2.2. Nação e nacionalismo
O
SÉCULO XIX foi, na Europa, um período de emulações nacionalistas, ao
sabor da afirmação dos diferentes sistemas liberais que sustentaram as
vitórias burguesas, os processos de industrialização e a crescente
concorrência nas trocas internacionais.
A teorização da ideia moderna de Nação encontra-se já
John Locke, nos seus Two Treatises of Governement, publicados em
1690, e continuará a estruturar-se no decorrer da centúria de
Setecentos, acolitando as campanhas iluministas de uma contra-elite
intelectual, oriunda da pequena e média burguesias,
fortemente crítica do Estado Absoluto e da «sociedade de corte».(48)
Paradoxalmente, ou talvez não, foram as contradições do Absolutismo e do
Despotismo Iluminado que criaram as condições da afirmação burguesa e
prepararam as revoluções fundadoras dos regimes demo-liberais.
A Nação moderna, o Estado-nação, foi o corolário das
grandes transformações ocorridas na sequência da Revolução Industrial
que arrancou milhões de europeus à autarcia rural e à pequena pátria
paroquial, generalizando as novas relações
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sociais de produção, reverberadas na lenta proletarização do pequeno
campesinato e na correspondente separação entre produtores e meios de
produção. Falamos, naturalmente, do capitalismo industrial e financeiro,
realidade complexa que, entre outros fenómenos sociais e económicos,
inclui a revolução dos transportes, o crescimento urbano e o êxodo
rural. o urbanismo e a explosão demográfica. Foi esta nova formação
social que subverteu e destruiu as bases da velha «sociedade de Corte»,
ao mesmo tempo que deslocava os centros de decisão do campo para a
cidade, uniformizando o espaço nacional e fazendo emergir novos grupos
sociais cuja maior visibilidade se revelava no aumento do número de
funcionários e empregados, mas também na proliferação de profissionais
liberais, impelidos para uma crescente escolaridade e ávidos de
arremedar, à sua dimensão, os hábitos das grandes famílias burguesas. É
neste quadro que as novas elites, de raiz burguesa, vão lentamente
sobrepujando as elites aristocráticas, afirmando o Estado parlamentar e
integrando a massa dos excluídos das sociedades pré-industriais.
A Nação moderna será uma construção da cultura urbana e
burguesa, erigida durante o século XIX com ladrilhos de história,
língua, espaço e Estado, elementos que, frequentemente, demoraram tempo
a afeiçoar antes de receberem a argamassa popular que os agregou. Assim,
a Espanha tinha história, ou talvez histórias, espaço e Estado, mas
línguas e culturas diversificadas; a França revolucionária descobre que
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apenas quinze das suas oitenta e cinco províncias falam o francês do
aparelho do Estado e dos intelectuais parisienses; a
Itália unifica-se espacialmente, mas Alessandro Manzoni(49)
viu-se forçado a reinventar o toscano de Dante, matriz burguesa do
futuro italiano nacional que, em 1861, é falado por menos de três por
cento da população transalpina; a Alemanha pretende-se Nação, mas o
conceito apenas exprime a ideia transnacional de um mosaico de Estados e
de uma língua cerzida de dialectos que uma forte propaganda romântica,
de regresso à Idade Média, prepara para a unificação, dirigida pela
batuta do maestro prussiano. Os exemplos poderiam multiplicar-se e
estender-se por quase todo o mapa do velho continente, mostrando como
era ainda artificial a maioria dos Estados-nações, mais produtos da
vontades de elite que sentires objectivos reconhecidos pelas
comunidades. (Schultze, 1997: passim e p. 161 ss.)
Portugal assume uma verdadeira singularidade
e especificidade no cenário europeu oitocentista(50),
porquanto, sendo
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um pequeno País, conseguiu resistir à força centrípeta de Castela e
construir, mas também preservar, as mais antigas fronteiras da Europa e
uma língua única a adubá-las. Isto não significa, contudo, a plena
realização do espaço nacional, porque Portugal não logrou evitar a
amputação de parte da sua identidade antropocultural, a que demorava na
Galiza e foi absorvida pelo reino castelhano, na turbamulta
político-militar das contingências históricas.
Esta particularidade portuguesa permitiu, desde muito
cedo, que, como afirma José Mattoso, se tenha passado
«quase insensivelmente [...] de uma concepção do país
como um conjunto de pessoas e terras sobre as quais o rei exercia
autoridade, ao de comunidade com a sua própria consistência, qualquer
que fosse o rei que o governasse.» (Mattoso, 1985, v. 2: 203)
Mas o pensamento, a ideia de comunidade nacional, acima
das autarcias senhoriais ou municipais, tardará a descer e alargar-se a
todo o povo, mesmo considerando os variados momentos
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da história que viram levantar-se a nação contra o inimigo externo. A
Nação de que falamos é outra, é burguesa e liberal, pressupõe a
participação popular nos destinos da comunidade nacional e a existência
de um aparelho de Estado que, pelo menos teoricamente, uniformize o
espaço nacional na Lei e no Direito, seja ele público ou privado.
O caminho para esta Nação abre-se, em Portugal, com a
Revolução de 1820 e os documentos constitucionais de 1822 a 1911, mas
também com a acção das elites que hasteiam as bandeiras das comemorações
de centenários, ou reforçam as dimensões simbólica e
existencial da identidade cultural e social portuguesa(51).
A construção da nação moderna portuguesa deve muito à primeira geração
romântica, a homens como Almeida Garrett, José Estêvão ou Alexandre
Herculano que, entre muitos outros, estiveram na primeira linha do
combate à repressão miguelista, viveram exílios em França ou na
Inglaterra e regressaram mais tarde, em 1832, desembarcando no Mindelo e
pelejando pela liberdade até à derrota absolutista de 1834.
Desbravados os primeiros trilhos, outras gerações
assumirão a continuidade do legado, tarefa difícil e morosa,
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cerceada que foi pelo atraso estrutural do país e pelos diferentes
interesses em jogo. É que, não o esqueçamos, a Revolução de 1820 foi
mais um grito de revolta contra a presença dos ingleses e a ausência da
Corte no Brasil, que um ponto de chegada da evolução capitalista ou do
amadurecimento económico e social de Portugal.
Será neste quadro que tentaremos uma aproximação ao
pensamento de Jaime de Magalhães Lima, procurando retirar dos seus
escritos a argumentação que sustentou a sua ideia de identidade nacional
e inscrevendo-a na vida cultural portuguesa e europeia.
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(48)
– Sobre a desestruturação da «sociedade de corte» veja-se
Norbert Elias (1995).
(49)
– Alessandro Manzoni (1785-1873) teve um papel decisivo na
unificação linguística italiana, não só através da sua obra literária,
mas também ensaística (Dell'unitá della língua e dei mezzi di
diffonderla, 1868).
(50)
– Hagen Schultze (1997), ao longo de mais de trezentas páginas
do seu Estado e Nação na História da Europa, mostra total ignorância
face à realidade e especificidade portuguesa. Em toda esta obra,
Portugal surge de raspão em três linhas (?) para repetir a estafada e
insustentável teoria que rejeita o epíteto de fascista ao Estado Novo de
Salazar. Não sabemos onde foi o autor recolher tão «original» conclusão,
já que, nas suas cerca de duzentas e cinquenta referências
bibliográficas não encontramos um único autor português. Schultze parece
estribar a sua opinião no exílio do fascista Rolão Preto, medida
salazarista que, pelos vistos, é suficientemente marcante para separar o
regime autoritário, corporativo, antiparlamentar, anticomunista e
unipartidário de Salazar, do regime autoritário, corporativo,
antiparlamentar, anticomunista e unipartidário de Mussolini...
(51)
– Registem-se, entre outras e a título de exemplo, as acções e
propaganda em torno de celebrações como as do 3.º centenário da morte de
Camões (1880), do 1.º centenário da morte do Marquês de Pombal (1882),
do 5.º centenário do nascimento do Infante D. Henrique (Porto, 1894) e
do 4.º centenário do descobrimento do caminho marítimo para a Índia
(Lisboa, 1899).
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