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Memórias de José Pereira Tavares - pp. 87-119

 

VII

Dos professores mais votados para o cargo de Reitor, fui eu o escolhido pelo Governo. A nomeação saiu no Diário n.º 163, de 14 de Junho de 1926, e a posse foi conferida pelo professor mais antigo, Manuel Rodrigues Viena, no dia 15, na presença de todos os professores, efectivos e provisórios, em exercício. Nas funções em que era investido, poderia eu fazer mais, muito mais do que durante a gerência interina. Assim o prometi na ocasião da posse, e a consciência diz-me que o cumpri como pude e soube.

* * *

Segue-se agora uma página, bem dolorosa, da minha vida: a referência à trágica morte do meu íntimo e sempre chorado amigo Júlio Moreira. As minhas relações com esse portuense ilustre, a mais fulgurante inteligência da minha roda de amigos, haviam-se tornado cada vez mais íntimas, principalmente a partir da minha estada no Porto, em serviço de exames (Agosto de 1922). Depois da publicação de A Graça Portuguesa, começou o meu amigo a queixar-se de falta de saúde. Os médicos receitavam-lhe, além de remédios, injecções e tratamentos – a mudança de ares e distracções. Em 1923, nas férias grandes, aluguei para o doente uma casa no Bonsucesso, perto de Aveiro, onde ele, cheio de alegria se instalou, pois havia assim a facilidade de nos vermos amiudadas vezes. Poucos dias, porém, lá se conservou: um álbum de postais, pertencente ao dono da casa, revelou a Júlio Moreira que aquele estivera em tratamento na Suíça... Isso levou-o a abandonar o ninho...

Depois, foi uma tortura. Convenceu-se o querido amigo de que tinha os primeiros sintomas da paralisia geral, e isso era nele uma obsessão. A certa altura, meteu-se na cama, donde ninguém conseguiu arrancá-lo. Ainda pensou em ir à Alemanha consultar um especialista, peregrinação – dizia ele – em que eu teria de o acompanhar... Mas depressa abandonou esse projecto, convencido de que o seu mal não tinha cura: acabaria como todos os desgraçados que aquele mal ataca, imbecilizado, verdadeiro farrapo humano. Essa lembrança / 88 / horrorizava-o. Tinha grandes crises de neurastenia, durante as quais a irmã, a Mimi, com quem vivia, era impotente para lhe dar algum sossego. Volta e meia, era chamado ao Porto, ora pela irmã, sem que ele o suspeitasse, ora por ele. Por último, ia eu visitá-lo todas as semanas, em algumas das quais mais de uma vez. Com o meu aparecimento, aquela casa da Cancela Velha transformava-se de inferno em céu: o doente manifestava-me todo o seu humorismo, como se nada ensombrasse aquele espírito doente. A irmã rejubilava com a transformação...

Era eu o único amigo que ele recebia. Não escrevia; não podia escrever, afirmava, com a maior das convicções. E a irmã foi arvorada em secretária, a quem o doente ditava as inúmeras cartas que me dirigia.

Até que um dia, de combinação com a D. Mimi, consegui que o José Gamelas levasse ao Porto o Dr. Elísio de Moura. Ninguém assistiu ao encontro; mas percebemos que Júlio Moreira andou, à ordem do clínico, a marchar pelo quarto...

Essa visita veio, afinal, contribuir para a precipitação da tragédia. Passado dias, depois de ouvir o médico Magalhães Lemos, mandava-me esta carta, datada de 1 de Agosto de 1926: «Meu caro José Tavares: Veio hoje o Magalhães Lemos. Declarou-se impotente – pelo menos diante de mim – para estabelecer diagnóstico seguro antes da análise do líquido céfalo-raquidiano, o que significa, afinal, que anda muito próximo do meu precoce diagnóstico. Não me ocultou o estado dos reflexos, nem deixou de confirmar o que eu sempre reconheci, apesar das incompreensíveis contraditas de meio mundo: a paralisia das pernas. Encontrou os reflexos totalmente abolidos da terceira alma de Platão para baixo. Estou paraplégico, e o resto ver-se-á com o tempo, mestre dos mestres e coveiro de todos. Não te aflijas com isto, porque eu próprio estou calmo e sorridente. Vê como vou chalaceando desempenadamente. Não há tristeza que valha a pena que dá. Afastemo-nos dela, coloquemo-nos em ponto sobranceiro, donde nos seja possível ver a universal claudicação das ilusões e a espionagem que a dor semeia astutamente à roda do pícaro cortejo, – e então, / 89 / perante esse cómico manquejar da vaidosa humanidade, já todos sentiremos que onde está o homem deve dominar o riso. Consegui instalar-me no pico luminoso: sou, afinal, feliz. Os nossos cumprimentos para todos e beijos à Hermeliana. Novos abraços e novos e calorosos agradecimentos ao João e José Gamelas, cujos sacrifícios em meu favor, tão pesados para eles, são, para mim e transformados pelo meu coração em reconhecimento e saudade, leves e cariciosos como tudo que a vida possa produzir de mais delicado em floração de beleza moral. A ti e a tua Esposa, pelo que de tão nobre têm feito e pelo que de sublime abnegadamente quiseram aventurar-se a fazer (1), nem sei que palavras dirigir, porque já a gratidão não encontra tintas ajustadas ao lívido crepúsculo da alma. Tentaria confiar ao meu próprio punho as palavras que ditei, se não estivesse esgotado pela redacção do relatório e de outra carta que, para tranquilidade da consciência, fui obrigado a escrever, intimando a publicação imediata do Livro do grande e desventurado Duarte Solano (2). Sossega, porém, e não te melindres. As últimas linhas hão-de ser endereçadas para casa da minha querida família de Aveiro. Quando sentir a vizinhança do momento redentor, tomarei a pena, ainda que seja para te dizer simplesmente: um grande e comovido abraço do teu velho amigo – Júlio.».

Esta carta, impressionantíssima, mostrava-nos o desespero de quem a ditava. Minha mulher disse-me:

– Ai, José! O Júlio vai suicidar-se!"

Infelizmente, recebi-a apenas no dia 3. No dia seguinte, terminaria o serviço de exames de admissão, e já eu poderia marchar para o Porto, a fim de evitar a catástrofe... / 90 /

Mas os acontecimentos precipitavam-se vertiginosamente: no dia 4, recebi, na sala dos exames, o lacónico telegrama de D. Mimi – "Júlio faleceu"!

Cheguei a casa com o coração retalhado de dor. Almocei precipitadamente e tomei o "rápido". Na estação, comprara o "Jornal de Notícias", que, em duas linhas, referia o suicídio do meu desventurado amigo! Fora nessa madrugada. O corpo de Júlio Moreira estava depositado no necrotério do cemitério de Agramonte!

Momentos de terrível amargura me esperavam naquela casa amiga, do Largo da Cancela Velha. Juntei as minhas lágrimas às da desolada irmã do querido amigo. E então foi-me entregue esta carta, escrita pouco antes do desesperado acta: «Para José Tavares» – dizia. E depois: «Meu querido José Tavares: Prometi; venho cumprir. A carta que deixo a minha irmã, tornou-me mais tormentoso este último instante. Pouco poderei dizer-te; o teu coração adivinhará o resto. Fico nos termos da promessa: aqui tens o derradeiro abraço do teu velho e gratíssimo amigo Júlio.» E soube também que na carta, dirigida a D. Mimi, se faziam recomendações acerca do destino de seus bens, que, por morte dela, passariam para o amigo de Aveiro... E deixou determinado que a mobília do seu escritório e todos os livros que eu quisesse me fossem imediatamente entregues. Mas há mais: dentro da gaveta da mesinha de cabeceira, apareceu escrito, em meia folha de papel, o seguinte, espécie de apostila ao que já me escrevera: «… Vá mais um esforço, porque desejo que sejam para ti as últimas linhas que escrevo. E passe com estes restos de miséria a gratidão mais profunda. Hei-de escrever desconexamente como o meu estado determina. Assim, a um primeiro pedido que consiste em requerer que dês a tua Esposa metade do reconhecimento que te envio, juntam-se recordações de outra ordem, atinentes a fins muito pessoais, como vais ver. Deixo, em mãos de minha irmã, a declaração expressa de que desejo que todos os meus originais sejam destruídos. Só tu terias voz, no caso de parecer discutível este desejo irrevogável. Por isso, é necessário esclarecer-te e provar-te que seria ultraje à minha memória toda a resistência à minha última vontade. Eu anotava, esboçava e planeava, fiado no / 91 / tempo e sempre desejoso de enriquecer os meus temas e ampliar os recursos do meu espírito. Daí resulta que tudo quanto deixo é caótico e, por vezes, incompreensível: são materiais estéreis e enigmáticos para quem quer que os retome. O pouco que tomou forma explícita corresponde a períodos de actividade intelectual muito ingénua, que eu renego em absoluto. Para mais, e voltando à primeira espécie de manuscritos, a minha forma de anotar era extravagante, toda baseada na confiança no meu espírito e nas minhas forças; apertava-me em laconismos que a outros hão-de parecer diabruras de bruxo. Fica, pois, assente, irrevogavelmente, que não consinto a publicação duma só linha, – e tu, que és a lealdade em pessoa, serás decerto o primeiro a batalhar pela minha resolução, se vires que alguém surge a contraditá-la. O mesmo veto passa também aos artigos que saíram no Brasil (3), porque, esses, estão todos marcados com o lúgubre sinal da decadência e contêm, muitos, matéria perigosa e contaminante. Hão-de morrer nas colunas em que viram a luz, – mausoléu já rico demais para eles.»

Os originais a que aqui se faz referência foram queimados dias depois. Os mais importantes intitulavam-se "Humoristas Portugueses" (Introdução) e "Divagações sobre a estética da Língua Portuguesa". / 92 /

No dia 6 de Agosto, realizou-se o funeral, em Agramonte. Muito simples, mas profundamente comovedor na sua eloquência muda. Éramos, simplesmente, seis, os amigos: Henrique Gomes da Silva, hoje Dir. Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais; Álvaro Vieira Soares David; Alberto Pinto, irmão do morto, do primeiro casamento de sua mãe; o Garrido; o Corte Real, e eu. Abeirámo-nos do ataúde, e trouxemo-lo para fora do necrotério e colocámo-lo na carreta que o ia conduzir à sepultura. Nem uma palavra: há o silêncio dos sublimes momentos do recolhimento. Lá vai! Seis velhinhos da "Mendicidade" empurram suavemente a carreta. Atrás, vão os amigos, os seis amigos, únicas pessoas que assistem àquele último acto de uma tragédia, de olhos marejados, silenciosos, cabisbaixos, como sonâmbulos que ainda verdadeiramente se não haviam convencido de que o Júlio ia ali morto, mudo, calado para sempre, ele que era a viveza, a loquacidade e a alegria em pessoa! Chega-se junto do coval. Os coveiros tiram da carreta o esquife, aproximam-no da cova, traçam duas cordas e... os restos mortais de Júlio Moreira baixam à derradeira jazida e pouco a pouco vão desaparecendo sob enxadadas de terra. Os amigos – só seis! – espalhados, soluçam, limpam as lágrimas, como que envergonhados de se surpreenderem chorando. A tarde ia caindo!...

A recordação deste amigo querido acompanhar-me-á até à morte. Até hoje, prestei-lhe duas pobres homenagens: dediquei à sua memória o meu modesto trabalho sobre "Ortografia Portuguesa" (1928) e o pequeno estudo de "Alguns Aspectos da Linguagem de Machado de Assis" –, que foi publicado no primeiro volume da revista "Brasília" (1942), no qual faço referência ao labor literário desse tão ilustre quão infortunado português. Se houvesse vida de além túmulo, estou certo de que Júlio Moreira se sentiria feliz, ao reconhecer que o Tavares se mantinha fiel à sólida amizade que em vida nos ligou.

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Em 2 de Outubro de 1926, foi publicado o Estatuto do Ensino Secundário (Min. da Instr. – Dr. Ricardo Jorge Júnior). O Curso Liceal foi reduzido para seis anos: C. Geral com cinco (1.º cicIo – três anos; 2.º ciclo – três anos), seguido / 93 / do Curso Preparatório de Letras ou do C. Preparatório de Ciências, com um ano cada um. A consequência imediata seria o abaixamento da cultura... No respeitante à língua materna, havia diminuição de horas lectivas, e isso a despeito do que no preâmbulo se dizia: «Ao Português e a tudo quanto diz respeito a coisas portuguesas deu-se lugar primacial: antes de tudo e acima de tudo, o conhecimento da nossa língua, do nosso povo, da nossa Pátria.» Parece mentira, mas é a verdade! De forma que, não obstante o muito sensível aumento dos vencimentos e gratificações do pessoal, todos reconheciam que o sapateiro empunhara o rabecão e que, portanto, a letra do Estatuto não vigoraria muito tempo...

O Estatuto criava um conselho de inspecção para o qual fui telegraficamente convidado pelo Ministro no dia 5 de Novembro. Escusado seria dizer que não aceitei o cargo que se me oferecia, não obstante concordar, em princípio, com a inspecção.

No dia 23 de Dezembro do mesmo ano, o novo Ministro da Instrução, Dr. Alfredo de Magalhães, visitou Aveiro e esteve no Liceu. Mostrei-lhe as deficiências das instalações e obtive a promessa de subsídio para as obras de adaptação do Anexo, que a Reitoria julgava inadiáveis.

O mesmo Ministro, então acompanhado pelos da Guerra e do Comércio, voltou a esta cidade no dia 31 de Dezembro. Por sinal que, tendo os colegas regressado a Lisboa, o Dr. Alfredo de Magalhães veio a minha casa passar cerca de duas horas que faltavam para o comboio em que seguiria para o Porto, – na altura em que minha Sogra, doente desde o dia 8 em virtude de forte ataque cerebral, nos ocupava todas as atenções. E foi preciso dar café ao Ministro e a quantos o acompanhavam...

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O decreto n.º 13056, de 22 de Janeiro de 1927 (Min. da Instr. – Dr. Alfredo de Magalhães), reorganizou os serviços do Ensino Secundário, anulando grande parte das disposições do malfadado Estatuto. Regressou-se ao Curso Geral / 94 / de cinco anos, seguido dos Cursos Complementares de Letras e Ciências, com dois anos cada um.

Até princípios de Março desse ano, ainda se não havia cumprido a promessa da concessão do subsídio para obras no Liceu. Resolvi, portanto, ir a Lisboa avistar-me com o Ministro (7 de Março). Esperava-me uma surpresa... O Dr. Alfredo de Magalhães, por sugestão de Fidelino de Figueiredo, convidou-me para seu chefe de Gabinete. O emprego não me sorria. Agradeci, mas não aceitei. O principal foi conseguir, nessa altura, a promessa do subsídio de cinquenta contos. O decreto respectivo (n.º 13 360) foi lavrado no dia 28 desse mês.

O Liceu era, desde 1918, designado sob o nome de "Vasco da Gama", sem que o Conselho Escolar fosse para isso ouvido. Por outro lado, a opinião pública aveirense várias vezes se manifestara a favor do nome de "José Estevão", para patrono do seu primeiro estabelecimento de educação. Dando satisfação a esse desejo, e também porque era a minha própria opinião, apresentei ao Conselho Escolar a seguinte moção, que foi aprovada: «Considerando que muitos dos liceus do Continente e Ilhas são designados pelo nome de um português ilustre, filho da respectiva localidade ou região (Emídio Garcia, Eça de Queirós, Mousinho da Silveira, Fialho de Almeida, João de Deus, Manuel de Arriaga, Antero do Quental, etc.); Considerando que a cidade de Aveiro deve inúmeros serviços ao seu dilecto filho José Estêvão Coelho de Magalhães, entre eles a construção do edifício principal do Liceu, de sua exclusiva iniciativa; Considerando que muitos aveirenses se têm manifestado junto da reitoria deste Liceu a ponderar o acto de justiça que representaria para a memória do grande orador o pedir-se ao Governo que o Liceu de Aveiro passasse a viver sob o seu patronato; Considerando que a imprensa local já se tem ocupado do assunto, com todo o interesse, manifestando a mesma opinião; Considerando que, não obstante a grandeza histórica da figura de Vasco da Gama, esta designação não traduz qualquer relação entre a cidade de Aveiro e o nome do excelso descobridor do caminho marítimo da Índia, O Conselho Escolar deste Liceu, tendo em conta os serviços que a cidade de Aveiro recebeu de José Estêvão, grande liberal / 95 / e o maior orador parlamentar português, resolve, por unanimidade, que se represente ao Governo da República no sentido de que o Liceu de Vasco da Gama passe a designar-se "Liceu de José Estêvão", em homenagem à memória de tão ilustre e querido filho de Aveiro.» E aos desejos do Conselho Escolar foi dada satisfação pelo decreto n.º 13606, de 12 de Maio de 1927.

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A Associação dos Professores dos Liceus, reorganizada por iniciativa da revista “Labor”, resolveu realizar o seu primeiro Congresso no Liceu de Aveiro, nos dias 10, 11 e 12 de Junho desse ano de 1927. O Ministro da Instrução, apesar de convidado, não assistiu à sessão inaugural e delegou, telegraficamente, em mim... Seria fastidioso referir aqui o que foi essa admirável prova da vitalidade e competência da minha classe: tudo se acha historiado no respectivo Livro, organizado por Álvaro Sampaio, secretário-geral e mandado publicar pela Associação. Basta dizer que, entre as conclusões, saiu a de que o Curso Liceal deveria ter a duração de oito anos (seis de Curso Geral e dois de preparação para os Cursos Superiores), e que no meu discurso de abertura frisei a necessidade de que os Liceus fossem escolas de rigorosa selecção.

A ausência do Ministro à sessão inaugural foi asperamente censurada na “Labor” por Álvaro Sampaio. Por tal motivo, fui telegraficamente chamado a Lisboa, por ordem do Ministro. Parti no dia 14 de Julho, no rápido da noite. No dia seguinte, fui recebido no Ministério. Pois o Dr. Alfredo de Magalhães não me tocou no assunto! No dia 16, na ocasião em que, na estação do Rossio, aguardava a chegada do Ministro, em cuja companhia viajaria, surpreendi, numa roda de amigos, o Dr. Fidelino de Figueiredo. Logo que me viu, veio falar-me e fez-me uma grave confidência: dentro de breves dias, dar-se-ia um golpe de Estado contra o Governo, no qual estavam, com ele, Fidelino, envolvidos o General Carmona e o Coronel Passos e Sousa, e eu seria chamado para o auxiliar no gabinete da Instrução... (Devo dizer que nesta altura já Fidelino de Figueiredo havia cortado as relações com Alfredo de Magalhães). Fiquei estupefacto, mas céptico... Afinal, no dia 12 de Agosto tentou-se o anunciado / 96 / golpe de Estado. Fidelino foi preso, e o Gen. Carmona e o Cor. Passos e Sousa não apareceram. Coisas que a História por enquanto ignora, mas que talvez um dia venha a desvendar!

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As obras de adaptação do Anexo do Liceu, tal qual ainda hoje se vêem, foram feitas durante as férias grandes de 1927.

No “Diário do Governo” de 22 de Outubro, foi publicada a seguinte portaria: «Tendo o reitor e o corpo docente do Liceu de José Estêvão, em Aveiro, conseguido imprimir nos últimos anos, notáveis progressos na acção educativa do estabelecimento a seu cargo, os quais amplamente se evidenciam no Anuário do mesmo liceu, recentemente publicado; Considerando que para atingir o aludido aperfeiçoamento têm os referidos reitor e corpo docente empregado acentuado desvelo, assinalada inteligência, excelentes unidades de vistas e espírito de cooperação, que constituem o fundamento da execução proveitosa do ensino secundário; Manda o Governo da República Portuguesa, pelo Ministério da Instrução Pública, que ao reitor e professores do Liceu de José Estêvão, em Aveiro, seja dado público testemunho de louvor. Paços do Governo da República, 19 de Outubro de 1927. – O Ministro da Instrução Publica – José Alfredo Mendes de Magalhães.»

Na noite de 17 de Dezembro do mesmo ano, realizou-se, na biblioteca do Liceu, uma sessão solene de homenagem ao patrono da nossa casa de trabalho. Falou, com o costumado brilhantismo, sobre "José Estêvão", o Dr. Jaime de Magalhães Lima, e dignou-se assistir o filho do grande orador, Dr. Luís de Magalhães. A oração de Jaime Lima foi editada pela revista “Labor”.

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Em 22 de Janeiro de 1928, estive presente, com Álvaro Sampaio, na manifestação que, por iniciativa da Associação dos Professores do Liceu de Bragança, se prestou ao Dr. José Maria Rodrigues, na Faculdade de Letras de Lisboa: Álvaro Sampaio representava a Labor, eu o Liceu de José Estêvão. A nossa / 97 / Revista, em o número saído no princípio do mês (n.º 11, ano IIl), já se associara à homenagem, publicando, com o retrato do eminente professor, acompanhado de palavras minhas, artigos de José Joaquim Nunes, António Augusto Pires (Bragança) e Pedro Gradil (Aveiro). A sessão de homenagem, a que presidiu o Ministro da Instrução (Alfredo de Magalhães), acha-se relatada em o número 12 da Revista (Março de 1928). Nesta ocasião, foi-me dado conhecer pessoalmente o Dr. Agostinho de Campos, que na sessão falou a seguir aos Drs. Cirilo Soares, presidente da Federação dos Professores Liceais, e António Augusto Pires, e antes do Dr. Estanco Louro, do Liceu de Pedro Nunes e membro da Direcção da Federação, e do Ministro, com cujo discurso se encerrou a cerimónia. Em seguida, a assistência foi a casa do Dr. José Maria Rodrigues, apresentando-lhe cumprimentos. Muito comovido, aquele professor não tinha outra frase senão esta: – "Muito abrigado! Muito obrigado!" Quando me apertou num abraço, segredou-me ao ouvido: "Você é um homem das arábias!".

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Dois dias depois, 24, fez o Dr. Bento Carqueja, na biblioteca do Liceu, uma conferência pública sobre a "Utilização da Ria de Aveiro". Continuava assim a acção cultural do Liceu, apesar do cansaço já anteriormente manifestado pelo público.

No dia 6 de Abril desse ano, sofri um grande desgosto. Resolvêramos fazer obras na casa da Rua de José Estêvão, a fim de nela nos instalarmos. Os trabalhos, havia pouco iniciados, prosseguiam com certa rapidez... Pois naquele dia, Sexta-Feira Santa, na ocasião em que pela rua desfilava, grave e cadenciadamente, a procissão do Enterro, o antigo telhado derruiu com enorme fragor e grande parte dele foi cair sobre a casa do vizinho! O sinistro causou grande pânico, desorganizando o cortejo. Os padres que conduziam o esquife do Senhor Morto, julgando talvez tratar-se de bomba, estiveram quase para o abandonarem e se porem em fuga... Por fim, tudo serenou, e o Enterro seguiu a sua rota. Entre os fiéis, houve quem atribuísse o desastre à circunstância de eu ser ateu e jacobino... Ora pois! Creio que alguns cabelos me embranqueceram / 98 / nessa ocasião, pois a derrocada agravou, em mais de dez contos, o primitivo orçamento. Além disso, os meus vencimentos foram em breve diminuídos em mais de 500$00 mensais, o que nos obrigava a adiar, talvez indefinidamente, a amortização da dívida que fôramos obrigados a contrair, e a pagar juros – coisa horrível para quem quer viver sem vergonha do mundo... Uma tragédia!

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O Governo da Ditadura começava a sua tarefa de centralização. No dia 18 de Abril de 1928, foi publicado o decreto n.º 15.392, pelo qual «os reitores dos liceus são nomeados, por livre escolha do Governo, de entre os professores efectivos do ensino secundário oficial…» Em vista disso, em 23 desse mês, pedi a demissão, que me não foi aceite. Pouco depois, eram demitidos todos os reitores; mas, entre os reconduzidos, estava eu...

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Nesse ano de 1928, a 16 de Maio, completava-se o 1.º Centenário da revolução liberal de Aveiro contra a tirania de D. Miguel. Os liberais de Aveiro trataram de tomar posição para a comemoração do acontecimento. Da Reunião feita no Teatro Aveirense, na noite de 15 de Janeiro, saiu a Comissão dos festejos, a que presidiria o jornalista Homem Cristo. As reuniões faziam-se na sala das sessões da Câmara Municipal. Numa delas, foi resolvido que se fizessem sessões públicas de propaganda. Na primeira, realizada na noite de 10 de Março, no Teatro Aveirense, completamente à cunha, falei eu sobre "A revolução de 1828. Sua integração na História Pátria". Transcrevo o que, em correspondência de Aveiro, a respeito do meu trabalho publicou, na primeira página, o diário de Lisboa "O Rebate": «No Teatro Aveirense, realizou nesta cidade uma notável conferência o sr. dr. José Tavares, ilustre reitor do Liceu de Aveiro o Versou o tema "A Revolução de 1828", explicando numa larga lição de História as diferentes fases evolutivas da vida e independência portuguesas. Incidiu sobre o liberalismo contra D. Miguel, e direitos do Homem, proclamados em 1789, quando da grande Revolução Francesa. / 99 /

Assistiu o Dr. Homem Cristo, que expôs à assembleia, que era numerosa, que este trabalho, a todos os títulos notável, é o início de uma série de conferências a realizar, preludiando as festas da cidade de Aveiro. No final de sua magistral oração, o sr. dr. José Tavares, grande democrata liberal, foi muito cumprimentado por todas as autoridades de destaque ali presentes. Esta notável lição de História calou muito bem no espírito de todos os que se encontravam no recinto, e que ficaram radiantes por lhes ser dito na linguagem clara, lógica e afectiva do nosso ilustre amigo, sr. Dr. José Tavares, que tinham nascido numa terra de gloriosas e liberais tradições, na terra em que Portugal levantou estrondosamente o primeiro sinal de alarme contra a nefanda obra do absolutismo real. Apontou o culto conferente uma série de nomes de liberais aveirenses que mais trabalharam pela liberdade, frisando aqueles que, pela gana fanática dos absolutistas, foram decapitados, e postadas suas cabeças nos lugares públicos de Aveiro, e mesmo junto de suas casas! Ouvindo ou lendo o trabalho do distinto reitor do liceu de Aveiro, respira-se verdade e sinceridade, e há nele passagens candentes de repulsa e exaltação, que num entusiasmo comunicativo arrepiavam a sensibilidade dos ouvintes. Poucas vezes temos assistido a uma lição tão completa e emocionante

A segunda conferência de propaganda, no dia 26 de Março, proferiu-a o Dr. André dos Reis, que falou sobre "Absolutismo e Democracia".

A Ditadura ensaiava ainda os primeiros passos: não sabia mesmo que rumo havia de tomar... De outra maneira, não só me seria impossível fazer as afirmações que fiz na conferência, na qual li, integralmente, a tradução dos Direitos do Homem, verdadeira heresia nos tempos que vamos atravessando!, mas também não seria permitido fazer-se qualquer comemoração, demais a mais com a colaboração das autoridades locais! Quem presidiu à minha conferência foi o Governador Civil, e o Governador Civil incorporou-se no imponentíssimo cortejo cívico do dia 16 de Maio. Bons tempos!

Eis agora, em pálida súmula, o que foram as festas da cidade: Domingo, 13 de Maio: Festa de Santa Joana; às 14 horas, inauguração do III Congresso / 100 / Beirão (Secretário Geral – Dr. Ferreira Neves); Feira-Exposição no Rossio; à noite, récita no teatro, com ópera portuguesa (Rui Coelho) e concerto de violino por Luís Barbosa. – Segunda-feira, 14 de Maio: Congresso Beirão (23 e 33 sessões); à noite, 23 récita; Terça-feira. 15: 4.ª sessão do Congresso; passeio fluvial; à noite, sarau de gala, em que discursou o Dr. Jaime de Magalhães Lima, e o Dr. Alberto Souto leu uma oração do Dr. Luís de Magalhães, presente ao acto; Quarta-feira. 16 de Maio (feriado e grande gala em Aveiro): Alvorada, sessão de encerramento do Congresso, imponente cortejo cívico, organizado na parada do regimento de Cavalaria e dissolvido no cemitério, onde, junto do monumento aos justiçados de 1829, falaram Homem Cristo, Tomás da Fonseca e Vitorino Nemésio, representante da Academia Liberal de Coimbra; iluminações na Ria, concertos, serenata na Ria; Quinta-feira. 17: lançamento da primeira pedra na Avenida, para o monumento à liberdade; concerto, no jardim público, à noite, pela banda da Guarda Republicana de Lisboa; Sexta-feira, 18: visita à casa de Joaquim José de Queirós, em Verdemilho e à sua sepultura, no cemitério do Outeirinho, junto da qual falaram Dr. Alberto Souto e Acácio Rosa; à noite, iluminações na Ria; Sábado. 19: iluminações; Domingo. 20: último dia da Feira-Exposição; batalha de flores no parque da cidade; marcha milanesa, à noite, e iluminações.

Apraz-me, ainda, transcrever aqui o artigo que publiquei no jornal "O Debate" do dia 13 de Maio, intitulado "Glória aos mártires da Liberdade", que só vale pela afirmação da minha coerência. Rezava o seguinte: «Frequentávamos o Liceu desta cidade, quando o vírus republicano nos entrou nas veias. Lendo e ponderando as discussões de progressistas e regeneradores, travadas nos jornais de ambos os matizes; assistindo a essas ferozes e estéreis pugnas, que haviam de produzir, mais do que os camartelos jacobinos, a ruína da Monarquia; estudando e meditando a História, vimos que a nossa atitude de português, verdadeiramente amante da sua Pátria e das tradições nacionais, outra não devia ser senão a de liberal. Nesse tempo de paixões políticas, fomos também ardente defensor das ideias liberais; líamos os jornais e livros mais avançados, frequentávamos os centros republicanos, assistíamos a comícios dos mais agitados / 101 / e irreverentes; e, muito embora nos dissessem alguns homens experimentados que depois, terminando o Curso, na vida prática, as conveniências nos arrastariam, como a eles, para a esquerda, centro ou direita dos partidos monárquicos, era profunda a nossa convicção de que, por mais variadas que fossem as vicissitudes por que o destino nos houvesse de fazer passar, nunca poderíamos ser senão o que éramos então: republicano. Ainda antes da proclamação da República, assistimos a este espectáculo, que ao nosso espírito repugnava: alguns dos rapazes que acotoveláramos em manifestações liberais de vária natureza e que então aos quatro ventos se declaravam republicanos, iam-se passando, consoante as conveniências de ordem económica, para qualquer dos partidos que guardavam poder. E o nosso idealismo sofria com essas defecções. Com o andar dos anos, foram-se esfriando os entusiasmos, foi arrefecendo em nós a fé nos homens que admiráramos e que com o nosso entusiasmo tínhamos ajudado a elevar às culminâncias do poder e da glória política; mas uma convicção ficou, e é que, se os homens não correspondiam à nossa expectativa, os princípios se mantinham na sua natural e indelével pureza. A nossa posição era a mesma; as desilusões da experiência é que operavam em nós uma transformação dolorosa: descríamos dos humanos. Tivemos um amigo – saudoso e sempre chorado será ele! – (4) que um dia nos declarava, em conversa, pouco mais ou menos o seguinte: «Não me sinto arrastado para qualquer partido político, nem para qualquer seita ou confissão religiosa. Porquê? Porque tenho horror aos princípios da disciplina de uma e aos dogmas da outra? Não: do que tenho medo é dos correligionários!» E tinha razão. Os princípios são bons. Os homens é que quase nunca correspondem, porque a maior parte das vezes não são os princípios que lhes norteiam os actos. Dessas ideias bebidas na mocidade, nos tempos das ilusões e dos ideais generosos, uma se nos manteve, absolutamente fiel e inalterável – o amor da liberdade. A mesma causa que no-la insuflou no espírito no-la mantém. E nunca, mesmo depois do aparecimento dos primeiros cabelos brancos, nunca sentimos que o nosso / 102 / republicanismo colidisse com o culto das tradições pátrias, obrigando-nos a mudar de posição para defesa delas. Sendo liberal, somos, por isso mesmo, entusiásticos defensores das nossas tradições. Para isso, não nos é mister ter de sair do lugar onde sempre estivemos e donde jamais sairemos. Não reconhecendo antagonismos entre o liberalismo e o culto das tradições nacionais, liberal e tradicionalista havemos de morrer. Mas nós não queremos escrever um capítulo de memórias, nem uma profissão de fé política. Queremos afirmar que, não brigando as nossas ideias republicanas com as que os liberais de 1820 e 1828 defenderam com risco da própria vida, aplaudimos com todo o ardor as festas que para honra de Aveiro e para honra do país se vão realizar nesta cidade. – As festas são dos liberais; mas, se para o brilhantismo da comemorações contribuíssem os próprios reaccionários – mesmo aqueles que não sabem por que o são, não houvessem medo de ser apodados de incoerentes, porque à vitória do liberalismo, proclamado em 1820 e defendido em 1828, devem eles a liberdade de impunemente se poderem afirmar reaccionários. As festas são dos liberais; todos, porém, podemos exclamar, comovidamente e de cabeça descoberta: "Glória aos mártires da Liberdade!"»

Dias depois das festas, mandou-me o Dr. Jaime Dagoberto de Melo Freitas, então juiz de Direito em Braga, o número do "Diário do Minho" de 23 de Maio, em cuja primeira página se lia isto, assinado por Numa Pompílio – "As festas de Aveiro – festas a Santa Joana – prejudicaram consoladoramente as Festas da Liberdade, dando a estas um vulto muito secundário. O congresso beirão interessou muito mais aos forasteiros do que os pequeninos comícios, realizados em salões modestos, para se fotografarem diversas bernardices que o Grande Oriente consagrou como factos históricos. Por isso, o sr. dr. José Tavares anda muito rouco e até um pouco surdo às queixas dos pais dos alunos que vêem faltar tanto às aulas os professores". Quem seria o biltrezito do Numa Pompílio, que de Braga se ocupava da minha pessoa, fazendo insinuações torpes, e deturpando a verdade, pondo as festas de Santa Joana, integradas pela Comissão nas comemorações liberais, em plano superior aos restantes números? Foi o Dr. Melo Freitas quem me informou de que o pseudónimo encobria / 103 / José Agostinho, escritor ultramontano, que algum tempo, e recentemente, vivera em Esgueira... Estava certo: era o mesmo que em 1901 editara, com António Figueirinhas, o panfleto revolucionário intitulado "O Látego" (Quinzenário de crítica, etc.)...

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No mesmo ano de 1928, saiu dos prelos da Imprensa da Universidade, de que era director o Dr. Joaquim de Carvalho, a edição Éclogas de Rodrigues Lobo (segundo a princeps de 1605), que organizaria, a pedido daquela, em fins de 1924, e cujo original lhe entregara em Janeiro de 1925. – A convite da Livraria Chardron de Lello & Irmão, organizei os seguintes volumes para a Colecção Lusitânia: Poetas do Amor (Crisfal, Marília de Dirceu e Folhas Caídas, Janeiro de 1928); Teatro de Gil Vicente (selecção) (Fevereiro); Poesias de Sá de Miranda (selecção, Maio); Comédias de Camões (Agosto) e Peregrinação de Fernão Mendes Pinto (Dezembro). Esta última selecção, em 2 vols., só veio a ser publicada em Agosto de 1942! Ainda no mesmo ano, em Outubro, saiu o meu pequeno trabalho, dedicado à memória de Júlio Moreira – Ortografia Portuguesa, escrito e entregue em Outubro de 1927. Foi editado pela Imprensa da Universidade de Coimbra.

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Nos dias 9, 10 e 11 de Junho de 1928, realizou-se em Viseu o Segundo Congresso do Ensino Secundário, a cuja sessão inaugural presidia o Eng. Duarte Pacheco, que então sobraçava a pasta da Instrução. As actividades da notável reunião acham-se relatadas do respectivo Livro, publicado pela Federação. Não assisti.

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No dia 15 de Julho do mesmo ano, o corpo docente surpreendeu-me com uma festa de homenagem. A pretexto de eu assistir, na sala da biblioteca, a uma sessão de recitação organizada pelo prof. Pedro Gradil, assisti também à inauguração do meu retrato e ouvi estas palavras daquele professor, que transcrevo / 104 / de “O Debate” do dia 21:

«Deliberou o corpo docente deste estabelecimento de ensino descerrar e inaugurar hoje o retrato do seu reitor. A homenagem que, por tal modo, lhe querem tributar os professores, precisamente quando faz dois anos que tomou posse do cargo, e a que da melhor vontade e com prazer se associam os estudantes, não é uma manifestação banal de simpatia. Traduz o desejo bem nítido de prestar ao reitor infatigável, ao colega amigo e ao mestre dedicado o testemunho caloroso de apreço pelas suas preclaras qualidades de carácter e do aplauso bem merecido pelo seu esforço persistente em prol do engrandecimento do liceu. O Sr. Dr. José Tavares não teve ainda, é certo, nem tempo nem oportunidade para realizar uma obra que, pela sua importância ou pelo seu significado, lhe vinculasse, de forma imperecível, o nome nos anais do Liceu de Aveiro; mas a sua acção contínua junto de mestres e de alunos, o seu interesse, nunca desmentido, pelos progressos e pelo bom nome do liceu, a sua intenção, bem marcada, de honrar sempre as tradições desta casa e de a elevar cada vez mais no conceito público, dão-lhe jus a receber de cada um de nós prova evidente de quanto apreciamos a sua actividade benéfica, e o incitamento de que não carece, mas que não lhe devemos regatear para prosseguimento da árdua tarefa a que com tanto desvelo se tem consagrado. Conquanto a prestimosa e, por muitos títulos, notável classe do professorado secundário, a que me honro, embora imerecidamente, de pertencer, conta em seu grémio individualidades prestantes e nomes consagrados, não possui no entanto muitos que saibam ou queiram arcar, sem desprestígio próprio, com as responsabilidades que acarreta o cargo de director dum estabelecimento desta natureza. As qualidades de inteligência e de ânimo que se requerem, urge acrescentar o interesse permanente, a assiduidade e a persistência de virtude de que se tomam necessárias para o seu cabal desempenho. O Sr. Dr. José Tavares reúne na sua pessoa todos os predicados requeridos. À sua inteligência lúcida, que lhe permite ver com nitidez a ambiência em que os factos se desenrolam, junta um critério ponderado para os colocar na posição que nela devem ocupar. A sua acção dentro do / 105 / liceu tem sido tenacíssima e fecunda. Pelo seu trabalho, lento mas ininterrupto, tem-se conseguido melhorar apreciavelmente as condições materiais do edifício. As bem feitorias que este ultimamente recebeu, desde a beneficiação da frontaria e do interior até à restauração do Anexo, são incontestavelmente obra sua. Também sem a sua cooperação e o seu auxílio franco não se teriam podido dotar tão rapidamente os gabinetes, nem esta biblioteca, sem a sua protecção valiosa, poderia ter atingido o desenvolvimento que revela.

O liceu de Aveiro, que é, com sobejo motivo, considerado um dos melhores da Província, está, no entanto, ainda longe da perfeição por que todos almejam. O zelo do seu reitor, auxiliado pela dedicação nunca deficiente do seu corpo professoral, há-de levá-lo a curto prazo, estou disso certo, ao grau de esplendor que deve atingir. O Sr. Dr. José Tavares não é um reitor que nos tenha sido imposto violentamente pelo Poder Central, ou tenha sido trazido até nós pela influência, tantas vezes perniciosa, da política. É um reitor que o Governo, como não podia deixar de ser, nomeou, mas cujo nome fomos nós que indicámos. Este facto, se o tem cercado daquela atmosfera de simpatia que tão necessária é para a realização de uma obra profícua, é também sobremaneira honroso para nós. Mostra-nos que não nos enganámos na escolha que fizemos do seu nome e prova exuberantemente que ninguém melhor que os professores podem indicar aquele que deve presidir aos destinos dum liceu.

Há na vida pública do Dr. José Tavares um facto, recente ainda, que basta para o impor à consideração de todos nós. Quando há pouco mais de um ano se procuravam professores que quisessem assumir a inglória tarefa de fiscalizar o ensino liceal, o Dr. José Tavares, um dos primeiros convidados para inspector, sem um momento de reflexão ou hesitação, recusou peremptoriamente o cargo com que o pretendiam investir. Esta recusa, se patenteia o bem ponderado do seu critério e a clareza de visão da sua inteligência, revela-nos igualmente que ele tem pela sua classe a mais alta consideração e que, acima de tudo, é um colega leal, incapaz de praticar um acto que se preste a interpretações equívocas. Por todas estas razões, é justíssima a homenagem que lhe estamos tributando. / 106 /

Não devemos esquecer, ainda, que ele tem sabido conservar a harmonia entre os mestres e mantido em nível elevado, sem violências, mas também sem tibieza, a boa ordem e disciplina no liceu. Nada mais lhe poderíamos pedir; nada mais também dele tínhamos o direito de esperar. Tendo sido encarregado pelos meus ilustres colegas e distintos professores de dirigir ao Sr. Dr. José Tavares, a propósito do acto que estamos realizando, algumas palavras de louvor, e de explicar o significado desta pequena festa, não quero, ao ser intérprete dos seus sentimentos, deixar de frisar igualmente o meu sentir pessoal. Faltando-me escassos dias para abandonar este liceu e o convívio, sempre grato para mim, que nele mantive com mestres e alunos, aproveito o ensejo para patentear ao Sr. Dr. José Tavares quanto me cativaram sempre as suas primorosas qualidades de espírito e de coração, sentindo imenso prazer em lhe dirigir em nome colectivo aquelas expressões de estima e apreço que lhe quereria dirigir em meu nome individual. Viva o Sr. Dr. José Tavares. Viva o reitor do liceu de Aveiro.»

Lendo estas palavras de encómio, dirigidas à pessoa que as copiou, poderá alguém taxar-me de muito vaidoso... Contudo, se as transcrevi, é porque acredito na sinceridade de quem as pronunciou e porque a consciência me diz que, à parte os inevitáveis exageros do amigo, elas exprimem, na parte em que frisam o meu amor ao Liceu e o escrupuloso cuidado no trato com os colegas e com os alunos, uma insofismável verdade. E a verdade, quando nos façam

justiça, pode ouvir-se ou apontar-se sem manifestações de falsa modéstia. Pedro Gradil conhecia-me bem. É-me grato reconhecer isso!

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Pelo decreto n.º 15 942, de 11 de Setembro de 1928 (Min. da Instr. – Eng. Duarte Pacheco), foi o Governo autorizado «a contrair com a Caixa Geral dos Depósitos um empréstimo (40.000 contos), destinado à construção de edifícios para o funcionamento dos liceus, à conclusão dos já iniciados e grandes reparações daqueles em que os referidos estabelecimentos de ensino funcionam e que constituem pertença do Estado, e bem assim à aquisição de mobiliário / 107 / e material didáctico», etc. – empréstimo que era administrado por uma Junta. Logo após a publicação deste diploma, tratou o Conselho Escolar do Liceu de José Estêvão de estudar a melhor forma de ampliar as suas instalações, de melhorar as condições de outras e de pôr termo a certas deficiências. Reunido em 12 de Novembro desse ano, resolveu se oficiasse à Junta Administrativa do Empréstimo, lembrando a aquisição do Teatro Aveirense, contíguo ao Liceu, o qual, devidamente adaptado, se prestaria admiravelmente para aquela ampliação e para a condigna instalação dos gabinetes; lembrando a construção de retretes e balneários para os alunos; a aquisição de mobiliário e material didáctico, e a conclusão das obras do ginásio e a sua adaptação a sala de festas e de representações cénicas, escolares. De acordo com o aprovado em Conselho, enviei à referida Junta, no dia 8 de Dezembro, uma desenvolvida exposição, acompanhada da planta do Liceu e todas as suas dependências.

Cabem aqui, perfeitamente, embora contrarie a cronologia do meu relato, todas as principais diligências feitas até à minha saída da reitoria. Em 21 de Agosto de 1929, o Sr. Presidente da Junta do Empréstimo, Dr. Eusébio Tamagnini, visitou demoradamente o Liceu. Ficou assente, em princípio, a adaptação do Anexo e todos os demais melhoramentos sugeridos, com excepção da aquisição do Teatro, ideia mal vista pelo jornalista Homem Cristo e ultimamente, mercê dos ataques deste, não perfilhada pela direcção do mesmo Teatro. Em 7 de Novembro desse ano, o Engenheiro Mário Filgueiras, do Porto, veio a Aveiro, a fim de tirar medidas e colher todos os elementos para a elaboração do ante-projecto dos melhoramentos e obras propostos. Passados meses, declarou-me que a Junta achava inviável o projecto da construção de uma ala perpendicular ao edifício principal, visto tal obra tornar muito sombrios os recreios, principalmente o das alunas, pelo que a referida Junta reputava preferível a demolição do Anexo, em cujo lugar se levantaria edifício novo, para instalação de gabinetes e aulas. E logo procedeu à elaboração do respectivo ante-projecto, que, depois de várias modificações, foi dado como pronto a ser examinado pela Junta, em Julho de 1930. / 108 /

Decorreram meses, até que pelo mesmo Engenheiro me foi dito que a Junta achava acanhado o terreno destinado às obras e punha a hipótese de expropriação de algumas das casas da Rua de Santo António, que confinam com terrenos do Liceu pelo lado sul, afim de em seu lugar se erguer um edifício que continuasse, quase em ângulo recto, o novo edifício a levantar no local do Anexo, sem prejuízo dos recreios, que são relativamente pequenos. Em 7 de Dezembro de 1930, foi o Liceu visitado pelo Eng. Mário Filgueiras e Francisco Maria Henriques, para se assentar, definitivamente, em que deveriam consistir as obras. Examinados os edifícios e terrenos de que o Liceu dispõe e observado o ante-projecto último, o Eng. Henriques afirmou que, em virtude da pequena extensão de terreno disponível, o Liceu ficaria muito mal servido com as obras constantes daquele ante-projecto e que a melhor solução seria proceder-se à expropriação das casas da Rua de Santo António, ou então – e isso seria o preferível – adquirir terreno, em ponto conveniente, para a construção de edifício novo. No fim da conferência, a que assistiram vários professores e o Presidente da Câmara (Dr. Lourenço Peixinho), fui com os referidos Engenheiros ver uma quinta - a quinta da Casa Cardoso, situada perto do centro da cidade, que se prestaria para a construção do novo Liceu. Como adiante se verá, este problema de Aveiro é dos tais que se etemizam. A principal causa é a falta de interesse dos aveirenses pelos seus melhoramentos: a reitoria encontrou-se sempre sozinha, a pregar no deserto!...

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No dia 23 de Fevereiro de 1929, fiz no Liceu de Nun' Alvares, em Castelo Branco, a pedido do reitor Dr. João Joaquim Pires, uma conferência sobre "A Mulher na Literatura Portuguesa". [     …..]

P.S. – Esqueci-me, na devida altura, de fazer referência a uma conferência que, a pedido da "Escola Livre", de Oliveira de Azeméis, fui fazer ao Teatro dessa vila na noite de 22 de Junho de 1924, acerca de – "Camões símbolo da Pátria Portuguesa". / 109 /

Nesse ano (1929), e por iniciativa de professores do Liceu deA1ves Martins, realizaram-se neste Liceu e no de Aveiro conferências de intercâmbio cultural. Assente, entre as reitorias dos dois liceus, a época em que as conferências se realizariam, os liceus interessados oficiaram à Direcção Geral do Ensino Secundário a pedir que na conferência inaugural se representasse o titular da pasta da Instrução. Este pedido teve deferimento. Eis a ordem das conferências:

1.ª – 13 de Abril. – Em Aveiro. Conferente – prof. Alfredo de Carvalho ("Da Poesia Feminina Contemporânea em França"). Assistiu o reitor do Liceu de Viseu, Dr. João Augusto Cardoso, e presidiu à conferência o Dr. Vitor Manuel Braga Paixão, como representante do Ministro da Instrução.

2.ª – 20 de Abril. – Em Viseu. Conferente – prof. José Pereira Tavares ("O Ensino e o Culto da Língua Materna"). Presidiu o Gov. Civil de Viseu, Tenente-Coronel Numa Pompílio. Sumário da conferência: Importância do assunto e necessidade de a favor dela despertar o interesse público; fases de desenvolvimento da Língua Portuguesa; os propugnadores da vernaculidade e o culto da língua materna através dos tempos; o estudo e o culto da língua materna na actualidade, a Língua Portuguesa no Brasil; necessidade de uma intensa propaganda a favor da pureza e integridade do nosso idioma; papel da Academia das Ciências, papel dos governos, papel dos educadores; conclusões.

3.ª – 27 de Abril. Em Aveiro. Conferente – Cap. Almeida Moreira ("Uma escola de pintura primitiva portuguesa"). Presidiu o Gov. Civil, Tenente Silva Mendes.

4.ª – 4 de Maio. Em Viseu. Conferente – prof. Alberto Sá de Oliveira ("A orientação Profissional nas Profissões Intelectuais"). Presidiu o Governador Civil.

5.ª – 18 de Maio. Em Aveiro. Conferente – prof. Álvaro Ferreira de Matos ("Da evolução do Teatro inglês. O drama shakespeariano").

6.ª – No mesmo dia, em Viseu. Conferente – prof. Francisco Ferreira Neves / 110 / ("Problema da Origem e Etimologia de Aveiro"). Presidiu o Comandante Militar.

7.ª – 29 de Maio. Aveiro. – Conferente – prof. Joaquim Figanier ("Impressão de uma leitura. Rosália de Castro e os Cantares Galegos").

8.ª – 1 de Junho. Viseu – Conferente – prof. José Barata ("Portugal e os Modernos Geógrafos Estrangeiros", única conferência que foi publicada). Presidiu o Gov. Civil, que representava o Ministro da Instrução.

Acerca da minha conferência, o "Jornal da Beira", de Viseu (26 de Abril), depois de encómios vários, inseria estas palavras: – «Uma nota ligeira, que para mais não dá o espaço. O conferente, na sua bela conferência, de que damos um pálido resumo, afirmou a inutilidade da análise no ensino da língua portuguesa, inutilidade que logicamente deve reconhecer-se também no estudo das línguas estrangeiras – vivas ou mortas. De facto, estas doutrinas vêm-se pondo em prática desde há muito, sendo corrente encontrar alunos, em classes adiantadas, que não distinguem um advérbio de um adjectivo, não conhecem o predicado de uma oração, não sabem dividir um período e muito menos classificar as suas orações... – Discordamos em absoluto, e connosco muita gente, desta estranha e perniciosa novidade e em parte a ela atribuímos o facto doloroso, que S. Ex.ª não soube explicar, de hoje os alunos saírem, na sua maioria, do liceu sem saberem a sua língua, incapazes de redigirem, com consciente segurança, o mais simples documento literário. Que se condene o abuso de uma técnica exclusivamente minuciosa, puramente convencional, com que noutros tempos se sobrecarregava inutilmente a memória, perfeitamente; mas que se dispense o aluno de conhecer a natureza funcional das partes da oração (análise gramatical) e a sua interdependência ou regência na construção do discurso (sintaxe), não é admissível. Parece-nos até um contra-senso (nonsense, como dizem os ingleses), salvo o devido respeito. Como poderia, por exemplo, ensinar-se a um aluno o emprego dos modos e tempos verbais, se ele não soubesse classificar as diversas proposições, chamadas subordinadas? Um exemplo: em Latim, uma oração interrogativa indirecta leva o verbo ao conjuntivo. / 111 /

Como poderia fazer-se compreender ao aluno este facto linguístico, se ele não soubesse classificar as orações? E que é a análise senão um estudo, um exercício elementar da Lógica? A linguagem é a expressão do pensamento. A sua análise é a análise da própria função intelectual, a análise do pensamento, uma verdadeira ginástica filosófica, que dá acuidade e clareza ao espírito. Uma outra causa da decadência do estudo do português é o desprezo a que tem sido votado o estudo do Latim, sem o qual é impossível um conhecimento consciente da nossa língua, filha do Latim.»

Estas considerações, feitas, evidentemente, por padre, levaram-me a dirigir uma carta ao referido periódico, No número imediato, de 9 de Maio, lia-se o seguinte: – «Uma carta. Do ilustre professor do liceu de Aveiro, sr. Dr. José Pereira Tavares, que no nosso Liceu fez uma brilhante e erudita conferência sobre o estudo e defesa da pureza da língua materna, recebemos a seguinte carta, que gostosamente publicamos: "...Sr. – No último número do jornal que V. ... proficientemente dirige, a par das benévolas e gentilíssimas expressões que a respeito da minha conferência do dia 20 do corrente traçou, borda V. ..., a propósito de uma passagem, algumas considerações que farão supor a quem as tiver lido que eu condeno, de modo absoluto, a análise gramatical e lógica no ensino do Português e, em geral, no ensino das línguas. Ora, como tal não

sucede, espero da lealdade de V. ... que esta aclaração seja publicada num dos próximos números do "Jornal da Beira". Eu não me pronunciei, nem de modo algum poderia pronunciar-me, contra os exercícios de análise: condenei, como tenho condenado e continuarei a condenar sempre, o seu abuso. Eu disse, textualmente, que «a análise pela análise é um contra-senso»; e manifestei-me contra aqueles que parecem considerar a análise como o escopro do ensino das línguas. Se é essa a opinião de V.ª ..., estamos, afinal, de acordo. De V.ª ..., etc. Aveiro, 30/ IV /1929, José Pereira Tavares.» – Agradecendo ao ilustre e douto professor a honra e os termos atenciosos da sua carta, felicitamo-nos por tê-la provocado, dando a S. Ex.ª ensejo de desfazer tão categoricamente uma impressão, pelo visto errada, que as suas palavras sobre a "inutilidade" da / 112 / análise deixaram na assistência, que não somente no nosso espírito de repórter, ou cronista. Reservamo-nos, para quando o espaço no-lo permita, fazer ainda sobre o momentoso assunto algumas considerações, que bem merece. Nós cremos que não é lícito, nem conveniente à educação da mocidade, diminuir, ainda que sob o pretexto de combater abusos, a grande importância da análise no ensino das línguas e sobretudo da língua materna. S. Ex.ª disse: «se o aluno entende o que leu, não é precisa a análise; se não entendeu, a análise é inútil para o fazer entender.». Ora esta doutrina não pode, a nosso ver, ser sacrificada, antes precisa de ser rectificada.» Quero dizer: o crítico, dando uma no cravo e outra na ferradura, ficou na mesma. Não respondi, porém, apesar de facilmente lhe poder provar que ele não ouvira bem o que eu disse. Afirmar-lhe-ia que os meus alunos, desde que eu os aprove, sabem sempre, de gramática e análise, o que o crítico deseja que se saiba, e isso sem que eu, nem uma só vez durante todo o curso, faça análise pela análise. Há pouco tempo, ouvi a um antigo aluno, que em breve será distinto professor liceal – António Gomes Ferreira, esta afirmação, que muito me consolou: «Lendo hoje as gramáticas do Sr. Doutor Tavares, reconheço que sei tudo quanto elas inserem, sem S. Ex.ª nunca nos haver marcado uma lição de gramática!» Acho que estas palavras constituem o melhor elogio do meu método... A ignorância de muitos, em língua materna, depois de abandonaram o curso liceal, tem por causa a defeituosa organização dos estudos, e não o processo do ensino. Reporto-me, é claro, a alunos meus, pois muito bem sei que há professores que não ensinam o que devem ensinar, nem como devem ensinar. Este assunto levar-me-ia muito longe!

Este intercâmbio de cultura dos dois liceus mereceu a gratidão do Ministério respectivo: os conferentes, os reitores dos dois liceus e o Governador Civil de Viseu, Ten.-Cor. Numa Pompílio, foram louvados pelo Ministro da Instrução (Dr. Silva Teles) no “Diário do Governo” n.º 191 de 15 de Agosto de 1929.

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No mesmo ano, a 13 de Maio, fez o professor italiano, Dr. Guido Batelli, na biblioteca do Liceu de José Estêvão, uma conferência sobre – "Gabriel d'Annunzio / 113 / e a Literatura Italiana Contemporânea".

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A classe dos professores liceais continuava a provar a sua actividade. De 9 a 12 de Junho, realizou-se no Liceu de Braga o Terceiro Congresso do Ensino Secundário, em que intervim. Esta reunião estava quase a gorar-se, mas eu consegui demo ver do seu propósito os que eram da opinião de que abandonássemos a cidade. Foi o caso que o Presidente da sessão inaugural, Governador Civil – Capitão Caravana, se permitira aconselhar-nos a que não nos manifestássemos contra a Ditadura! Começava o reinado da rolha!... Venceu o bomsenso: desistir do Congresso seria um tremendo fiasco!

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Nesse mesmo ano de 1929, colaborei no voI. I da "História da Literatura Portuguesa Ilustrada" (publicada sob a direcção de Albino Forjaz de Sampaio), com o artigo "A Língua Portuguesa no Século XVI" (cit. voI., pág. 332-363). Redigi também uma adaptação de fábulas de Fedro para uso das crianças. Conhecendo o original, encorajou-me a publicá-lo o falecido publicista Pe Júlio Albino Ferreira, que muito me auxiliou em tal tarefa. O trabalho saiu em Novembro com o título de "Cinquenta Fábulas de Fedro", e foi dedicado à minha Hermeliana, então de catorze anos, à minha sobrinha Antónia e às duas filhas do meu velho e íntimo amigo José Gamelas – a Maria José e a Maria Rosa. Foi bem recebido pela crítica, mas a venda ficou bastante aquém da expectativa do autor e da daquele seu saudoso amigo...

Data deste ano a constituição da "Sociedade dos Antigos Alunos do Liceu de Aveiro", cujos fundamentos foram lançados por mim, com a coadjuvação dos antigos alunos Amílcar Gamelas, Lívio Salgueiro, José Vieira Gamelas e José Jóia de Noronha. As operações iniciais constam da primeira acta, de 5 de Outubro de 1928, e os Estatutos foram aprovados pelo Ministro da Instrução em 18 de Abril de 1929. A Sociedade tem cumprido, mais ou menos, os fins estatuídos no Art.º 1.º dos Estatutos: promover o progresso do Liceu, defender / 114 / os seus legítimos direitos e interesses e estreitar as boas relações entre ela e as famílias dos alunos.

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Estamos agora em Janeiro de 1930. Nesse mês, constituiu-se em Aveiro a Comissão Distrital, encarregada da angariação de donativos para o monumento à memória do Dr. António José de Almeida: Presidente – Dr. Abílio Barreto; Secretário – Fernando de Castro Maia; Tesoureiro – José Tavares; Vogais – Drs. Alberto Souto, Alberto Ruela, André dos Reis, Lourenço Peixinho, Manuel Rodrigues da Cruz, Homem Cristo (Director de "O Povo de Aveiro"), Francisco da Silva Rocha, Ten.-Cor. Carlos Gomes Teixeira, Major César da Costa Cabral, Albino Pinto de Miranda, e Domingos João dos Reis Júnior (Director de "O Debate"). Imediatamente, foi enviada para todos os concelhos a seguinte circular: «Ex.mo Sr. ... A Comissão ao lado indicada, confiada aos sentimentos liberais e patrióticos de V. Ex.ª e atendendo às qualidades eminentes do vulto insigne que acaba de desaparecer, o Dr. António José de Almeida, como propagandista ilustre e fervoroso, Chefe prestigioso de Estado, Apóstolo sublime e ardente da Democracia e exemplo das mais acrisoladas virtudes cívicas, solicita de V. Ex.ª e dos seus amigos a sua valiosa cooperação na angariação de meios nesse concelho para o monumento a erigir àquele prec1aríssimo Cidadão e grande homem de bem. O Presidente... – O Tesoureiro... – O Secretário...". Os donativos que desde 14 de Setembro de 1930 a 28 de Janeiro de 1932 remeti à Comissão Central ascenderam a Esc. 13.304$30.

No dia 31 desse mês, segundo resolução tomada pelo Conselho Escolar em sessão de 14 de Dezembro de 1929, realizou-se na biblioteca uma sessão solene de homenagem à memória daquele insigne democrata, na qual falou o Capo Augusto Casimiro, vindo propositadamente de Lisboa.

No entretanto, prosseguiam os trabalhos da Federação dos Professores Liceais: nos dias 1, 2, 3 e 4 de Maio, realizou-se, no Liceu de Évora, o quarto Congresso do Ensino Secundário, ao qual não pude assistir. Dele se publicou o / 115 / respectivo Livro.

Nesse mês, nas noites de 23 e 24, representaram alunos e alunas do Liceu, no Teatro Aveirense, uma revista de costumes locais, refundição da de 1924, escrita por mim e por Álvaro Sampaio – "Crepúsculo de Pangloss", cujo produto reverteu a favor da Caixa Escolar.

No dia 31, o prof. italiano, Dr. Guido Batelli, fez uma conferência, intitulada "Traduttore. tradittore".

No dia 9 de Junho, procedeu-se na biblioteca à inauguração da nova bandeira dos estudantes, acto a que se seguiu um baile oferecido pela Associação Escolar aos sócios da "Sociedade dos Antigos Alunos".

No dia seguinte, comemoração de Camões, em que falei sobre "O Culto de Camões em Portugal e no Estrangeiro".

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O decreto n.º 13 056 (22/1/927) sofria modificações. Introduzia-lhas o decreto n.º 18779, de 26 de Agosto de 1930 (Min. da Instr. – Gustavo Ramos), seguido pelo decreto 18 827, de 6 de Setembro, que estabelece normas acerca do livro do ponto, do caderno-diário, dos directores de classe e da classificação do serviço docente. O Ensino Secundário ia vivendo de tombos!...

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Por indicação do Dr. José Leite de Vasconcelos, que sempre me deu provas de amizade e consideração, fui convidado pelo Instituto Giovanni Treccassi, de Roma, para colaborar, com artigos literários, na "Enciclopédia Italiana". A minha colaboração, sempre paga em dia, vai desde Cruz (Fr. Agostinho da) até Zurara (Gomes Eanes de) e foi enviada para Roma entre 15 de Setembro de 1930 e 23 de Outubro de 1932.

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Em 16 de Dezembro de 1930, fui encarregado pela Direcção Geral do Ensino / 116 / Primário de fazer uma sindicância aos actos do professor Director da Escola Primária Complementar, de Ovar. Dessa incumbência me desempenhei em Janeiro e Fevereiro de 1931.

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Tendo Álvaro Sampaio, meu grande colaborador no Liceu e querido camarada na direcção da “Labor”, censurado com aspereza a acção do Dr. Eusébio Tamagnini na presidência da Junta de Empréstimo, este professor resolveu desafrontar-se, convidando o censor a comparecer a determinada hora no recinto da Feira de Março, no dia 18 desse mês (1931). O encontro deu-se rigorosamente à hora aprazada e dele resultou uma cena de pugilato, a que amigos dos dois contendores imediatamente puseram termo. O Conselho Escolar, reunido extraordinariamente no dia seguinte, aprovou a moção apresentada pelo professor João Joaquim Pires, sintetizada nos seguintes pontos: "1.º – Dar a Álvaro Sampaio toda a sua solidariedade, patentear-lhe a sua alta consideração e apreço pelas suas qualidades de carácter e aprumo moral e formular o seu mais enérgico protesto contra o procedimento do Sr. Dr. Eusébio Tamagnini; 2.º – Dar conhecimento dos factos e desta resolução a S. Ex.ª o Sr. Ministro da Instrução Pública.»

Nesse ano, em Coimbra, desde o dia 19 a 23 de Maio, realizou-se o quinto Congresso do Ensino Secundário – o último! – cuja organização esteve a cargo do Liceu da Infanta D. Maria. Devido à situação precária em que a Federação passou a viver e, um pouco mais tarde, à circunstância de ela haver sido atingida pela lei que proibiu a vida associativa dos funcionários públicos, não se chegou a publicar em livro o relato das sessões dessa ultima reunião da classe. A “Labor” referiu-se-lhe nos seus números de Maio e Junho de 1931.

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Em 1931, realizaram-se as seguintes conferências públicas: Dia 6 de Março com a assistência do Dir. Geral da Agência Geral das Colónias (Armando Cortesão), a do prof. José Barata sobre "Importância do Ensino Colonial nos / 117 / Liceus"; Dia 21 de Março, conferência de Dr. Lobão de Carvalho, do Liceu de Rodrigues de Freitas, acerca da "A Educação Física como Base da Cultura dos Povos"; Dia 10 de Junho (Dia de Camões), conferência do professor António Barbosa, do Liceu de Alexandre Herculano, sobre "Erros e Ideias Falsas e Espoliações na História dos Descobrimentos dos Portugueses".

Nesse ano lectivo,  também se fizeram seis palestras de alunos das classes mais adiantadas, perante professores e alunos.

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No mesmo dia 10 de Junho, os alunos da 7.ª classe deram uma récita de despedida no Teatro Aveirense, na qual representaram a peça Frei Diabo, que propositadamente escrevi para esse fim.

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Segundo o que ficou combinado entre mim e o Director dos Serviços do Ensino Secundário (Eduardo Antonino Pestana), com quem me encontrara em Coimbra, por ocasião do Congresso, no dia 11 de Julho pedi a exoneração do cargo de reitor, resolução a que fui levado pela necessidade que tinha de descansar. Entreguei a reitoria ao Vice-reitor, prof. Tavares de Lima, no dia 21 daquele mês. Afinal, nesse mesmo dia, o "Diário" publicava a portaria da minha exoneração, que rezava assim: «Exonerado, a seu pedido, do lugar de reitor, em cujo exercício prestou serviços muito relevantes em beneficio do Ensino Secundário, pelos quais se consignam justos louvores.» (Diário n.º 166). Finalmente, no dia 25 de Julho, o Conselho Escolar, reunido extraordinariamente, aprovou a seguinte moção, cuja cópia, segundo resolução do Concelho, me foi enviada para o Pinheiro da Bemposta, onde eu me encontrava: «Considerando que o prof. José Tavares pediu a exoneração do cargo de reitor do Liceu de José Estêvão; Considerando que o mesmo professor exerceu esse cargo durante cinco anos com o completo agrado e simpatia de todos os seus colegas; Considerando que o Dr. Tavares, no exercício das suas funções, demonstrou raras qualidades de dirigente e se tem imposto à consideração do / 118 / Liceu e da cidade pelo carinho com que sempre cuidou dos interesses morais e materiais deste estabelecimento de ensino; O Conselho Escolar do Liceu de José Estêvão apresenta a S. Ex.ª a homenagem do seu respeito e consideração.» O Conselho aprovou por unanimidade esta moção do prof. José Barata e resolveu que dela fosse dado conhecimento ao Ministro da Instrução.

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A herança que eu legava ao sucessor não era leve, antes se deveria tornar cada vez mais árdua. A disciplina escolar era perfeita: à parte a expulsão, por um ano, de um aluno, vindo de outro liceu, em virtude de atitudes menos correctas por ocasião da celebração do 10 de Dezembro, fora eu somente obrigado a aplicar, durante os cinco anos, uma outra leve penalidade. Quanto à harmonia do corpo docente, havia, por infelicidade, um professor bastante conflituoso, Apolinário José Leal, do 7.º grupo, com quem alguns mestres não falavam. Saí da reitoria convencido de que entre esse professor e o novo reitor se iam levantar grandes conflitos, dados os feitios muito diferentes de um e de outro.

Na parte administrativa, deixei ficar tudo absolutamente em dia. Contas atrasadas, por pagar, apenas uma, de oitocentos e tal escudos, importância em que o citado prof. Apolinário excedera as autorizações que eu lhe havia concedido para melhoramento do material de Física, de cujo gabinete era director.

A organização dos estudos era geralmente tida como defeituosa. Desejava-se uma reforma que eliminasse as deficiências e anomalias da última legislação e que compendiasse, em regulamento, todos os diplomas dispersos. Mas, sobretudo, sentia-se a tendência do Governo para centralizar, cada vez mais, todos os serviços e para tomar dia a dia mais difícil a nobre missão do educador. A censura, a desconfiança, a imposição de doutrinas políticas e ideológicas estavam em desarmonia com a missão do mestre, que é formar homens. Começava-se-lhe a exigir que formasse hipócritas, e dele mesmo se exigia que o fosse, sob pena de cair sob a alçada das novas leis. A Ditadura, tão bem recebida, ia-se tomando odiosa para quem, como eu, se considerava homem livre. Maus dias iam passar os que não pensassem pelo padrão governamental!... / 119 /  Era horrível!

Colaboradores tinha-os o novo Reitor, e bons: Francisco de Assis Ferreira da Maia, secretário, a lealdade em pessoa; Álvaro Sampaio, Luís Tavares de Lima, Serafim Pinto, Armando Dias Coimbra, etc.

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(1) – Refere-se aos desejos que expressáramos de o trazer para a nossa companhia, para Aveiro.

(2) – "Coroa de Rosas", poesias, que foi publicado por D. Mimi pouco depois do funeral do irmão.

(3) – No "Estado de S. Paulo", saíram, em 1925, duas séries de artigos de Júlio Moreira, mas assinados por Carlos Duarte. Outros subscritos por Desidério Gama: Carlos Duarte é o crítico literário; Desidério Gama é o humorista cintilante. Artigos de C. Duarte: "Função Critica do Ódio", "António Sardinha", "Duas Espécies de Ambição", "Riquezas da Linguagem Popular", "Etimologias Populares" (2 art.), "Vicissitudes da Imagem", "A Lição da Saudade", "A Amizade", "Risus de Risibus" e "Quem se não reeduca deseduca-se". – Artigos de Desidério Beça: "O Falso Blaguera", "Traições da Linguagem", "Sentenciosos e sentenciadores", "Pensadores e Pensativos", "Glórias e Gloríolas", "A Graça e os seus Perigos" e "A Moda".

(4) - Júlio Moreira

 

 

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