2.2.1. A Nação portuguesa
UMA
das preocupações primordiais do Romantismo consistiu em legitimar a
ideia de Nação na Idade Média, porque, ao fazê-lo, legitimava a própria
burguesia, cabouqueira da nação moderna e também do municipalismo
medievo, o único espaço de liberdade usufruído pelo povo no mundo
senhorial.
Recusando a ideia renascentista que entroncava
Portugal na Lusitânia e os Portugueses nos Lusitanos,
Alexandre Herculano(52),
como depois Oliveira Martins(53),
apostam na tese política das raízes medievais que, nas respectivas
leituras, se quedavam no Condado Portucalense do conde D. Henrique.
Jaime Lima não seguiu Herculano nem Oliveira Martins,
apesar da grande admiração que tinha pelo primeiro e da amizade que o
ligava ao segundo. Outros foram os que, neste campo, o inspiraram, e não
era reduzida a plêiade de investigadores que buscavam, nos finais
do século XIX e início do XX,
compreender e estudar as origens nacionais. Jaime Lima
irá acompanhar os ensinamentos de Leite de Vasconcelos(54),
Martins Sarmento(55),
Júlio Moreira(56)
e Silva Correia(57),
entre
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muitos outros, mas sobretudo seguirá as teses explanadas por Alberto
Sampaio n' As Vilas do Norte de Portugal (Sampaio, 1979),
recusando a ideia herculaniana do ermamento total e fazendo recuar a
formação da «raça» portuguesa à romanização.
Mas importa abrir aqui um parêntese, para destacar que o
conceito de «raça» tem, em Jaime de Magalhães Lima, uma carga étnica e
anti-racista, por demais presente quando afirma que
«As raças serão tanto mais elevadas quanto mais elevada
for a soma das faculdades e capacidades adquiridas por legado e contacto
de outras raças, juntando-se à antiguidade e volume do cabedal próprio
de cada uma. [...] Raças superiores serão as que mais desafogadamente se
mesclarem com outras raças e nelas recompuserem o sangue.» (Lima, 1968:
89)
Nesta mesma obra faz suas as palavras de um autor inglês,
de que transcreve a seguinte passagem:
«Devemos lembrar que as raças humanas todas [se] podem
cruzar livremente, e se separam, misturam e ligam como se nuvens fossem.
As raças humanas não
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ramificam como as árvores, em braços que nunca se ajuntam. [...] Usa-se
a palavra raça com a maior leviandade e sobre ela fundamos as mais
absurdas generalizações. Falamos de uma raça "britânica" ou de uma raça
"europeia", mas quase todas as nações da Europa são uma mistura,
confusão de castanho, e preto e branco, e branco e
elementos mongólicos».(58)
Como dizia Sampaio, as vilas romanas
«foram um dos principais pontos de apoio da romanização:
e unindo moralmente os trabalhadores, deram a cada grupo a coesão
necessária para mais tarde se converter em molécula social.» (Sampaio,
1979. voI: 112)
Esta «molécula social, sobre a qual repousaria a
freguesia rural da medievalidade, corresponde em Alberto Sampaio aos
alicerces do seu organicismo, partilhado também por Jaime Lima. A
governação germânica ter-se-ia limitado a continuar a romana, principal
responsável pela identidade cultural do ocidente ibérico, ao fornecer a
língua, as instituições e os valores que argamassaram a grei:
«E assim a freguesia rural – molécula fundamental
da sociedade portuguesa, foi uma criação espontânea popular, nascida das
relações seculares entre os cultivadores de um mesmo prédio ou vizinhos,
remontando
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ao tempo em que Roma ensinou aos habitantes das cividades as suas leis e
a sua civilização.» (Sampaio, 1979, v. 1: 65)
Sem ignorar os povos da primitiva Ibéria, valorizava-se a
civilização romana, já que
«A romanização, apagando a língua, os costumes e o
direito indígenas, criou uma nova sociedade. É o período da grande e
definitiva civilização.» (Sampaio, 1979, v.1: 177)
É pois aqui que tudo começa, porque uma Nação é sobretudo
uma alma, e uma alma só existe com um povo, e um povo só comunica com
uma língua:
«Não data de Afonso Henriques a fundação de Portugal. É
romana. O que neste lugar da Ibéria havia de pré-romano foi inteiramente
absorvido pela romanização, e, facto capital, essa romanização
manteve-se na continuidade dos tempos, mal e escassamente se
modificando, sem perda essencial, para suportar as conjunturas a que o
tumulto político a sujeitou [...].» (Lima, 1924: 43)
A Nação é para Jaime Lima uma realidade cultural complexa, feita de
território, povo, língua e religião, elaborada com doses iguais de
emoção e razão e profundamente caldeada na história, o que, de certa
forma, justifica a sua preferência pelo conceito «pátria)) que ele
envolve numa auréola religiosa:
/ 61 /
«A Pátria é uma paisagem, o Chão e quanto o reveste,
desde o musgo das pedras até ao píncaro da montanha; e uma Raça, o povo
que veio a acarinhar esse Chão, a interrogar-lhe o desejo e a servi-lo;
e a Língua, um canto que envolve o Chão e a Raça e no seu eco abrange
toda a latitude e todo o hemisfério; e a Crença, a aspiração que
confunde o Chão, a Raça e a Língua no Imutável e no Perfeito a que os
transporta.» (Lima. 1923b: 152)
Esta Nação limiana não se identifica com o Estado-nação
liberal, antes parece opor-se-lhe e confundir-se com uma estética da
Natureza, que ultrapassa as fronteiras nacionais e mergulha na
humanidade (Lima. 1902: 216-220). Para Jaime Lima a diversidade do mundo
é a sua riqueza, e a própria nação, na sua unidade. alimenta-se também
de diferenças (Lima. 1886: 182), diferenças que podem ser cerzidas no
Estado, mas não negadas por ele.
O ideário limiano é, neste ponto, bem mais
tradicionalista que liberal, embora estas duas ideologias se cruzem
frequentemente num mesmo pensador, ao longo de boa parte da centúria de
Oitocentos. A ordem natural não é, para Jaime Lima, uma ordem económica,
girando em torno dos mecanismos que alimentam o capitalismo, mas sim o
resultado do evolver do processo histórico. engolfado nas raízes rurais
e na terra dos antepassados, a terra do pão e das árvores:
«Tão ávida de luz como as aves e tão firme na terra como
a rocha, a árvore é altíssimo apóstolo, entre os mais altos, do mistério
que liga aos céus a criação mortal.
/
62 /
Toda a grandeza física, toda a energia hercúlea, e toda a
violência caridosa, os angélicos voos de bondade, ali se reuniram e
identificam, conjugados no mesmo arrojo olímpico e benéfico. A
habitação, a sombra, a chama, a flor e o fruto; a força gigantesca que,
induzindo a raiz na penedia, a desagrega como a ferro e fogo; a graça
ondeante e alada de folhagem, vivendo à beira de água e namorando-a; o
ataúde, o berço e a nau ligeira, que corre sobre os mares de pólo a pólo
e liga continentes afastados, para ensinar aos homens mútuo amor e os
desprender de ódios de raça e instintos de combate: harmonias de desenho
e forma e cor nos troncos e nos lenhos de veias caprichosas enlaçadas –
os infinitos modos de existência terrena e anseio
eterno, todos nos dá a bênção do arvoredo. (Lima, 1906: 159)
(59)
A visão organicista da Nação fá-lo partilhar de outras
ideias, também caras ao tradicionalismo europeu, mas igualmente
presentes em correntes anti-individualistas de certos liberais, como
sejam os temas da associação natural, local e profissional,
contemplando, respectivamente, a família, o regionalismo e o
corporativismo. A sua ligação ao tradicionalismo descobre-se igualmente
na temática moral e, durante algum tempo, aquando da sua intervenção
política e cívica, na crença do papel das elites e da ordem, ainda aqui
recobertas pelo manto da
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ética e da moral cristã e longe, muito longe, da manipulação autoritária
e antidemocrática que posteriormente sofreram:
«São os videntes, e não os césares, que resgatam a
Pátria. A Pátria alimenta-se numa Bíblia, não se funda num
discurso, nem se contrata numa alfândega, nem se prescreve por editais.»
(Lima, 1923b: 153(60)
A Pátria de Jaime Lima volta as costas ao Estado liberal,
insurgindo-se contra o mimetismo português no decalque das instituições
francesas, que fez tábua rasa da identidade cultural e da idiossincrasia
nacional, impondo o império da Razão aos ditames da História e
promovendo a aculturação artística, social e política (Lima, 1925: 26 ss.).
A verdadeira Pátria estava na «grei» , palavra menos ambígua que «povo»,
porquanto
«O uso de uma ou outra destas expressões importa um
movimento profundo da consciência histórica: por uma corrupção
alimentada em divisões aristocráticas de diversa origem, «povo»
significava para o vulgo uma classe, a aglomeração das plebes,
opondo-se, em regra, ao poder das individualidades e das oligarquias, e
esta errada concepção da substância humana das nações corrigimos nós
pelo uso da palavra «grei», não significando esta uma classe ou indício
da condição social de agrupamento, mas, muito pelo contrário,
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exprimindo a incorporação de todas as classes em uma unidade homogénea,
da qual o nascimento e a vida das nações é apenas reflexo e palpitação.»
(Lima, 1924: 84)
A Nação não se constrói, como dizia Oliveira Martins, com
as espadas dos barões ambiciosos. O que amalgama a grei é a língua, esse
veículo unificador deixado pelos Romanos,
«a mais poderosa das energias imponderáveis, a maior
força de coesão que une os homens, a mais profunda das comoções que
vitalizam e fundem em comunidade os elementos humanos de uma nação. As
armas e todas as demais forças mortíferas congéneres serão apenas na
formação das nações um gesto ineficaz de ruindade, se, precedendo as
armas, a língua não conquistou e juntou por identidade de afectos o que
o político se propôs agremiar pelo peso da coacção. Porque a língua só
por simpatia insinua, não conhece outro medianeiro entre a realidade,
subentende um movimento de consubstanciação por força de homogeneidade;
e o aço que prevalece fugazmente por divisão pressupõe fronteiras
hostis, duas margens que ele é incapaz de reunir, porque reunir é a
negação da sua natureza essencial.» (Lima, 1924: 124)
A unidade nacional alicerça-se na «unidade da língua»(61),
não a
língua dos gramaticões, de cerviz dobrada à norma urbana
«de certa sapiência escolar aristocrática, empertigada e afinal
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Ignorante» (Lima, 1931 b: 22), subversora da liberdade que «anda a monte
pelas serras e pelos povoados distantes que de longe em longe esmaltam
os montes ermos) (id. ibid.), mas a língua do povo, com sua riqueza e
variedade, falares que exprimem a alma particular de cada rincão, vozes
de polifonia que teimam «em cantar a canção dos avós» (Lima, 1923b: 37):
Aqui, onde nasci e tenho vivido, falam dialectos
diferentes, no espaço de meia dúzia de léguas, Aveiro, Ílhavo e Murtosa.
Cada uma dessas terras canta a seu modo, em diversíssima música, a
linguagem, e cada uma forma uma família distinta, independente, com
carácter próprio em tudo e por tudo, desde o trajo à concepção dos fins
da vida humana, com sua psicologia singular incorruptível, suas
diferentes aspirações, diferente modo de ser e existir, diferente modo
de amar a terra, e Deus, e os homens.» (Lima, 1923b: 36)
Algumas vezes, quando fala da «Nação», Jaime Lima parece
contradizer-se, embora a incongruência seja apenas aparente, pois o
conceito tem, no escritor aveirense, dois sentidos: umas vezes
confunde-se com a ideia de «Pátria», outras
aproxima-se mais de Estado-nação, de grupo politicamente organizado, na
esteira da tradição vintista.(62)
Jaime Lima desvaloriza esta última acepção, afastando-se, também neste
ponto, do ideário liberal, e, assumindo explicitamente o desvio,
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socorre-se da oposição citadino/provinciano, colocando no primeiro a
nação-organismo político e no segundo a nação povo. Aqui radicam, na sua
opinião, as diferentes reacções à profunda crise política, social e
económica de Portugal: os «citadinos», o Portugal urbano e aculturado,
porque vêem na «Nação» o organismo político, olham o futuro com
pessimismo; os «provincianos», o Portugal rural e genuíno, porque
identificam a «Nação» com o povo, são optimistas como ele (Lima, 1902:
163-168), já que,
«quando a nação acabar, ficam ainda cinco milhões de
portugueses, homens sadios e belos, trabalhadores, sóbrios, duma
maravilhosa organização moral, amoráveis, resignados, almas de poetas
com eternos amores, cantos de sublime saudade que em todo o mundo não
têm iguais. E eu creio nesse povo, na sua resistência, na sua grandeza,
nos seus destinos. Foi conduzido por maus pastores à escravidão; mas não
se perverteu. Aspirações e energia conservam-se intactas, puras.
Ora aqui tem onde vou enxertar o meu optimismo, já agora inabalável,
enquanto não me mostrarem que o povo português é diferente do meu juízo
e que ainda na escravidão pode haver maior dignidade e grandeza do que
numa corrompida independência.» (Lima, 1902: 167)
Percebe-se agora o seu amor pela natureza, na senda de
Ruskin e Tolstoi (Lima, 1902: 215), a importância que atribui à arte
popular e de raiz popular (Lima, 1931b), e o entusiasmo com que nos fala
da obra de Camilo, Ramalho Ortigão, Lopes Vieira ou Correia de Oliveira
(Lima, 1933a). Tudo se
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deve ao valor da tradição, porque, se ela abrange «todo o modo de ser
individual e social, não lhe será indiferente o Estado, a Igreja e a
Família em todo o largo espaço das suas multíplices actividades. (Lima,
1933a: 50).
Não tiremos, no entanto, conclusões precipitadas. A
tradição limiana, sustentáculo da sua «pátria-nação», não se realiza
numa visão redutora de conservantismo, que ignore o evolver do processo
histórico, antes, à maneira comteana, concilia ordem e progresso,
estática social e dinâmica social, uma ordem imutável e uma renovação e
actualização permanentes,
«Porque a tradição é como a árvore: ao fim de alguns anos
poderá não ter uma só partícula das substâncias em que veio á luz e
tomou corpo, ou, pelo menos, se a tem, não a conservará no estado
primitivo da nascença; cresceu, alargou-se, desfez-se de muitos ramos
secos, desprendeu-se de muitos musgos e líquenes que a envolviam e
cobriam, e todavia, não sendo igual um só dia ao que fora no dia
anterior, sendo antes uma negação radical do conservantismo, a imagem
duma mobilidade incansável, perpetuamente variando, mantêm, por milagre
da sua aspiração, uma identidade ininterrompida, é uma e a mesma quando
tinha um ano e quando teve cem anos, quando tinha uma polegada e quando
teve dez braças.» (Lima, 1933a: 49-50)
_________________________________________
(52)
– HERCULANO, Alexandre – História de Portugal, Lisboa,
1846, voI. 1.
(53)
– MARTINS, Oliveira – História de Portugal, 1879.
(54)
– José Leite de Vasconcelos (1858-1941), etnólogo e filólogo
de renome, uma das principais autoridades no estudo da língua
portuguesa.
(55)
– Francisco Martins Sarmento (1833-1899), arqueólogo que
dedicou grande parte das suas investigações à cultura castreja do
noroeste da Península.
(56)
– Júlio Moreira (1854-1911), filólogo autor dos Estudos da
Língua Portuguesa, 1907-1913, 2 voI.
(57)
– João da Silva Correia (1891-1937), linguista, doutorou-se em
1929 e foi catedrático da Faculdade de Letras de Lisboa de 1930 até à
sua morte prematura.
(58)
– WELLS, H. J. – A short history of the World, Londres: The
Labour Publishing, 1924, p. 46, apud Lima (1968: 47)
(59)
– A metáfora da árvore foi muito utilizada pelo tradicionalismo do
século XIX, aparecendo com frequência em escritores e pensadores como
Chateaubriand, Taine, Barrés, Maurras, Malraux, Saint-Exupéry. etc. (Touchard,
1970, v. 5: 110-111).
(60)
– A frase, sendo de 1923, ganha um significado acrescido,
bastando lembrar que um ano antes, na sequência da «Marcha sobre Roma»,
Mussolini subira ao poder.
(61)
– Jaime Lima defende esta causa Já em 1923 (Lima, 1923b,
passim), sete anos antes de Jaime Cortesão fazer outro tanto (Cortesão,
1978: 43-57). A primeira publicação deste ensaio data de 1930.
(62)
– Para as diferentes cargas semânticas das palavras «nação»> e
«pátria», no período vintista, ver Verdelho (1981: 198-204).
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