Aveiro, capital de distrito, com 1.247 habitantes, porto
de pesca lagunar e marítima, centro de uma interessante região agrícola
densamente povoada, é uma das mais diferenciadas cidades do litoral de
Portugal. De longe, vista da península da Gafanha, ou, de mais além, do
varandim do farol da Barra, tem alguma coisa que lembra as cidades
brancas do Algarve. Mas, no conjunto, a sua fisionomia é muito própria.
Distingue-a de todas as cidades portuguesas a encantadora bacia lagunar
– a Ria – formada pelo Atlântico na foz do rio Vouga, à beira da qual a
cidade se formou e da qual em boa parte vive.
Aveiro
– Vista
geral da Ria. No primeiro plano, o Canal das Pirâmides;
no último, os
montículos de sal das marinhas.
Por vezes é chamada a Veneza de Portugal. Na realidade a
sua arquitectura despretensiosa pouco evoca as estereotipadas imagens de
canais e praças com bandos de pombas da romanesca cidade do Adriático.
Quem tiver o gosto das comparações, antes encontrará, decerto, em
Aveiro, na horizontalidade da sua paisagem e na ligação, ao mesmo tempo
comezinha e original, da vida campestre com a actividade de circulação
dos pequenos barcos no labirinto dos esteiros – à lembrança da Holanda
(como sugeriu Eliseu Réclus), mas de uma Holanda meridional, com mais
sol e certa maciez de atmosfera quase mediterrânica.
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A placidez dos seus aquáticos arredores embevece. Sob um
firmamento azul de extrema profundidade, desenham-se em volta, com
simplicidade linear, os horizontes.
Foi no inebriamento de luz da ria de Aveiro que Raul
Brandão escreveu algumas das melhores páginas do seu livro de imagens e
emoções, Os Pescadores.
Como definição da cidade e quadro da vida de trabalho
local, vale a pena ler a seguinte e impressiva descrição de Luís de
Magalhães, embora escrita há trinta e tantos anos:
«A cidade actual já pouco tem de arcaico: os restos das
suas antigas muralhas desapareceram totalmente; as pesadas moles dos
seus seis conventos ou foram demolidas ou transformadas em quartéis e
repartições; das velhas arcarias dos seus pitorescos aquedutos já não
resta o mínimo vestígio. Afora a casa da Câmara, com a sua torre
central, o pórtico da renascença da Misericórdia, o cruzeiro de S.
Domingos, o convento de Santa Joana, a interessante arcada dos Balcões,
a capela do Senhor das Barrocas, uma ou outra das suas lindas casas do
fim do século XVIII, de escada exterior com patim alpendrado, como a da
Granja, a do Carril, a do Carmo, a do Seixal, a do Morgado de Vilarinho
– todos os seus outros edifícios, públicos ou particulares, fundem-se na
incaracterística banalidade das construções modernas.
«Mas, no seu curto perímetro, nas suas ruas estreitas, na
inexpressiva uniformidade das suas edificações – duas coisas há que
Imprimem à cidade de Aveiro um cunho inconfundível e a tornam uma das
mais bonitas e interessantes povoações de Portugal: são a vasta ria que
a envolve e a penetra com os seus canais de parapeitos de cantaria,
sobre que se lançam elegantemente as curtas pontes em arco, dando-lhe
uma vaga fisionomia veneziana, e a larga, desafogada, verdejante,
luminosa e variadíssima paisagem em que ela, na sua alvura de povoação
marítima, muito calada e limpa, nos aparece engastada, como uma pérola
num esmalte policromo e brilhante.
«À beira do vasto lago salgado em que o Vouga desagua e
que mede cerca de quarenta quilómetros do norte a sul, num solo quase
plano, assenta a casaria apinhada, de onde se destacam
apenas as torres e as cúpulas das igrejas ou as maciças construções da
câmara, do liceu, do governo civil, do quartel, da antiga Sé. Ao poente,
o canal abre-se em duas meias curvas, marcada a sua entrada por um par
de finas pirâmides de mármore, e corre entre as marinhas de sal,
estendendo, numa bela recta de algumas centenas de metros, o primeiro
lanço dos seus muros baixos, ladeados pelas estradas marginais, que as
contorcidas tamargueiras de fina folhagem ornam do lado da terra. Ao fim
desse lanço, volta para a esquerda, e corta a cidade em dois bairros,
que hoje correspondem às suas duas freguesias passando sob a ponte da
Praça e a ponte do Côjo, e terminando junto ao interessante edifício que
hoje é a Escola Industrial e que banha nas águas o seu sólido alicerce
em arcaria.
«Essa longa rua aquática, duma encantadora perspectiva, é
a principal artéria da vida da cidade. Coração económico e
administrativo duma vastíssima região fluvial e rural, região densamente
povoada e intensamente laboriosa, Aveiro comunica por essa via com quase
toda a zona ocidental do distrito. Às linguetas desse extenso cais
atracam, em cada dia e a cada hora, carregando e descarregando, os
variados tipos de barcos da ria, as pesadas saleiras, os
elegantes e emproados moliceiros, as leves bateiras mercantéis,
as labregas e os esguichos em meia-lua, as pequenas
caçadeiras,
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todos com as suas alvas velas trapezoidais boiando sob o vento, ou
tirados à vara ou a remo pelos mais belos e destros barqueiros dos rios
de Portugal. Uns trazem a lenha, a carqueja ou o tabuado da Serra,
outros o arroz de Ovar, outros o moliço das praias ou o junco das ilhas,
outros o milho e as batatas da Gafanha, outros o sal das marinhas,
outros a sardinha da Costa Nova e de S. Jacinto, ou o pescado da ria,
madeiras, materiais de construção.
«Uma multidão rumorejante e alegre agita-se nessa animada
labuta comercial. São os barqueiros esbeltos e ágeis, manejando as
grandes varas sobre as proas e as bordas dos barcos negros; são os
mercantéis, os negociantes de pescado e as peixeiras da praça, são os
almocreves com as suas récuas de machos; são os embarcadiços de Ílhavo,
os pescadores da Murtosa, as salineiras e os marnotos das marinhas; são,
enfim, as graciosas tricanas, duma elegância magra e nervosa, marchando
num ritmo curto e ligeiro sobre as pontas das minúsculas e agudas
chinelas, e todas esguias em seus longos xailes caídos e nas suas leves
e compridas saias de chita clara, que, flutuando, se lhes colam à linha
fina das pernas, como as roupagens das estatuetas de Tanagra. E na
variegada mescla dos lenços e do vestuário das mulheres, no sombrio
burel dos varinos, das alvas camisas e manaias dos pescadores e
barqueiros, entre o rodar dos carros rústicos puxados por juntas de
tostados marinhões ou de louros arouqueses, entre o circular das
canastras faiscantes de sal de neve ou com lampejos de aço da escama
azulada das sardinhas, nessa faina do negócio e do trabalho – o ruído
das vozes ondula, subindo, descendo, aumentando, smorzando-se nas
notas cantantes e arrastadas duma das mais doces e mais características
falas do povo português».
À margem dos curiosos aspectos de luz,
forma e movimento da sua vida ao ar livre, Aveiro contém um valioso
Museu de Arte (Museu Regional), meio escondido na periferia de um bairro
pacato e vulgar, no antigo convento dominicano de Jesus.
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(1)
– Por SANT'ANNA DIONÍSIO.
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