A 1,5 km Sudoeste de Ílhavo, por estrada, na margem
esquerda da ria de Vagos (antigo rio Salgado) fica a * Vista
Alegre
(1),
com a sua importante e afamada fábrica de porcelana.
Fundou-a em 1824 José Ferreira Pinto Basto, um dos
provedores da Casa Pia, e ainda hoje se conserva na posse dos seus
descendentes. O fundador comprara em 1815 a Quinta da Vista Alegre,
pertencente nos fins do séc. XVII ao bispo de Miranda, D. Manuel de
Moura Manuel (v. adiante), e aí estabeleceu os primeiros fornos. Por
alvará de 1826 foi concedido ao estabelecimento o título de Real
Fábrica assim como o privilégio exclusivo, por vinte anos, do
fabrico de porcelana. O ramo primeiramente bem sucedido foi o dos vidros
e cristais, utilizando-se areias marítimas. Esse fabrico adquiriu desde
logo notável perfeição, graças a dois técnicos, um alemão e outro
inglês. O primeiro, Miller, vinha já da fábrica de vidros do Covo
(Oliveira de Azeméis). Ficaram desse período peças de fino cristal,
muito apreciadas pelos coleccionadores. O museu de Ílhavo e o da própria
fábrica, anexo à capela, conservam algumas. Para a escolha do local
parece ter contribuído não só a comodidade de comunicações oferecida
pelo braço da ria como a extensa gândara de pinheiros que se estende
entre Quintãs e Cantanhede (págs. 130 e 469) e que poderia, a exemplo da
de Leiria, alimentar os fornos de Vista Alegre, como aquela alimentava
os de Marinha Grande. Entretanto iniciaram-se também as experiências
para o fabrico de louça, mas não de porcelana, pois não se conhecia
então em Portugal a existência de caulino ou barro branco.
Fabricava-se somente faianças de pó-de-pedra (argila, seixo e sílex) de
pasta vidrada. Em 1830 o superintendente da fábrica, Augusto Ferreira
Pinto Basto, foi a Sèvres estudar o fabrico de porcelana. Daí terão
vindo as fórmulas de composição da pasta e vidrado. Faltava, porém, o
caulino. Por sorte descobriu-o (1832) um operário da fábrica, de
nome Luís Capote, em Vale Rico, no concelho da Feira. Mais tarde
acharam-se, um pouco ao Sul, os jazigos de S. Vicente de Pereira.
As peças de louça anteriores a 1834 são autenticadas com
a marca V. A., gravadas a punção e a chamada «marca da coroa». No
período em que o desenhador Rousseau trabalhou na fábrica (1835-52),
usou-se o V. A. dourado, que os amadores apreciam, ou o V. A. azul,
ambos pintados a pincel, com ou sem coroa. Em 1880 pôs-se termo ao
fabrico de vidro e em 1897 iniciou-se o de isoladores para aplicações
eléctricas. O curso evolutivo e o valor artístico da porcelana da Vista
Alegre puderam ser observados na exposição de 1924, efectuada no Museu
de Arte Antiga de Lisboa, por ocasião do primeiro centenário da fábrica,
exposição que foi patrocinada por José de Figueiredo, Reinaldo dos
Santos, José Pessanha, João Barreira, Joaquim de Vasconcelos, Marques
Gomes, Afonso Lopes Vieira e outras individualidades.
Bibliografia
Entre as muitas obras que contêm referências à Vista
Alegre, citemos:
A. R. Batalha,
Catálogo da Exposição de produtos apresentados à Exposição
quadrienal de 1844, Visconde de Vila Maior, Catálogo sobre a
Exposição de Paris de 1885, 1887;
Marques Gomes,
A Vista Alegre: 1883;
Dr. José Pessanha,
A Porcelana em Portugal, 1898 (in-Archivo Hist. Portuguez)
separata em 1903;
Charles Lepierre,
Cerâmica portuguesa moderna. 1899;
José Queiroz,
Cerâmica portuguesa, 1907;
/ 535
/
Dicionário Portugal,
vol. VII, 1907;
Ch. Cipriano,
Relatório sobre cerâmica (in: “BoIetim do Trabalho Industrial”,
n.º 78), 1922;
A Fábrica da Vista Alegre – o livro do seu centenário
(com apêndices e catálogo; colaboração vária), 1924.
Enquanto alguns entendidos são de parecer que a Vista
Alegre é uma filha de Sèvres, José de Figueiredo inclinou-se mais a ver
no seu processo de produção a influência inglesa, principalmente de
Chelsea (fábrica dos arredores de Londres). A pasta, aqui, ao contrário
do que sucede em algumas fábricas francesas, como por exemplo em Limoges,
que a recebe de fora, de fábricas especiais (pâtiers), é na Vista
Alegre preparada no próprio estabelecimento e contém aproximadamente 67%
de sílica, 27% de alumínio, 4,5% de potassa, 1% de cal, percentagens
mínimas de óxido de ferro, e outros ingredientes.
O barro é conduzido para os depósitos da fábrica no
Puxadouro de Válega, perto de Ovar, junto da ria e daí, em barcos da
própria empresa, vem para a Vista Alegre.
As peças, depois de modeladas, são submetidas no andar
superior dos fornos (nove, actualmente) a uma primeira operação de seca,
chamada chacotagem, a uma temperatura que atinge 800º, durante 36
horas. O objecto duma brancura mate, mergulha então no banho do vidrado e é submetido, no andar inferior dos fornos, à
cozedura, que se prolonga igualmente durante 36 horas, a uma temperatura
máxima de 1400º. Vem em seguida a decoração artística: estampagem ou
pintura a pincel, que é fixada por uma cozedura final numa mufla
contínua ou em muflas intermitentes. A peça de porcelana no
trajecto efectuado nesta derradeira operação (muflagem), gasta
cerca de cinco horas.
Das diferentes fases do fabrico, as mais interessantes
são a modelação e a pintura.
A pasta do caulino apresenta certas particularidades que
não estão cientificamente explicadas. Entre os seus ingredientes, antes
da cozedura, alguma coisa se passa, parece, que sugere certas afinidades
com os fenómenos de catálise, supondo alguns, que, com o tempo, em
armazenagem, as suas propriedades qualitativas se apuram.
A porcelana de Vista Alegre é essencialmente do tipo
das porcelanas extra-duras de Berry, de Berlim, da Bélgica. O seu
vidrado, de notável transparência, é de base feldspática. Quanto às
cores, além do verde grande fogo, foram desde a origem do fabrico,
aplicados o azul grande fogo (bleu de Roi) e o dourado a ouro
metálico. Actualmente há o castanho, o creme e outras cores em grande
fogo.
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A energia eléctrica para a laboração das oficinas é
fornecida por uma central privativa termoeléctrica (potência instalada
153 kW). Para o transporte dos materiais existem, entre os pavilhões,
três quilómetros de vias Decauville. Há, à entrada, um mostruário e um
salão de vendas abertos ao público. A visita das instalações da fábrica
pode fazer-se todos os dias úteis, das 9 às 12 horas e das 14 às 17
horas. (excepto no dia da feira local, a 13 de cada mês). Costuma
fazer-se essa visita pela seguinte ordem: Depósitos de materiais –
Oficinas de preparação da pasta de vidro – Oficinas de modelação,
mecânica e manual – Fornos e vidragem – Escolha e lapidagem – Pintura e
estampagem – Muflagem – Embalagem e expedição – Mostruário.
[Durante algum tempo antes de ter aprendido a técnica da
embalagem, o transporte da louça foi feito em camelos que iam até Lisboa
e Porto. Para esta última cidade, os camelos faziam a condução de Ovar a
Gaia em linha recta pelos areais da costa, indo a louça e os vidros até
Ovar em barcos, pelas águas da ria. Esse modo de condução constituía um
objecto de grande curiosidade].
A Vista Alegre é hoje uma povoação com cerca de 1000
habitantes com todos os serviços peculiares dos municípios exercidos
pela fábrica: limpeza, conservação dos pavimentos, incêndios, postos de
saúde, creche, escolas, cantinas, abastecimento de água e luz eléctrica.
Aqui se edificaram, pela primeira vez no País, casas destinadas a
alojamento de operários. Para os mesmos há um campo de jogos e, desde
1851, um teatro.
A selecção e pesquisa das vocações dos operários
qualificados faz-se, à margem da fábrica, tradicionalmente, por uma
escola privativa de desenho, pintura e modelação.
Em 1910 foi criado um pequeno museu (com entrada pela
capela da quinta) onde se podem observar alguns exemplares de cristais e
porcelanas representativos das diferentes fases do fabrico da Vista
Alegre: louças do primeiro período da indústria (1824-32) de pasta não
vitrificada, sem caulino, com pinturas ainda deficientes; espécimes dos
primeiros ensaios de porcelana (1832-38), a princípio escura e mal
cozida, mas já translúcida; algumas séries de interessantes peças de
cristal, porcelanas do período brilhante de 1838-68, com pinturas em
estilo Segundo Império, do pintor ceramista
francês V. C. Rousseau, que na fábrica fez discípulos
(2);
algumas bonitas peças de biscuit (que se começou a fazer em 1850
e então se chamava porcelana pariana por ser imitação dos
mármores de Paros, destacando-se uma cópia do "Larcin de Ia rose"
(1858), muito graciosa); duas jarras do mestre Filipe (1857-60), com
pinturas de flores; peças filetadas e pintadas a oiro; outras com azul
de Sèvres e bleu de roi; um curioso quebra-luz com o retrato
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do tribuno José Estêvão; numerosos produtos do tribuno José Estêvão;
numerosos produtos do período crítico, de transição,
1870-93
(3)
e outros, finalmente, desde essa fase até o Centenário, 1924.
O grande período da indústria foi o dos meados do séc.
XIX.
«Tecnicamente – escreveu José de Figueiredo – há peças
que igualam o que melhor se produziu na época, tal o caso dos seus
biscuits que, sem a existência dos moldes que para ele foram feitos,
passariam por excelentes produtos de Sèvres... E artisticamente, muitas
das peças nada têm também a invejar às que nos deixaram as mais
celebradas manufacturas».
O Museu de Soares dos Reis, do Porto (reorganizado pelo
dr. Vasco Valente, em 1940), possui, assim como o das Janelas Verdes, em
Lisboa, algumas montras valiosas com peças da Vista Alegre.
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(1)
– Por RAUL PROENÇA e SANTANNA DIONÍSIO.
(2)
– Não confundir com François Eugène Rousseau (1827-91) que se
notabilizou também como decorador de porcelanas, em França.
(3)
– Nesta última data entrou na fábrica como dirigente da produção o
mestre francês Roulet.
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