2. O pensamento sócio-político de
Jaime Magalhães Lima
2.1. O liberalismo
A
TENDÊNCIA oitocentista para perceber o liberalismo de forma redutora,
quase sempre circunscrito a parâmetros sócio-políticos e económicos, bem
patente na praxis do Estado liberal, está longe de enformar o pensamento
limiano. O liberalismo de Jaime Lima é de todos os tempos e de todos os
homens, pretende-se do homem global, e é, acima de tudo, um espaço de
liberdade in fieri, já que,
«além e muito além de político, em esferas infinitamente
mais transparentes que essa muito turvada em que a política se agita, o
liberalismo abrange toda a feição e expressão da vida humana, e
verdadeiramente não tem data nem lugar de nascimento e habitação. em
tantos lugares e há tantos séculos surgiu e nos iluminou. E onde quer
que o encontremos é o sinal de que aí os homens entraram na idade do
conhecimento e da razão. Com esta condição se confunde. É contemporâneo
da alma humana e na sua ubiquidade se dilata.» (Lima, 1969: 34),
não é algo que de chofre e revolucionariam ente se
imponha, ignorando a realidade social de cada País. Emerge aqui a
crítica organicista e anti-individualista, adepta de uma intervenção
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política calculada e estribada cientificamente, para que a harmonia das
sociedades não seja quebrada e o caos não suceda à ordem, mas também se
descobre a ideia reformista e anteriana de revolução, pois
«A Natureza não admite revoluções nem as sociedades as
admitem porque são organismos; um país transforma-se, não se substitui a
poder de leis e de decretos. Um político novo opera por infiltração,
renovando lentamente os elementos velhos, eliminando gradualmente os
elementos nocivos. Não há, não pode haver mutações rápidas de cenário,
de actores e de situações. E é exactamente porque se desconhece esta
verdade, aliás incontestável, que o pessimismo tem entre nós tão bons
adeptos.» (Lima, 1933a: 218)
Estamos perante ideias amadurecidas, explanadas num
escrito de 1897(46),
no qual pretende analisar criticamente a passagem de Oliveira Martins
pela governação, condenando-lhe a estratégia, mas não o pensamento com o
qual se identifica e se identificou na altura desses acontecimentos,
pois, como vimos, Magalhães Lima não regateou o seu apoio ao programa da
«Vida Nova». Anos depois, escrevendo no décimo sexto
aniversário da morte de Oliveira Martins(47),
será mais compreensivo em
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relação às tergiversações políticas do «filósofo», assumindo a nova
atitude com a humildade de quem evolui
«no correr dos anos, corrigindo, emendando, acrescentando
e suprimindo, à medida que a jornada pelo mundo e a feição dos tempos
nos esclarecem e aconselham, mostrando-nos pontos de referência até
agora ignorados, aspectos novos anteriormente nem sequer suspeitados.»
(Lima, 1933a: 230)
A adesão de Jaime Lima ao programa da «Vida Nova», e
posteriormente ao Franquismo e à dissidência regeneradora, prende-se com
a sua ideia de liberalismo e a sua atitude anti-individualista. Se a
sociedade é um organismo, ela necessita da ordem que estabelece a
ligação entre todos os seus órgãos, cujo funcionamento harmónico é
indispensável à paz social e à felicidade dos povos, porque
«O indivíduo, ser social, estuda-se na História, no que
foi, e, na sociedade, no que é. Como o naturalista estuda o animal na
sua anatomia e filosofia e na sua evolução, na sua vida, relações e
desenvolvimento de todos os seus membros e de todas as suas funções, o
que estuda política estuda a sociedade tal qual é, tal qual foi, tal
qual vive, estuda a sociedade na vida e relações presentes, no
desenvolvimento histórico de todos os seus órgãos e de todas as suas
funções.
Desagregando aquilo que era inseparável, considerando o indivíduo fora
das suas relações com os outros indivíduos, quando estas mesmas relações
constituem a sua substância como ser social, a teoria individualista
punha de parte o primeiro elemento de estudo e partia duma falsa
abstracção, que, necessariamente,
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havia de produzir todas as desgraçadas consequências práticas que
realmente produziu.» (Lima, 1886: 11)
O escritor aveirense rejeita os valores da nova sociedade
burguesa, materialista e geradora de crescentes e gritantes
desigualdades sociais, com novos senhores substituindo-se aos antigos, e
o novo-riquismo promovendo a subversão dos valores que, desde sempre,
tinham alimentado a coesão do tecido social:
«Se houve épocas de ambições terrenas, foi o século XIX.
Deixa-nos um espírito de ganância, de luta e aspereza na conquista dos
bens do mundo, que sempre existiu, é certo, mas nunca se mostrou tão
orgulhoso, principalmente tão isento de influências que o equilibrem. A
santidade, significando desprendimento das riquezas e humildade da vida
externa, nunca foi menos apetecida do que em nossos dias. Houve tempos
em que abundavam guerreiros e heróis, acabando monges e eremitas; hoje,
o heroísmo, depois de se revestir de medalhas, acaba rico e obeso, com
boas e chorudas rendas, criadagem basta, regalos de toda a espécie.»
(Lima, 1902: 275)
A rejeição do individualismo liberal tinha-a Jaime Lima
bebido na Universidade, como atrás assinalámos. Por ali campeava a
«lição filosófico-jurídica de Ahrens, discípulo de Krause» (Catroga,
1981: 355ss), e a ideia corporativa com que Costa Lobo pretendia sanar
os excessos de individualismo e promover a reorganização da sociedade. O
convívio com Antero de Quental e Oliveira Martins, este último também
influenciado pelo krausismo do belga Ahrens (Catroga, 1981: 363, n. 53),
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terá contribuído para cimentar o pensamento político de Jaime Lima, e
também, ainda neste contexto, não podemos desprezar os contributos do
franciscanismo e de John Ruskin, bem como os escritos de António Serpa
(Lima, 1915a: 29-32), seu correligionário do Partido Regenerador.
A crítica limiana ao liberalismo ortodoxo incidia sobre
diferentes aspectos das suas manifestações mundivivênciais. Na economia
denunciava a duplicidade
«que mal proclamava os seus propósitos democráticos de
repartição equitativa da riqueza, logo achava razões excelentes para
fazer medrar na indústria as aristocracias capitalistas absorventes,
incomparavelmente mais despóticas que o feudalismo territorial de outras
eras.» (Lima, 1925: 12);
na literatura a denúncia centrava-se na ambiguidade que
lhe permitia manifestar-se
«por um lado guindada em exaltações românticas de
cabeleira ao vento e por outro regrada e pautada na ponderação das
formas clássicas, penteada e até sujeita a rigorosa tonsura» (Lima,
1925: 14);
no campo ético insurgia-se contra uma moral
«acautelada contra todos os extremos e tiranias de
princípios únicos e para a qual os sete pecados mortais entravam a ser
postos em simetria com as virtudes que os corrigem, de modo que a sua
triste condição de réus não os vexasse demasiado, e virtudes e pecados
pudessem sentar-se fraternalmente em o mesmo banco» (Lima, 1925: 15);
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por fim, censurava o vazio de uma
«religião, ora alentando-se nos filtros vivificantes do
espírito, ora abdicando, passiva e menos crédula, nas prisões mortais da
letra, sempre oscilando entre a obediência divina do Senhor e as
complacências com o mundo.» (Lima, 1925: 14-15).
Eram estes os compromissos do liberalismo, presentes
igualmente na vida política, e era contra este «espírito de
transigências e medianias» (Lima, 1925: 13) que se levantava a voz do
eremita do Vale do Suão, ferido na sua verticalidade e pesaroso perante
os resultados de tal procedimento.
Jaime de Magalhães Lima entendia o liberalismo como um
espaço «de respeito mútuo entre os homens», espaço de autonomia e de
liberdade, liberdade de acção e de pensamento, incompatível com qualquer
tipo de poder absoluto ou autocrático. Mas este espaço tinha uma alma,
melhor dizendo, uma alma nacional, cerzida de laços familiares, de
valores morais e de religião, que era preciso defender e perpetuar
(Lima, 1969: 32-33). Daí a sua recusa de modelos transnacionais e o
assacar de culpas à Revolução Francesa, acusada de responsabilidades na
dissolução moral (Lima, 1886: VI) e exprobrada pela exportação de
valores e de sistemas políticos que pretenderam uniformizar
«o direito e os costumes e a arte e a economia dos povos
e das nações; à sua obediência sujeitando todo o modo de ser dos homens,
individual ou colectivo.» (Lima, 1969: 34)
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Perante tais premissas, não surpreenderá que Jaime Lima identifique o
liberalismo corrupto e desviador com o período aberto pela Regeneração,
ou que destaque, como pura, idealista e desinteressada
«toda aquela soberba edificação liberal, em que tinham
cooperado o génio portentoso de Herculano, a arte subtil de Garrett, a
elevação moral dos Passos e os impulsos heróicos de José Estêvão, e o
saber de Mouzinho, e a austeridade de D. Pedro V, e a escola de
Rodrigues Sampaio.» (Lima, 1925: 18)
É que, por estas paranças, estávamos ainda no primeiro Romantismo, e os
valores, a arte, as raízes e as políticas permaneciam nacionais,
respeitavam a idiossincrasia portuguesa, não tinham sido corrompidas
pela aculturação posterior.
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(46)
– LIMA, Jaime de Magalhães – A influência de Oliveira Martins: «Os
ideais de Oliveira Martins» de F. Diniz de Ayalla. “Tarde”. Lisboa.
(2 Set. 1897). Publicado posteriormente em Lima (1933a: 215-219).
(47)
– LIMA, Jaime de Magalhães – Oliveira Martins: O seu carácter. O
Porto. Porto. (24 Ago. 1910) 1. Publicado posteriormente em Lima
(1933a: 229-238)
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