distantes freguesias de Eirol, Eixo e Oliveirinha). Na Fontinha (pequena feira a 10 de cada mês), uma velha ponte de madeira dá passagem para a campina da margem direita do Vouga, e daí às aldeias soalheiras de Paus e Alquerubim, antigas pertenças da casa de Bragança. A mesma carreteira municipal (inundável na quadra invernosa) segue pela várzea da margem esquerda, para jusante, entroncando na estrada nacional n.º 8 em Almear. Do lado do nascente descobrem-se nos dias límpidos os altos da Gralheira. É um bom passeio de 4 ou 5 horas para realizar a pé em uma boa clara manhã de fins da Primavera, tomando-se como ponto de partida e chegada a vila de Águeda.

Prosseguindo pela estrada de Lisboa-Porto, descobre-se, ao Norte de Mourisca, uma vez por outra, através das clareiras do arvoredo, a serra do Caramulo. Perto da povoação (6 Km) de Pedaçães, que fica à esquerda, à beira da estrada velha, começa a descida para o fundego lamacento do rio Marnel, pequeno tributário do Vouga.

Pedaçães é outro chão ligado à história das nossas guerras internas e políticas. Aqui embateram em 28 e 29 de Junho de 1828 as tropas avançadas miguelistas do general Póvoas de encontro às desorganizadas forças do brigadeiro Refóios, que combatia pela Junta Liberal do Porto, em precipitada retirada após a desairosa jornada da Cruz de Morouços, ao Sul de Coimbra. A renhida defesa da Ponte do Marnel foi principalmente devida à acção do heróico Sá Nogueira, futuro marquês de Sá da Bandeira. A escaramuça terminou todavia por nova derrota dos batalhões da Junta, lançando para o exílio alguns dos seus organizadores, entre eles o avô de Eça de Queirós (pág. 476).

Ao transpor-se (7 km) o pantanoso dreno do Marnel (ponte de cantaria, de 40 metros de comprimento) avista-se, a montante, a arruinada ponte da antiga estrada da malaposta. Muitas das suas cantarias são marcadas com siglas. A vista é bonita e simples, com o seu quê de romântico – se, principalmente, a quisermos contemplar do pequeno outeiro do Belhe, situado à esquerda, sobre a velha freguesia de Lamas do Vouga. O fundo grandioso da serra do Caramulo, visto daí, enquadra com impecável harmonia na simplicidade lamartiniana da aldeia e do vale. / 593 / Em frente, distingue-se o discutido * Cabeço do Vouga, onde teria existido, a crer em alguns autores passados, uma importante cidadela (Castellum Marnelis), de raízes pré-históricas.

Escavações recentemente efectuadas por iniciativa e a expensas dum particular, o sr. Joaquim Soares de Sousa Baptista, e dirigidas pelo dr. Rocha Madahil, director do museu municipal de Ílhavo, vieram confirmar, até certo ponto, a veracidade da tradição literária, pondo a descoberto alguns curiosos panos de muralha (o mais importante com 3,30 metros de altura, 41 m. de comprimento e 60 cm de largura na base, reforçado exteriormente com 8 pilares, tudo feito com arenito vermelho), quatro edificações de singular estrutura semicircular, parecendo meios torreões postos diante da muralha, com a face convexa voltada para esta, diversas moendas, pregos de construção de ferro e cobre, três moedas romanas dos séculos III e IV da era Cristã, fíbulas, estiletes de bronze, telhas e tijolos de fabrico indígena e outra cerâmica presumivelmente de importação. Teria sido aqui a incógnita Talábriga?

Próximo deste sítio do Marnel existiu o mosteiro de Santa Maria de Lamas, de traça gótica, adquirido em 961 pelo de Lorvão. A povoação propriamente de Lamas foi doada pelo conde D. Gonçalo Mendes ao mesmo mosteiro no ano de 981. Nela existiu o solar da estirpe dos Sousas. O desaparecimento de muitas construções existentes neste lugar foi obra da acumulação das aluviões.

Um quilómetro após o Marnel, a estrada vence o curso do Vouga. (Ponte de 16 arcos contínuos, de volta inteira e de alvenaria, com 226 metros de comprimento, construída em 1713, no reinado de D. João V, e reconstruída em 1858). As águas do rio são geralmente brandas, mas uma vez ou outra, o seu caudal turba-se, incha e ultrapassa as guardas das entradas da ponte, impedindo o trânsito. Do outro lado, na margem direita, é a encosta de Serém.

O sulco da via militar romana parece querer revelar-se, à saída da ponte, nos rodados de uma calçada antiga cavados nas capas de arenito do declive.

A subida de Serém desvenda um dos trechos de paisagem mais encantadores desta jornada. De momento para momento, contemplando à direita, o leito prateado e meândrico do rio, o belo anfiteatro rural da Macinhata do Vouga, o grandioso pano de fundo do Caramulo e da montanha das Talhadas, as apreciações (mesmo tácitas), tornam-se cada vez mais importunas, as exclamações mais frustes, até que, ao atingir-se o melhor ponto da subida, o único comentário que fica a balouçar por cima do vale, entre a alma da pessoa e a das coisas, é o enlevo puro, sem a ênfase e dureza da palavra.

Sobre a estrada, num sítio bem escolhido, fronteiro ao formoso cenário, foi construída pelo Estado em 1940 e inaugurada em 1942, uma / 594 / confortável pousada (a pousada de Santo António de Serém) destinada a dar a quem passa a possibilidade de permanecer um ou dois dias diante deste maravilhoso trecho da paisagem vouguense. Dispõe de 3 quartos, bom serviço de mesa, aperitivos, merendas, chá, sala de leitura, garagem, instalações higiénicas modernas, telefone. Vivenda óptima para um fim de semana.

A suavidade da bela paisagem contemplada deste sítio apenas perturbada, de longe a longe, pela passagem, em baixo, na estrada, dum motor ou, de mais longe, pelo silvo do comboiozinho, que parece brinquedo de bazar, da linha do Vale do Vouga, ao surgir ao fundo, das bandas do Vale de Lafões ou do lado oposto, das colinas verdes de Valongo.

Vagarosos barcos à vela passam uma vez ou outra no Vouga (navegável até às levadas de Pessegueiro, outro lugar extraordinariamente pitoresco). Do outeiro em que assenta a pousada, vê-se, entre a estrada e o rio, a mancha do antigo arvoredo do convento de Serém, hoje propriedade dum particular.

O convento era da ordem dos frades franciscanos, designados Capuchos e chamava-se de Santo António de Serém. Fundou-o em 1635 Diogo Soares, secretário de Filipe IV. A sua conclusão arrastou-se porque, por continuar a servir o monarca espanhol, mesmo depois de 1640, o legatário sofreu a confiscação de todos os bens que possuía em Portugal.

Durante muito tempo supôs-se que teria sido abade de Serém / 595 / (abbas sereiienses), o notável P.e Estêvão Gonçalves Neto, o artista do Missal pontifício, jóia de iluminura seiscentista, de facto abade de Sereijo (Pinhel).

No meio da frondosa cerca, há uma nascente de água levíssima, a que se atribuem propriedades medicinais. Algumas colunas do claustro do antigo recolhimento foram adaptadas a uma varanda da rica residência que tomou, em parte, o seu lugar, pertencente ao sr. Augusto Gomes Júnior.

Ao cimo da ladeira de Serém, despedem-se os olhos da formosíssima vista da Macinhata do Vouga. Aparecem novamente os pinhais. Extensa recta traçada num chão desafogado e alto. Passa-se junto de uma velha casa, estação de muda da antiga malaposta e transpõe-se a linha férrea de Espinho-Sernada. À direita, surpreende-se, uma ou duas vezes, através das clareiras dos pinheiros, a lombada macia da montanha das Talhadas. Logo após, à esquerda, descobrem-se as instalações industriais de uma grande fundição.

É o limiar de (13 km.)

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(1) – Por SANTANNA DIONÍSIO, até pág. 605.

(2) – Deve anotar-se que esta localização não é unanimemente aceite. A crer no rigor do Itinerário de Antonino Pio, a cidade de Talábriga ficaria 40 milhas ao Norte de Aemínio e, por consequência a 21 milhas de Cale. Situando-a sobre as margens do Marnel, Talábriga distaria, de facto, cerca de 30 milhas das margens do / 591 / Mondego, no Aemínio. O arqueólogo Alberto Souto, por essa razão, tem procurado em outros lugares os restos da misteriosa cidadela lusitana e sugeriu, ultimamente, com prudentes reservas, a possibilidade de ela dever procurar-se no Cristelo, da freguesia de Branca, nas cercanias de Albergaria-a-Nova (pág. 598).
 

 

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