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A pintura quinhentista na Beira

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O mestre cuja obra e vida estão hoje suficientemente averiguadas para se poder estudar o carácter do seu estilo e influência, é Vasco Fernandes, conhecido mais tarde por Grão Vasco, durante muito tempo entidade mítica a quem se atribuía toda a pintura gótica em Portugal. Pode dizer-se que é não só a personalidade artística mais forte da pintura da Beira, mas representa, depois de Nuno Gonçalves, o génio mais nacional da pintura portuguesa. Vasco Fernandes nasceu certamente no último quartel do séc. XV, por isso que, já no começo do séc. XVI, recebia encomendas da responsabilidade do importante retábulo da Sé de Lamego, conforme se deduz do contrato publicado pelo ProL Vergílio Correia. Esta é a primeira obra que seguramente lhe pode ser atribuída e pelas tábuas que restam desse grande retábulo (Museu de Lamego) pode já fazer-se Ideia do seu estilo de juventude.

Algumas, como a Circuncisão, revelam afinidades de composição com Memling, noutras, como na Anunciação e Visitação, sente-se a influência muito próxima dos neerlandeses que, no começo do séc. XVI, dominaram a arte portuguesa, na pintura como na escultura em madeira. A Criação dos Animais, porém, pertencente ao mesmo retábulo, tem uma originalidade de composição, tal grandeza expressiva no gesto fecundo do Criador, técnica larga e tal riqueza de tonalidades, que esta tábua anuncia já, a par das reminiscências flamengas das outras, a personalidade do futuro Grão Vasco.

Trabalhou no retábulo de Lamego de 1506 a 1511 e sabemos que em 1515 estava em Lisboa, figurando como testemunha num contrato do pintor Jorge Afonso. Por aqui se entrevê em as suas relações com a oficina do pintor régio. Foram os documentos de Maximiano de Aragão os primeiros que precisaram definitivamente a época em que o pintor viveu, pelo foro que pagava em Viseu (até 1541), sendo o pintor já falecido em 1543.

Que outras obras realizou neste longo período de actividade que, abrange quase toda a primeira metade do séc. XVI? É seguro ainda que pintou o tríptico da colecção de Sir H. Cook (Richmond) proveniente de Viseu, assinado Vasco Fernandes e representando uma Pietá e dois Santos (S. Francisco e Santo Antão). É seguro ainda que pintou o Pentecostes de Santa Cruz / 50 / de Coimbra, assinado Velascus e que, por documentos comprovados, se pode atribuir a 1535. Enfim, os cronistas do séc. XVII falam do retábulo de S. Pedro, da Sé de Viseu, como sendo feito pela mão de Vasco Fernandes. A clara referência do cónego Luís Ferreira em 1607, isto é, pouco mais de meio século após a morre do artista; tem o valor de uma tradição bastante próxima para merecer confiança. Atribuição de resto confirmada por outro escritor viseense, Botelho Pereira, quando, nos Diálogos de 1630, diz serem de Vasco Fernandes os famosos quadros da Sé, S. Pedro, S. João Baptista, S. Sebastião, Calvário, Sant'Ana (perdido?) e até o retábulo do altar-mor.

Pondo de parte esta última atribuição (daqui a pouco veremos porquê), o facto é que a série de pinturas da Beira Alta atribuíveis a Grão Vasco é suficiente para deixar entrever a evolução da sua arte. Se a estas tábuas juntarmos outras séries que, por afinidade de estilo, devem entrar no ciclo da sua actividade e influência, essa evolução será ainda mais sugestiva. Estas novas tábuas a incorporar na órbita artística de Vasco Fernandes são: o grande retábulo de Freixo de Espada-à-Cinta, composto de 16 tábuas, e que recentemente se lhe atribui (Boletim da Academia Nacional de Belas-Artes, tomo VIII); duas tábuas representando Santa Luzia e Santa Catarina, hoje no Museu Soares dos Reis do Porto: duas tábuas de Salzedas, outrora separadas das de Lamego, mas que as duas séries acima referidas permitem incorporar na Escola de Grão Vasco.

A evolução da obra de Vasco Fernandes compreender-se-á melhor considerando três ciclos, o primeiro dos quais corresponde ao retábulo de Lamego (1506-1511), cheio ainda das reminiscências flamengas que dominaram a pintura portuguesa no começo do séc. XVI. No ciclo seguinte a personalidade do artista liberta-se já das influências estranhas, torna-se mais sumário no desenho e factura, mais plebeu, talvez, mas mais realista de expressão. Pertencem a este ciclo (1515-1530) o tríptico da colecção Cook de Londres, o retábulo de Freixo de Espada-à-Cinta, as duas Santas do Museu do Porto e as tábuas de Salzedas, etc. Enfim, no último ciclo (1530-1543), em plena maturação da sua personalidade e domínio de técnica, o artista pinta, embora certamente com colaboradores, o Pentecostes de Coimbra (1535) e os quadros / 51 / famosos da Sé de Viseu, dentre os quais o S. Pedro e o Calvário, são as duas obras-primas.

As diferenças de estilo de algumas dessas tábuas pertencentes à mesma série deixam já antever a colaboração de outros oficiais. Certas afinidades dos grandes quadros de Viseu com a obra de Gaspar Vaz em S. João de Tarouca tem feito pensar, logicamente, que Gaspar Vaz, pintor de Viseu, fosse um desses colaboradores. Mas a personalidade de Vasco Fernandes é a mais forte e é ele que melhor representa a pintura regional da Beira Alta e lhe dá carácter nacional pela intensidade do realismo grandioso da composição, escala humana das figuras e sentido dramático da cor.

Na história da pintura da Beira, o retábulo mais antigo não é, porém, o de Lamego, mas o do antigo altar-mor da Sé de Viseu, que Botelho Pereira nos Diálogos de 1630 atribui também a Grão Vasco.

Num escrito recentemente publicado sobre Francisco Henriques (Boletim cit., vol. IV), e mais tarde no estudo com que prefaciámos os Primitivos Portugueses, assentou-se, como já o Prof. Vergílio Correia estabelecera, que o retábulo de Viseu fora anterior ao de Lamego. Isto, não só por ostentar, a par do escudo de D. Diogo Ortiz de Vilhegas (bispo desde 1506, o de D. Fernando de Miranda (em 1505); mas ainda porque, no contrato do retábulo de Lamego (1506), se fazem várias referências ao de Viseu. Este retábulo, composto de 14 tábuas, outrora na Casa do Capítulo, hoje no Museu de Grão Vasco, é, pois, anterior a 1506. A comparação destes dois retábulos, quase contemporâneos, não permite aceitar facilmente uma autoria comum para ambos, tão grandes são as diferenças de desenho, de composição, de cor e de espírito. O retábulo da Sé de Viseu revela sobretudo afinidades com o de S. Francisco de Évora, de Francisco Henriques, de há muito notadas por Justi, Bertaux e José de Figueiredo que o atribui a Jorge Afonso (para José de Figueiredo o mestre do retábulo de Évora). Mas se as afinidades são indiscutíveis, na composição das duas Ceias, por exemplo, no convencionalismo das cabeças do Cristo, na modelação e claro-escuro das carnes, no desenho e estilo das mãos, o facto é que o sentimento da cor e da matéria são profundamente diferentes. No retábulo de Viseu, a matéria é menos fluida, a tonalidade mais escura, há menos finura na cor, frémito / 52 / mais expressivo nos panejamentos, os fundos de paisagem regional são mais realistas. Tudo denota um mestre português, e naturalmente beirão, pelo sabor regionalista da sua arte. Mas este mestre também se distingue bastante do que no ano seguinte iniciava o retábulo de Lamego, isto é, de Vasco Fernandes, sobretudo se compararmos temas idênticos como a Anunciação e outros.

Até que novos documentos esclareçam o caso, talvez seja mais legítimo continuar a distinguir estes dois mestres, ambos de forte personalidade, por isso mesmo mais difíceis de se confundirem. Tão grande é o mestre do retábulo da Sé de Viseu no Horto, por exemplo, cuja composição audaciosa é uma das fortes originalidades desta série, ou na Descida da Cruz, onde toda a emoção da Madalena se exprime no ritmo agitado das roupagens e frémito dos cabelos; tão notável, por outro lado e de uma grandeza diferente, é a Criação dos Animais do retábulo de Lamego e o carácter dos fundos aflamengados da Visitação ou da Anunciação. Só a este mestre da Sé de Viseu pensamos poder atribuir-se o esboceto da Descida da Cruz (Museu de Grão Vasco) em que passa o sopro ardente de Tintoretto, obra única pela cor, composição e amplitude expressiva, na arte desta região. Obra estranha, de sentido mais universal que regional.

A par do «mestre do retábulo da Sé de Viseu» e de Vasco Fernandes, temos de considerar Gaspar Vaz, certamente mais moço que os dois primeiros e mestre notável, cujo nome e obra constituem novo título de glória da pintura da Beira. A actividade conhecida de Gaspar Vaz, mais tardia que a de Vasco Fernandes, estende-se de 1514 a 1568. Parece ter-se formado na oficina de Lisboa, de Jorge Afonso, onde já estava em 1514 e figurava como criado em 1515. Mas sabemo-lo em Viseu de 1537 a 1568, segundo o Prof. Vergílio Correia, a quem a documentação da pintura da Beira tanto deve. A obra essencial, que lhe pode documentalmente ser atribuída, são as pinturas de S. João de Tarouca, conforme os dados do documento de Sousa Viterbo em que se diz que Cristóvão de Figueiredo foi a S. João de Tarouca «ver e receber as obras que fez Gaspar Vaz, pintor». Documento que se pode datar entre 1531 e 1540. A sua formação na oficina de Lisboa explica certas afinidades do políptico de Tarouca com o estilo de Gregório Lopes (afinidades já / 53 / notadas por José de Figueiredo). A sua vinda para Viseu, no segundo terço do séc. XVI, explica os indícios da sua colaboração nas obras de Vasco Fernandes e, sobretudo, a influência deste mestre na personalidade, menos forte mas mais delicada, de Gaspar Vaz.

Nas pinturas de S. João de Tarouca, S. Pedro e S. Miguel foram sempre julgados do mesmo mestre, mas o carácter, menos grandioso e mais amaneirado, do políptico da Virgem, levou vários críticos de arte a atribuí-los a um pintor diferente. O colorido mais doce, certo maneirismo dos anjos, convencionalismos da paisagem, aliás fina, tudo inclinava a integrar este políptico mais depressa na influência cosmopolita da oficina de Lisboa que no regionalismo, mais rude, dos pintores da Beira.

A vinda de todos estes painéis à «Exposição dos Primitivos» e o seu confronto com os de Vasco Fernandes, de Viseu, permitiu, porém, julgar melhor a personalidade de Gaspar Vaz. Em primeiro lugar as afinidades de tonalidade de todas as tábuas de S. João de Tarouca levaram a aceitar que o S. Pedro, S. Miguel e o políptico da Virgem seriam do mesmo mestre, que, à face do documento de Viterbo, seria assim Gaspar Vaz. Por outro lado a sua estada e aprendizagem na oficina de Jorge Afonso, explicavam as sugestões de Gregório Lopes, a que José de Figueiredo legitimamente foi sensível.

Este confronto esclareceu também profundamente as velhas controvérsias sobre a autoria dos dois S. Pedros. Podem ser, e devem ser, de dois mestres diferentes, embora inspirados no mesmo protótipo de composição. Mais grandioso, mais dramático e mais plebeu, de tonalidade mais grave e visão decorativa mais ampla, o de Viseu; mais claro de tom, delicado de sentimento, mais forte no retrato e subtil na paisagem, o de Tarouca. A superioridade que Bertaux, José de Figueiredo e nós próprios reconhecêramos no S. Pedro de Tarouca, desvaneceu-se, em Lisboa, quando se puderam cotejar face a face. É justo, porém, notar que, quanto à tonalidade, essa comparação se fez em condições desfavoráveis para o quadro de Tarouca, pois o estado lamentável a que tinha chegado obrigou a um tratamento e restauro que conferiu, de momento, à cor uma frescura demasiado ácida e o despiu da austeridade de tom e sortilégios de pátina que no S. Pedro de Viseu se tinham podido respeitar. / 54 /

A Gaspar Vaz se pode ainda atribuir a tábua Jesus em Casa de Marta, cujos fundos de paisagem revelam as influências cosmopolitas a que já aludimos, sobretudo nas paisagens de sabor ora flamengo, ora giorgionesco. Maria, porém, sentada no primeiro plano, pensativa como a Melancolia de Dürer, revela, na justaposição dos tons, audácias precursoras de um Greco.

Temos notícia de outros pintores e de outras pinturas na Beira Alta, mas de Francisco Fernandes e João Denis, que eram de Viseu, não sabemos o que pintaram, e de Sebastião Afonso (de Lamego), a quem se encomendou um retábulo para Valdigem, não sabemos onde este pára. Por outro lado, tema idêntico ao de Valdigem (S. Martinho repartindo a capa com o pobre) é o de uma das tábuas de S. Martinho de Mouros, cuja autoria por sua vez se desconhece, embora filiável na Escola da Beira.

Os mestres que dominam, porém, a pintura da Beira, são os três a que particularmente nos referimos e é a Escola de Viseu, e acima de tudo a forte personalidade de Vasco Fernandes, que dá à pintura portuguesa quinhentista o carácter nacional, regionalista por vezes, autóctone e em todo o caso, que havia de lhe conferir uma originalidade indiscutível, menos tocada de cosmopolitismo que a da Escola de Lisboa.

A actividade dos artistas saídos da oficina de Jorge Afonso, como Cristóvão de Figueiredo, Gregório Lopes, Garcia Fernandes, etc., irradiando da capital, havia de estender-se a todo o País. E na própria Beira, em Lamego e Ferreirim, é certo ter trabalhado (1533- 1534) a parceria acima referida.

Mas isso não é já pintura da escola de Viseu, mas da escola de Lisboa na Beira.

 

 

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