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Manuel J. G. Carvalho - Nação, nacionalismo e democracia em Jaime de Magalhães Lima - 1999

2.2. Nação e nacionalismo

O SÉCULO XIX foi, na Europa, um período de emulações nacionalistas, ao sabor da afirmação dos diferentes sistemas liberais que sustentaram as vitórias burguesas, os processos de industrialização e a crescente concorrência nas trocas internacionais.

A teorização da ideia moderna de Nação encontra-se já John Locke, nos seus Two Treatises of Governement, publicados em 1690, e continuará a estruturar-se no decorrer da centúria de Setecentos, acolitando as campanhas iluministas de uma contra-elite intelectual, oriunda da pequena e média burguesias, fortemente crítica do Estado Absoluto e da «sociedade de corte».(48) Paradoxalmente, ou talvez não, foram as contradições do Absolutismo e do Despotismo Iluminado que criaram as condições da afirmação burguesa e prepararam as revoluções fundadoras dos regimes demo-liberais.

A Nação moderna, o Estado-nação, foi o corolário das grandes transformações ocorridas na sequência da Revolução Industrial que arrancou milhões de europeus à autarcia rural e à pequena pátria paroquial, generalizando as novas relações / 52 / sociais de produção, reverberadas na lenta proletarização do pequeno campesinato e na correspondente separação entre produtores e meios de produção. Falamos, naturalmente, do capitalismo industrial e financeiro, realidade complexa que, entre outros fenómenos sociais e económicos, inclui a revolução dos transportes, o crescimento urbano e o êxodo rural. o urbanismo e a explosão demográfica. Foi esta nova formação social que subverteu e destruiu as bases da velha «sociedade de Corte», ao mesmo tempo que deslocava os centros de decisão do campo para a cidade, uniformizando o espaço nacional e fazendo emergir novos grupos sociais cuja maior visibilidade se revelava no aumento do número de funcionários e empregados, mas também na proliferação de profissionais liberais, impelidos para uma crescente escolaridade e ávidos de arremedar, à sua dimensão, os hábitos das grandes famílias burguesas. É neste quadro que as novas elites, de raiz burguesa, vão lentamente sobrepujando as elites aristocráticas, afirmando o Estado parlamentar e integrando a massa dos excluídos das sociedades pré-industriais.

A Nação moderna será uma construção da cultura urbana e burguesa, erigida durante o século XIX com ladrilhos de história, língua, espaço e Estado, elementos que, frequentemente, demoraram tempo a afeiçoar antes de receberem a argamassa popular que os agregou. Assim, a Espanha tinha história, ou talvez histórias, espaço e Estado, mas línguas e culturas diversificadas; a França revolucionária descobre que / 53 / apenas quinze das suas oitenta e cinco províncias falam o francês do aparelho do Estado e dos intelectuais parisienses; a Itália unifica-se espacialmente, mas Alessandro Manzoni(49) viu-se forçado a reinventar o toscano de Dante, matriz burguesa do futuro italiano nacional que, em 1861, é falado por menos de três por cento da população transalpina; a Alemanha pretende-se Nação, mas o conceito apenas exprime a ideia transnacional de um mosaico de Estados e de uma língua cerzida de dialectos que uma forte propaganda romântica, de regresso à Idade Média, prepara para a unificação, dirigida pela batuta do maestro prussiano. Os exemplos poderiam multiplicar-se e estender-se por quase todo o mapa do velho continente, mostrando como era ainda artificial a maioria dos Estados-nações, mais produtos da vontades de elite que sentires objectivos reconhecidos pelas comunidades. (Schultze, 1997: passim e p. 161 ss.)

 

Portugal assume uma verdadeira singularidade e especificidade no cenário europeu oitocentista(50), porquanto, sendo / 54 / um pequeno País, conseguiu resistir à força centrípeta de Castela e construir, mas também preservar, as mais antigas fronteiras da Europa e uma língua única a adubá-las. Isto não significa, contudo, a plena realização do espaço nacional, porque Portugal não logrou evitar a amputação de parte da sua identidade antropocultural, a que demorava na Galiza e foi absorvida pelo reino castelhano, na turbamulta político-militar das contingências históricas.

Esta particularidade portuguesa permitiu, desde muito cedo, que, como afirma José Mattoso, se tenha passado 

«quase insensivelmente [...] de uma concepção do país como um conjunto de pessoas e terras sobre as quais o rei exercia autoridade, ao de comunidade com a sua própria consistência, qualquer que fosse o rei que o governasse.» (Mattoso, 1985, v. 2: 203)
 

Mas o pensamento, a ideia de comunidade nacional, acima das autarcias senhoriais ou municipais, tardará a descer e alargar-se a todo o povo, mesmo considerando os variados momentos / 55 / da história que viram levantar-se a nação contra o inimigo externo. A Nação de que falamos é outra, é burguesa e liberal, pressupõe a participação popular nos destinos da comunidade nacional e a existência de um aparelho de Estado que, pelo menos teoricamente, uniformize o espaço nacional na Lei e no Direito, seja ele público ou privado.

O caminho para esta Nação abre-se, em Portugal, com a Revolução de 1820 e os documentos constitucionais de 1822 a 1911, mas também com a acção das elites que hasteiam as bandeiras das comemorações de centenários, ou reforçam as dimensões simbólica e existencial da identidade cultural e social portuguesa(51). A construção da nação moderna portuguesa deve muito à primeira geração romântica, a homens como Almeida Garrett, José Estêvão ou Alexandre Herculano que, entre muitos outros, estiveram na primeira linha do combate à repressão miguelista, viveram exílios em França ou na Inglaterra e regressaram mais tarde, em 1832, desembarcando no Mindelo e pelejando pela liberdade até à derrota absolutista de 1834.

Desbravados os primeiros trilhos, outras gerações assumirão a continuidade do legado, tarefa difícil e morosa, / 56 / cerceada que foi pelo atraso estrutural do país e pelos diferentes interesses em jogo. É que, não o esqueçamos, a Revolução de 1820 foi mais um grito de revolta contra a presença dos ingleses e a ausência da Corte no Brasil, que um ponto de chegada da evolução capitalista ou do amadurecimento económico e social de Portugal.

Será neste quadro que tentaremos uma aproximação ao pensamento de Jaime de Magalhães Lima, procurando retirar dos seus escritos a argumentação que sustentou a sua ideia de identidade nacional e inscrevendo-a na vida cultural portuguesa e europeia.

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(48)Sobre a desestruturação da «sociedade de corte» veja-se Norbert Elias (1995).

(49)Alessandro Manzoni (1785-1873) teve um papel decisivo na unificação linguística italiana, não só através da sua obra literária, mas também ensaística (Dell'unitá della língua e dei mezzi di diffonderla, 1868).

(50)Hagen Schultze (1997), ao longo de mais de trezentas páginas do seu Estado e Nação na História da Europa, mostra total ignorância face à realidade e especificidade portuguesa. Em toda esta obra, Portugal surge de raspão em três linhas (?) para repetir a estafada e insustentável teoria que rejeita o epíteto de fascista ao Estado Novo de Salazar. Não sabemos onde foi o autor recolher tão «original» conclusão, já que, nas suas cerca de duzentas e cinquenta referências bibliográficas não encontramos um único autor português. Schultze parece estribar a sua opinião no exílio do fascista Rolão Preto, medida salazarista que, pelos vistos, é suficientemente marcante para separar o regime autoritário, corporativo, antiparlamentar, anticomunista e unipartidário de Salazar, do regime autoritário, corporativo, antiparlamentar, anticomunista e unipartidário de Mussolini...

(51)Registem-se, entre outras e a título de exemplo, as acções e propaganda em torno de celebrações como as do 3.º centenário da morte de Camões (1880), do 1.º centenário da morte do Marquês de Pombal (1882), do 5.º centenário do nascimento do Infante D. Henrique (Porto, 1894) e do 4.º centenário do descobrimento do caminho marítimo para a Índia (Lisboa, 1899).

 

 

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