VII
Dos professores mais votados para o cargo de Reitor, fui
eu o escolhido pelo Governo. A nomeação saiu no Diário n.º 163, de 14 de
Junho de 1926, e a posse foi conferida pelo professor mais antigo,
Manuel Rodrigues Viena, no dia 15, na presença de todos os professores,
efectivos e provisórios, em exercício. Nas funções em que era investido,
poderia eu fazer mais, muito mais do que durante a gerência interina.
Assim o prometi na ocasião da posse, e a consciência diz-me que o cumpri
como pude e soube.
* * *
Segue-se agora uma página, bem dolorosa, da minha vida: a
referência à trágica morte do meu íntimo e sempre chorado amigo Júlio
Moreira. As minhas relações com esse portuense ilustre, a mais
fulgurante inteligência da minha roda de amigos, haviam-se tornado cada
vez mais íntimas, principalmente a partir da minha estada no Porto, em
serviço de exames (Agosto de 1922). Depois da publicação de A Graça
Portuguesa, começou o meu amigo a queixar-se de falta de saúde. Os
médicos receitavam-lhe, além de remédios, injecções e tratamentos – a
mudança de ares e distracções. Em 1923, nas férias grandes, aluguei para
o doente uma casa no Bonsucesso, perto de Aveiro, onde ele, cheio de
alegria se instalou, pois havia assim a facilidade de nos vermos
amiudadas vezes. Poucos dias, porém, lá se conservou: um álbum de
postais, pertencente ao dono da casa, revelou a Júlio Moreira que aquele
estivera em tratamento na Suíça... Isso levou-o a abandonar o ninho...
Depois, foi uma tortura. Convenceu-se o querido amigo de
que tinha os primeiros sintomas da paralisia geral, e isso era nele uma
obsessão. A certa altura, meteu-se na cama, donde ninguém conseguiu
arrancá-lo. Ainda pensou em ir à Alemanha consultar um especialista,
peregrinação – dizia ele – em que eu teria de o acompanhar... Mas
depressa abandonou esse projecto, convencido de que o seu mal não tinha
cura: acabaria como todos os desgraçados que aquele mal ataca,
imbecilizado, verdadeiro farrapo humano. Essa lembrança
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horrorizava-o. Tinha grandes crises de neurastenia, durante as quais a
irmã, a Mimi, com quem vivia, era impotente para lhe dar algum sossego.
Volta e meia, era chamado ao Porto, ora pela irmã, sem que ele o
suspeitasse, ora por ele. Por último, ia eu visitá-lo todas as semanas,
em algumas das quais mais de uma vez. Com o meu aparecimento, aquela
casa da Cancela Velha transformava-se de inferno em céu: o doente
manifestava-me todo o seu humorismo, como se nada ensombrasse aquele
espírito doente. A irmã rejubilava com a transformação...
Era eu o único amigo que ele recebia. Não escrevia; não
podia escrever, afirmava, com a maior das convicções. E a irmã foi
arvorada em secretária, a quem o doente ditava as inúmeras cartas que me
dirigia.
Até que um dia, de combinação com a D. Mimi, consegui que
o José Gamelas levasse ao Porto o Dr. Elísio de Moura. Ninguém assistiu
ao encontro; mas percebemos que Júlio Moreira andou, à ordem do clínico,
a marchar pelo quarto...
Essa visita veio, afinal, contribuir para a precipitação
da tragédia. Passado dias, depois de ouvir o médico Magalhães Lemos,
mandava-me esta carta, datada de 1 de Agosto de 1926: «Meu caro José
Tavares: Veio hoje o Magalhães Lemos. Declarou-se impotente – pelo menos
diante de mim – para estabelecer diagnóstico seguro antes da análise do
líquido céfalo-raquidiano, o que significa, afinal, que anda muito
próximo do meu precoce diagnóstico. Não me ocultou o estado dos
reflexos, nem deixou de confirmar o que eu sempre reconheci, apesar das
incompreensíveis contraditas de meio mundo: a paralisia das pernas.
Encontrou os reflexos totalmente abolidos da terceira alma de Platão
para baixo. Estou paraplégico, e o resto ver-se-á com o tempo, mestre
dos mestres e coveiro de todos. Não te aflijas com isto, porque eu
próprio estou calmo e sorridente. Vê como vou chalaceando
desempenadamente. Não há tristeza que valha a pena que dá. Afastemo-nos
dela, coloquemo-nos em ponto sobranceiro, donde nos seja possível ver a
universal claudicação das ilusões e a espionagem que a dor semeia
astutamente à roda do pícaro cortejo, – e então,
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perante esse cómico manquejar da vaidosa humanidade, já todos sentiremos
que onde está o homem deve dominar o riso. Consegui instalar-me no pico
luminoso: sou, afinal, feliz. Os nossos cumprimentos para todos e beijos
à Hermeliana. Novos abraços e novos e calorosos agradecimentos ao João e
José Gamelas, cujos sacrifícios em meu favor, tão pesados para eles,
são, para mim e transformados pelo meu coração em reconhecimento e
saudade, leves e cariciosos como tudo que a vida possa produzir de mais
delicado em floração de beleza moral. A ti e a tua Esposa, pelo que de
tão nobre têm feito e pelo que de sublime
abnegadamente quiseram aventurar-se a fazer
(1), nem sei que
palavras dirigir, porque já a gratidão não encontra tintas ajustadas ao
lívido crepúsculo da alma. Tentaria confiar ao meu próprio punho as
palavras que ditei, se não estivesse esgotado pela redacção do relatório
e de outra carta que, para tranquilidade da consciência, fui obrigado a
escrever, intimando a publicação imediata do Livro do
grande e desventurado Duarte Solano
(2). Sossega,
porém, e não te melindres. As últimas linhas hão-de ser endereçadas para
casa da minha querida família de Aveiro. Quando sentir a vizinhança do
momento redentor, tomarei a pena, ainda que seja para te dizer
simplesmente: um grande e comovido abraço do teu velho amigo – Júlio.».
Esta carta, impressionantíssima, mostrava-nos o desespero
de quem a ditava. Minha mulher disse-me:
– Ai, José! O Júlio vai suicidar-se!"
Infelizmente, recebi-a apenas no dia 3. No dia seguinte,
terminaria o serviço de exames de admissão, e já eu poderia marchar para
o Porto, a fim de evitar a catástrofe...
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90 /
Mas os acontecimentos precipitavam-se vertiginosamente:
no dia 4, recebi, na sala dos exames, o lacónico telegrama de D. Mimi –
"Júlio faleceu"!
Cheguei a casa com o coração retalhado de dor. Almocei
precipitadamente e tomei o "rápido". Na estação, comprara o "Jornal de
Notícias", que, em duas linhas, referia o suicídio do meu desventurado
amigo! Fora nessa madrugada. O corpo de Júlio Moreira estava depositado
no necrotério do cemitério de Agramonte!
Momentos de terrível amargura me esperavam naquela casa
amiga, do Largo da Cancela Velha. Juntei as minhas lágrimas às da
desolada irmã do querido amigo. E então foi-me entregue esta carta,
escrita pouco antes do desesperado acta: «Para José Tavares» – dizia. E
depois: «Meu querido José Tavares: Prometi; venho cumprir. A carta que
deixo a minha irmã, tornou-me mais tormentoso este último instante.
Pouco poderei dizer-te; o teu coração adivinhará o resto. Fico nos
termos da promessa: aqui tens o derradeiro abraço do teu velho e
gratíssimo amigo Júlio.» E soube também que na carta, dirigida a D. Mimi,
se faziam recomendações acerca do destino de seus bens, que, por morte
dela, passariam para o amigo de Aveiro... E deixou determinado que a
mobília do seu escritório e todos os livros que eu quisesse me fossem
imediatamente entregues. Mas há mais: dentro da gaveta da mesinha de
cabeceira, apareceu escrito, em meia folha de papel, o seguinte, espécie
de apostila ao que já me escrevera: «… Vá mais um esforço, porque desejo
que sejam para ti as últimas linhas que escrevo. E passe com estes
restos de miséria a gratidão mais profunda. Hei-de escrever
desconexamente como o meu estado determina. Assim, a um primeiro pedido
que consiste em requerer que dês a tua Esposa metade do reconhecimento
que te envio, juntam-se recordações de outra ordem, atinentes a fins
muito pessoais, como vais ver. Deixo, em mãos de minha irmã, a
declaração expressa de que desejo que todos os meus originais sejam
destruídos. Só tu terias voz, no caso de parecer discutível este desejo
irrevogável. Por isso, é necessário esclarecer-te e provar-te que seria
ultraje à minha memória toda a resistência à minha última vontade. Eu
anotava, esboçava e planeava, fiado no
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tempo e sempre desejoso de enriquecer os meus temas e ampliar os
recursos do meu espírito. Daí resulta que tudo quanto deixo é caótico e,
por vezes, incompreensível: são materiais estéreis e enigmáticos para
quem quer que os retome. O pouco que tomou forma explícita corresponde a
períodos de actividade intelectual muito ingénua, que eu renego em
absoluto. Para mais, e voltando à primeira espécie de manuscritos, a
minha forma de anotar era extravagante, toda baseada na confiança no meu
espírito e nas minhas forças; apertava-me em laconismos que a outros
hão-de parecer diabruras de bruxo. Fica, pois, assente,
irrevogavelmente, que não consinto a publicação duma só linha, – e tu,
que és a lealdade em pessoa, serás decerto o primeiro a batalhar pela
minha resolução, se vires que alguém surge a
contraditá-la. O mesmo veto passa também aos artigos que saíram no
Brasil (3), porque, esses, estão todos marcados com o lúgubre
sinal da decadência e contêm, muitos, matéria perigosa e contaminante.
Hão-de morrer nas colunas em que viram a luz, – mausoléu já rico demais
para eles.»
Os originais a que aqui se faz referência foram queimados
dias depois. Os mais importantes intitulavam-se "Humoristas
Portugueses" (Introdução) e "Divagações sobre a estética da
Língua Portuguesa".
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92 /
No dia 6 de Agosto, realizou-se o funeral, em Agramonte.
Muito simples, mas profundamente comovedor na sua eloquência muda.
Éramos, simplesmente, seis, os amigos: Henrique Gomes da Silva, hoje
Dir. Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais; Álvaro Vieira Soares
David; Alberto Pinto, irmão do morto, do primeiro casamento de sua mãe;
o Garrido; o Corte Real, e eu. Abeirámo-nos do ataúde, e trouxemo-lo
para fora do necrotério e colocámo-lo na carreta que o ia conduzir à
sepultura. Nem uma palavra: há o silêncio dos sublimes momentos do
recolhimento. Lá vai! Seis velhinhos da "Mendicidade" empurram
suavemente a carreta. Atrás, vão os amigos, os seis amigos, únicas
pessoas que assistem àquele último acto de uma tragédia, de olhos
marejados, silenciosos, cabisbaixos, como sonâmbulos que ainda
verdadeiramente se não haviam convencido de que o Júlio ia ali morto,
mudo, calado para sempre, ele que era a viveza, a loquacidade e a
alegria em pessoa! Chega-se junto do coval. Os coveiros tiram da carreta
o esquife, aproximam-no da cova, traçam duas cordas e... os restos
mortais de Júlio Moreira baixam à derradeira jazida e pouco a pouco vão
desaparecendo sob enxadadas de terra. Os amigos – só seis! – espalhados,
soluçam, limpam as lágrimas, como que envergonhados de se surpreenderem
chorando. A tarde ia caindo!...
A recordação deste amigo querido acompanhar-me-á até à
morte. Até hoje, prestei-lhe duas pobres homenagens: dediquei à sua
memória o meu modesto trabalho sobre "Ortografia Portuguesa"
(1928) e o pequeno estudo de "Alguns Aspectos da Linguagem de Machado
de Assis" –, que foi publicado no primeiro volume da revista
"Brasília" (1942), no qual faço referência ao labor literário desse tão
ilustre quão infortunado português. Se houvesse vida de além túmulo,
estou certo de que Júlio Moreira se sentiria feliz, ao reconhecer que o
Tavares se mantinha fiel à sólida amizade que em vida nos ligou.
* * *
Em 2 de Outubro de 1926, foi publicado o Estatuto do
Ensino Secundário (Min. da Instr. – Dr. Ricardo Jorge Júnior). O Curso
Liceal foi reduzido para seis anos: C. Geral com cinco (1.º cicIo – três
anos; 2.º ciclo – três anos), seguido
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do Curso Preparatório de Letras ou do C. Preparatório de Ciências, com
um ano cada um. A consequência imediata seria o abaixamento da
cultura... No respeitante à língua materna, havia diminuição de horas
lectivas, e isso a despeito do que no preâmbulo se dizia: «Ao Português
e a tudo quanto diz respeito a coisas portuguesas deu-se lugar
primacial: antes de tudo e acima de tudo, o conhecimento da nossa
língua, do nosso povo, da nossa Pátria.» Parece mentira, mas é a
verdade! De forma que, não obstante o muito sensível aumento dos
vencimentos e gratificações do pessoal, todos reconheciam que o
sapateiro empunhara o rabecão e que, portanto, a letra do Estatuto não
vigoraria muito tempo...
O Estatuto criava um conselho de inspecção para o qual
fui telegraficamente convidado pelo Ministro no dia 5 de Novembro.
Escusado seria dizer que não aceitei o cargo que se me oferecia, não
obstante concordar, em princípio, com a inspecção.
No dia 23 de Dezembro do mesmo ano, o novo Ministro da
Instrução, Dr. Alfredo de Magalhães, visitou Aveiro e esteve no Liceu.
Mostrei-lhe as deficiências das instalações e obtive a promessa de
subsídio para as obras de adaptação do Anexo, que a Reitoria julgava
inadiáveis.
O mesmo Ministro, então acompanhado pelos da Guerra e do
Comércio, voltou a esta cidade no dia 31 de Dezembro. Por sinal que,
tendo os colegas regressado a Lisboa, o Dr. Alfredo de Magalhães veio a
minha casa passar cerca de duas horas que faltavam para o comboio em que
seguiria para o Porto, – na altura em que minha Sogra, doente desde o
dia 8 em virtude de forte ataque cerebral, nos ocupava todas as
atenções. E foi preciso dar café ao Ministro e a quantos o
acompanhavam...
* * *
O decreto n.º 13056, de 22 de Janeiro de 1927 (Min. da
Instr. – Dr. Alfredo de Magalhães), reorganizou os serviços do Ensino
Secundário, anulando grande parte das disposições do malfadado Estatuto.
Regressou-se ao Curso Geral
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de cinco anos, seguido dos Cursos Complementares de Letras e Ciências,
com dois anos cada um.
Até princípios de Março desse ano, ainda se não havia
cumprido a promessa da concessão do subsídio para obras no Liceu.
Resolvi, portanto, ir a Lisboa avistar-me com o Ministro (7 de Março).
Esperava-me uma surpresa... O Dr. Alfredo de Magalhães, por sugestão de
Fidelino de Figueiredo, convidou-me para seu chefe de Gabinete. O
emprego não me sorria. Agradeci, mas não aceitei. O principal foi
conseguir, nessa altura, a promessa do subsídio de cinquenta contos. O
decreto respectivo (n.º 13 360) foi lavrado no dia 28 desse mês.
O Liceu era, desde 1918, designado sob o nome de "Vasco
da Gama", sem que o Conselho Escolar fosse para isso ouvido. Por outro
lado, a opinião pública aveirense várias vezes se manifestara a favor do
nome de "José Estevão", para patrono do seu primeiro estabelecimento de
educação. Dando satisfação a esse desejo, e também porque era a minha
própria opinião, apresentei ao Conselho Escolar a seguinte moção, que
foi aprovada: «Considerando que muitos dos liceus do Continente e Ilhas
são designados pelo nome de um português ilustre, filho da respectiva
localidade ou região (Emídio Garcia, Eça de Queirós, Mousinho da
Silveira, Fialho de Almeida, João de Deus, Manuel de Arriaga, Antero do
Quental, etc.); Considerando que a cidade de Aveiro deve inúmeros
serviços ao seu dilecto filho José Estêvão Coelho de Magalhães, entre
eles a construção do edifício principal do Liceu, de sua exclusiva
iniciativa; Considerando que muitos aveirenses se têm manifestado junto
da reitoria deste Liceu a ponderar o acto de justiça que representaria
para a memória do grande orador o pedir-se ao Governo que o Liceu de
Aveiro passasse a viver sob o seu patronato; Considerando que a imprensa
local já se tem ocupado do assunto, com todo o interesse, manifestando a
mesma opinião; Considerando que, não obstante a grandeza histórica da
figura de Vasco da Gama, esta designação não traduz qualquer relação
entre a cidade de Aveiro e o nome do excelso descobridor do caminho
marítimo da Índia, O Conselho Escolar deste Liceu, tendo em conta os
serviços que a cidade de Aveiro recebeu de José Estêvão, grande liberal
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e o maior orador parlamentar português, resolve, por unanimidade, que se
represente ao Governo da República no sentido de que o Liceu de Vasco da
Gama passe a designar-se "Liceu de José Estêvão", em homenagem à memória
de tão ilustre e querido filho de Aveiro.» E aos desejos do Conselho
Escolar foi dada satisfação pelo decreto n.º 13606, de 12 de Maio de
1927.
* * *
A Associação dos Professores dos Liceus, reorganizada por
iniciativa da revista “Labor”, resolveu realizar o seu primeiro
Congresso no Liceu de Aveiro, nos dias 10, 11 e 12 de Junho desse ano de
1927. O Ministro da Instrução, apesar de convidado, não assistiu à
sessão inaugural e delegou, telegraficamente, em mim... Seria fastidioso
referir aqui o que foi essa admirável prova da vitalidade e competência
da minha classe: tudo se acha historiado no respectivo Livro, organizado
por Álvaro Sampaio, secretário-geral e mandado publicar pela Associação.
Basta dizer que, entre as conclusões, saiu a de que o Curso Liceal
deveria ter a duração de oito anos (seis de Curso Geral e dois de
preparação para os Cursos Superiores), e que no meu discurso de abertura
frisei a necessidade de que os Liceus fossem escolas de rigorosa
selecção.
A ausência do Ministro à sessão inaugural foi asperamente
censurada na “Labor” por Álvaro Sampaio. Por tal motivo, fui
telegraficamente chamado a Lisboa, por ordem do Ministro. Parti no dia
14 de Julho, no rápido da noite. No dia seguinte, fui recebido no
Ministério. Pois o Dr. Alfredo de Magalhães não me tocou no assunto! No
dia 16, na ocasião em que, na estação do Rossio, aguardava a chegada do
Ministro, em cuja companhia viajaria, surpreendi, numa roda de amigos, o
Dr. Fidelino de Figueiredo. Logo que me viu, veio falar-me e fez-me uma
grave confidência: dentro de breves dias, dar-se-ia um golpe de Estado
contra o Governo, no qual estavam, com ele, Fidelino, envolvidos o
General Carmona e o Coronel Passos e Sousa, e eu seria chamado para o
auxiliar no gabinete da Instrução... (Devo dizer que nesta altura já
Fidelino de Figueiredo havia cortado as relações com Alfredo de
Magalhães). Fiquei estupefacto, mas céptico... Afinal, no dia 12 de
Agosto tentou-se o anunciado
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golpe de Estado. Fidelino foi preso, e o Gen. Carmona e o Cor. Passos e
Sousa não apareceram. Coisas que a História por enquanto ignora, mas que
talvez um dia venha a desvendar!
* * *
As obras de adaptação do Anexo do Liceu, tal qual ainda
hoje se vêem, foram feitas durante as férias grandes de 1927.
No “Diário do Governo” de 22 de Outubro, foi publicada a
seguinte portaria: «Tendo o reitor e o corpo docente do Liceu de José
Estêvão, em Aveiro, conseguido imprimir nos últimos anos, notáveis
progressos na acção educativa do estabelecimento a seu cargo, os quais
amplamente se evidenciam no Anuário do mesmo liceu, recentemente
publicado; Considerando que para atingir o aludido aperfeiçoamento têm
os referidos reitor e corpo docente empregado acentuado desvelo,
assinalada inteligência, excelentes unidades de vistas e espírito de
cooperação, que constituem o fundamento da execução proveitosa do ensino
secundário; Manda o Governo da República Portuguesa, pelo Ministério da
Instrução Pública, que ao reitor e professores do Liceu de José Estêvão,
em Aveiro, seja dado público testemunho de louvor. Paços do Governo da
República, 19 de Outubro de 1927. – O Ministro da Instrução Publica –
José Alfredo Mendes de Magalhães.»
Na noite de 17 de Dezembro do mesmo ano, realizou-se, na
biblioteca do Liceu, uma sessão solene de homenagem ao patrono da nossa
casa de trabalho. Falou, com o costumado brilhantismo, sobre "José
Estêvão", o Dr. Jaime de Magalhães Lima, e dignou-se assistir o filho do
grande orador, Dr. Luís de Magalhães. A oração de Jaime Lima foi editada
pela revista “Labor”.
* * *
Em 22 de Janeiro de 1928, estive presente, com Álvaro
Sampaio, na manifestação que, por iniciativa da Associação dos
Professores do Liceu de Bragança, se prestou ao Dr. José Maria
Rodrigues, na Faculdade de Letras de Lisboa: Álvaro Sampaio representava
a Labor, eu o Liceu de José Estêvão. A nossa
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Revista, em o número saído no princípio do mês (n.º 11, ano IIl), já se
associara à homenagem, publicando, com o retrato do eminente professor,
acompanhado de palavras minhas, artigos de José Joaquim Nunes, António
Augusto Pires (Bragança) e Pedro Gradil (Aveiro). A sessão de homenagem,
a que presidiu o Ministro da Instrução (Alfredo de Magalhães), acha-se
relatada em o número 12 da Revista (Março de 1928). Nesta ocasião,
foi-me dado conhecer pessoalmente o Dr. Agostinho de Campos, que na
sessão falou a seguir aos Drs. Cirilo Soares, presidente da Federação
dos Professores Liceais, e António Augusto Pires, e antes do Dr. Estanco
Louro, do Liceu de Pedro Nunes e membro da Direcção da Federação, e do
Ministro, com cujo discurso se encerrou a cerimónia. Em seguida, a
assistência foi a casa do Dr. José Maria Rodrigues, apresentando-lhe
cumprimentos. Muito comovido, aquele professor não tinha outra frase
senão esta: – "Muito abrigado! Muito obrigado!" Quando me apertou num
abraço, segredou-me ao ouvido: "Você é um homem das arábias!".
* * *
Dois dias depois, 24, fez o Dr. Bento Carqueja, na
biblioteca do Liceu, uma conferência pública sobre a "Utilização da
Ria de Aveiro". Continuava assim a acção cultural do Liceu, apesar
do cansaço já anteriormente manifestado pelo público.
No dia 6 de Abril desse ano, sofri um grande desgosto.
Resolvêramos fazer obras na casa da Rua de José Estêvão, a fim de nela
nos instalarmos. Os trabalhos, havia pouco iniciados, prosseguiam com
certa rapidez... Pois naquele dia, Sexta-Feira Santa, na ocasião em que
pela rua desfilava, grave e cadenciadamente, a procissão do Enterro, o
antigo telhado derruiu com enorme fragor e grande parte dele foi cair
sobre a casa do vizinho! O sinistro causou grande pânico, desorganizando
o cortejo. Os padres que conduziam o esquife do Senhor Morto, julgando
talvez tratar-se de bomba, estiveram quase para o abandonarem e se porem
em fuga... Por fim, tudo serenou, e o Enterro seguiu a sua rota. Entre
os fiéis, houve quem atribuísse o desastre à circunstância de eu ser
ateu e jacobino... Ora pois! Creio que alguns cabelos me embranqueceram
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nessa ocasião, pois a derrocada agravou, em mais de dez contos, o
primitivo orçamento. Além disso, os meus vencimentos foram em breve
diminuídos em mais de 500$00 mensais, o que nos obrigava a adiar, talvez
indefinidamente, a amortização da dívida que fôramos obrigados a
contrair, e a pagar juros – coisa horrível para quem quer viver sem
vergonha do mundo... Uma tragédia!
* * *
O Governo da Ditadura começava a sua tarefa de
centralização. No dia 18 de Abril de 1928, foi publicado o decreto n.º
15.392, pelo qual «os reitores dos liceus são nomeados, por livre
escolha do Governo, de entre os professores efectivos do ensino
secundário oficial…» Em vista disso, em 23 desse mês, pedi a demissão,
que me não foi aceite. Pouco depois, eram demitidos todos os reitores;
mas, entre os reconduzidos, estava eu...
* * *
Nesse ano de 1928, a 16 de Maio, completava-se o 1.º
Centenário da revolução liberal de Aveiro contra a tirania de D. Miguel.
Os liberais de Aveiro trataram de tomar posição para a comemoração do
acontecimento. Da Reunião feita no Teatro Aveirense, na noite de 15 de
Janeiro, saiu a Comissão dos festejos, a que presidiria o jornalista
Homem Cristo. As reuniões faziam-se na sala das sessões da Câmara
Municipal. Numa delas, foi resolvido que se fizessem sessões públicas de
propaganda. Na primeira, realizada na noite de 10 de Março, no Teatro
Aveirense, completamente à cunha, falei eu sobre "A revolução de
1828. Sua integração na História Pátria". Transcrevo o que, em
correspondência de Aveiro, a respeito do meu trabalho publicou, na
primeira página, o diário de Lisboa "O Rebate": «No Teatro Aveirense,
realizou nesta cidade uma notável conferência o sr. dr. José Tavares,
ilustre reitor do Liceu de Aveiro o Versou o tema "A Revolução de 1828",
explicando numa larga lição de História as diferentes fases evolutivas
da vida e independência portuguesas. Incidiu sobre o liberalismo contra
D. Miguel, e direitos do Homem, proclamados em 1789, quando da grande
Revolução Francesa.
/
99 /
Assistiu o Dr. Homem Cristo, que expôs à assembleia, que
era numerosa, que este trabalho, a todos os títulos notável, é o início
de uma série de conferências a realizar, preludiando as festas da cidade
de Aveiro. No final de sua magistral oração, o sr. dr. José Tavares,
grande democrata liberal, foi muito cumprimentado por todas as
autoridades de destaque ali presentes. Esta notável lição de História
calou muito bem no espírito de todos os que se encontravam no recinto, e
que ficaram radiantes por lhes ser dito na linguagem clara, lógica e
afectiva do nosso ilustre amigo, sr. Dr. José Tavares, que tinham
nascido numa terra de gloriosas e liberais tradições, na terra em que
Portugal levantou estrondosamente o primeiro sinal de alarme contra a
nefanda obra do absolutismo real. Apontou o culto conferente uma série
de nomes de liberais aveirenses que mais trabalharam pela liberdade,
frisando aqueles que, pela gana fanática dos absolutistas, foram
decapitados, e postadas suas cabeças nos lugares públicos de Aveiro, e
mesmo junto de suas casas! Ouvindo ou lendo o trabalho do distinto
reitor do liceu de Aveiro, respira-se verdade e sinceridade, e há nele
passagens candentes de repulsa e exaltação, que num entusiasmo
comunicativo arrepiavam a sensibilidade dos ouvintes. Poucas vezes temos
assistido a uma lição tão completa e emocionante.»
A segunda conferência de propaganda, no dia 26 de Março,
proferiu-a o Dr. André dos Reis, que falou sobre "Absolutismo e
Democracia".
A Ditadura ensaiava ainda os primeiros passos: não sabia
mesmo que rumo havia de tomar... De outra maneira, não só me seria
impossível fazer as afirmações que fiz na conferência, na qual li,
integralmente, a tradução dos Direitos do Homem, verdadeira heresia nos
tempos que vamos atravessando!, mas também não seria permitido fazer-se
qualquer comemoração, demais a mais com a colaboração das autoridades
locais! Quem presidiu à minha conferência foi o Governador Civil, e o
Governador Civil incorporou-se no imponentíssimo cortejo cívico do dia
16 de Maio. Bons tempos!
Eis agora, em pálida súmula, o que foram as festas da
cidade: Domingo, 13 de Maio: Festa de Santa Joana; às 14 horas,
inauguração do III Congresso
/ 100 /
Beirão (Secretário Geral – Dr. Ferreira Neves); Feira-Exposição no
Rossio; à noite, récita no teatro, com ópera portuguesa (Rui Coelho) e
concerto de violino por Luís Barbosa. –
Segunda-feira, 14 de Maio:
Congresso Beirão (23 e 33 sessões); à noite, 23 récita;
Terça-feira. 15:
4.ª sessão do Congresso; passeio fluvial; à noite, sarau de gala, em que
discursou o Dr. Jaime de Magalhães Lima, e o Dr. Alberto Souto leu uma
oração do Dr. Luís de Magalhães, presente ao acto;
Quarta-feira. 16 de Maio
(feriado e grande gala em Aveiro): Alvorada, sessão de encerramento do
Congresso, imponente cortejo cívico, organizado na parada do regimento
de Cavalaria e dissolvido no cemitério, onde, junto do monumento aos
justiçados de 1829, falaram Homem Cristo, Tomás da Fonseca e Vitorino
Nemésio, representante da Academia Liberal de Coimbra; iluminações na
Ria, concertos, serenata na Ria;
Quinta-feira. 17:
lançamento da primeira pedra na Avenida, para o monumento à liberdade;
concerto, no jardim público, à noite, pela banda da Guarda Republicana
de Lisboa;
Sexta-feira, 18:
visita à casa de Joaquim José de Queirós, em Verdemilho e à sua
sepultura, no cemitério do Outeirinho, junto da qual falaram Dr. Alberto
Souto e Acácio Rosa; à noite, iluminações na Ria;
Sábado. 19:
iluminações;
Domingo. 20:
último dia da Feira-Exposição; batalha de flores no parque da cidade;
marcha milanesa, à noite, e iluminações.
Apraz-me, ainda, transcrever aqui o artigo que publiquei
no jornal "O Debate" do dia 13 de Maio, intitulado "Glória aos
mártires da Liberdade", que só vale pela afirmação da minha
coerência. Rezava o seguinte: «Frequentávamos o Liceu desta cidade,
quando o vírus republicano nos entrou nas veias. Lendo e ponderando as
discussões de progressistas e regeneradores, travadas nos jornais de
ambos os matizes; assistindo a essas ferozes e estéreis pugnas, que
haviam de produzir, mais do que os camartelos jacobinos, a ruína da
Monarquia; estudando e meditando a História, vimos que a nossa atitude
de português, verdadeiramente amante da sua Pátria e das tradições
nacionais, outra não devia ser senão a de liberal. Nesse tempo de
paixões políticas, fomos também ardente defensor das ideias liberais;
líamos os jornais e livros mais avançados, frequentávamos os centros
republicanos, assistíamos a comícios dos mais agitados
/ 101 /
e irreverentes; e, muito embora nos dissessem alguns homens
experimentados que depois, terminando o Curso, na vida prática, as
conveniências nos arrastariam, como a eles, para a esquerda, centro ou
direita dos partidos monárquicos, era profunda a nossa convicção de que,
por mais variadas que fossem as vicissitudes por que o destino nos
houvesse de fazer passar, nunca poderíamos ser senão o que éramos então:
republicano. Ainda antes da proclamação da República, assistimos a este
espectáculo, que ao nosso espírito repugnava: alguns dos rapazes que
acotoveláramos em manifestações liberais de vária natureza e que então
aos quatro ventos se declaravam republicanos, iam-se passando, consoante
as conveniências de ordem económica, para qualquer dos partidos que
guardavam poder. E o nosso idealismo sofria com essas defecções. Com o
andar dos anos, foram-se esfriando os entusiasmos, foi arrefecendo em
nós a fé nos homens que admiráramos e que com o nosso entusiasmo
tínhamos ajudado a elevar às culminâncias do poder e da glória política;
mas uma convicção ficou, e é que, se os homens não correspondiam à nossa
expectativa, os princípios se mantinham na sua natural e indelével
pureza. A nossa posição era a mesma; as desilusões da experiência é que
operavam em nós uma transformação dolorosa: descríamos dos humanos.
Tivemos um amigo – saudoso e sempre chorado será ele!
– (4) que um dia
nos declarava, em conversa, pouco mais ou menos o seguinte: «Não me
sinto arrastado para qualquer partido político, nem para qualquer seita
ou confissão religiosa. Porquê? Porque tenho horror aos princípios da
disciplina de uma e aos dogmas da outra? Não: do que tenho medo é dos
correligionários!» E tinha razão. Os princípios são bons. Os homens é
que quase nunca correspondem, porque a maior parte das vezes não são os
princípios que lhes norteiam os actos. Dessas ideias bebidas na
mocidade, nos tempos das ilusões e dos ideais generosos, uma se nos
manteve, absolutamente fiel e inalterável – o amor da liberdade. A mesma
causa que no-la insuflou no espírito no-la mantém. E nunca, mesmo depois
do aparecimento dos primeiros cabelos brancos, nunca sentimos que o
nosso
/ 102 /
republicanismo colidisse com o culto das tradições pátrias,
obrigando-nos a mudar de posição para defesa delas. Sendo liberal,
somos, por isso mesmo, entusiásticos defensores das nossas tradições.
Para isso, não nos é mister ter de sair do lugar onde sempre estivemos e
donde jamais sairemos. Não reconhecendo antagonismos entre o liberalismo
e o culto das tradições nacionais, liberal e tradicionalista havemos de
morrer. Mas nós não queremos escrever um capítulo de memórias, nem uma
profissão de fé política. Queremos afirmar que, não brigando as nossas
ideias republicanas com as que os liberais de 1820 e 1828 defenderam com
risco da própria vida, aplaudimos com todo o ardor as festas que para
honra de Aveiro e para honra do país se vão realizar nesta cidade. – As
festas são dos liberais; mas, se para o brilhantismo da comemorações
contribuíssem os próprios reaccionários – mesmo aqueles que não sabem
por que o são, não houvessem medo de ser apodados de incoerentes, porque
à vitória do liberalismo, proclamado em 1820 e defendido em 1828, devem
eles a liberdade de impunemente se poderem afirmar reaccionários. As
festas são dos liberais; todos, porém, podemos exclamar, comovidamente e
de cabeça descoberta: "Glória aos mártires da Liberdade!"»
Dias depois das festas, mandou-me o Dr. Jaime Dagoberto
de Melo Freitas, então juiz de Direito em Braga, o número do "Diário do
Minho" de 23 de Maio, em cuja primeira página se lia isto, assinado por
Numa Pompílio – "As festas de Aveiro – festas a Santa Joana –
prejudicaram consoladoramente as Festas da Liberdade, dando a estas um
vulto muito secundário. O congresso beirão interessou muito mais aos
forasteiros do que os pequeninos comícios, realizados em salões
modestos, para se fotografarem diversas bernardices que o Grande Oriente
consagrou como factos históricos. Por isso, o sr. dr. José Tavares anda
muito rouco e até um pouco surdo às queixas dos pais dos alunos que vêem
faltar tanto às aulas os professores". Quem seria o biltrezito do Numa
Pompílio, que de Braga se ocupava da minha pessoa, fazendo insinuações
torpes, e deturpando a verdade, pondo as festas de Santa Joana,
integradas pela Comissão nas comemorações liberais, em plano superior
aos restantes números? Foi o Dr. Melo Freitas quem me informou de que o
pseudónimo encobria
/ 103 /
José Agostinho, escritor ultramontano, que algum tempo, e recentemente,
vivera em Esgueira... Estava certo: era o mesmo que em 1901 editara, com
António Figueirinhas, o panfleto revolucionário intitulado "O Látego"
(Quinzenário de crítica, etc.)...
* * *
No mesmo ano de 1928, saiu dos prelos da Imprensa da
Universidade, de que era director o Dr. Joaquim de Carvalho, a edição
Éclogas de Rodrigues Lobo (segundo a princeps de 1605), que
organizaria, a pedido daquela, em fins de 1924, e cujo original lhe
entregara em Janeiro de 1925. – A convite da Livraria Chardron de Lello
& Irmão, organizei os seguintes volumes para a Colecção Lusitânia:
Poetas do Amor (Crisfal, Marília de Dirceu e Folhas Caídas, Janeiro
de 1928); Teatro de Gil Vicente (selecção) (Fevereiro);
Poesias de Sá de Miranda (selecção, Maio); Comédias de Camões
(Agosto) e Peregrinação de Fernão Mendes Pinto (Dezembro). Esta
última selecção, em 2 vols., só veio a ser publicada em Agosto de 1942!
Ainda no mesmo ano, em Outubro, saiu o meu pequeno trabalho, dedicado à
memória de Júlio Moreira – Ortografia Portuguesa, escrito e
entregue em Outubro de 1927. Foi editado pela Imprensa da Universidade
de Coimbra.
* * *
Nos dias 9, 10 e 11 de Junho de 1928, realizou-se em
Viseu o Segundo Congresso do Ensino Secundário, a cuja sessão inaugural
presidia o Eng. Duarte Pacheco, que então sobraçava a pasta da
Instrução. As actividades da notável reunião acham-se relatadas do
respectivo Livro, publicado pela Federação. Não assisti.
* * *
No dia 15 de Julho do mesmo ano, o corpo docente
surpreendeu-me com uma festa de homenagem. A pretexto de eu assistir, na
sala da biblioteca, a uma sessão de recitação organizada pelo prof.
Pedro Gradil, assisti também à inauguração do meu retrato e ouvi estas
palavras daquele professor, que transcrevo
/ 104 /
de “O Debate” do dia 21:
«Deliberou o corpo docente deste estabelecimento de
ensino descerrar e inaugurar hoje o retrato do seu reitor. A homenagem
que, por tal modo, lhe querem tributar os professores, precisamente
quando faz dois anos que tomou posse do cargo, e a que da melhor vontade
e com prazer se associam os estudantes, não é uma manifestação banal de
simpatia. Traduz o desejo bem nítido de prestar ao reitor infatigável,
ao colega amigo e ao mestre dedicado o testemunho caloroso de apreço
pelas suas preclaras qualidades de carácter e do aplauso bem merecido
pelo seu esforço persistente em prol do engrandecimento do liceu. O Sr.
Dr. José Tavares não teve ainda, é certo, nem tempo nem oportunidade
para realizar uma obra que, pela sua importância ou pelo seu
significado, lhe vinculasse, de forma imperecível, o nome nos anais do
Liceu de Aveiro; mas a sua acção contínua junto de mestres e de alunos,
o seu interesse, nunca desmentido, pelos progressos e pelo bom nome do
liceu, a sua intenção, bem marcada, de honrar sempre as tradições desta
casa e de a elevar cada vez mais no conceito público, dão-lhe jus a
receber de cada um de nós prova evidente de quanto apreciamos a sua
actividade benéfica, e o incitamento de que não carece, mas que não lhe
devemos regatear para prosseguimento da árdua tarefa a que com tanto
desvelo se tem consagrado. Conquanto a prestimosa e, por muitos títulos,
notável classe do professorado secundário, a que me honro, embora
imerecidamente, de pertencer, conta em seu grémio individualidades
prestantes e nomes consagrados, não possui no entanto muitos que saibam
ou queiram arcar, sem desprestígio próprio, com as responsabilidades que
acarreta o cargo de director dum estabelecimento desta natureza. As
qualidades de inteligência e de ânimo que se requerem, urge acrescentar
o interesse permanente, a assiduidade e a persistência de virtude de que
se tomam necessárias para o seu cabal desempenho. O Sr. Dr. José Tavares
reúne na sua pessoa todos os predicados requeridos. À sua inteligência
lúcida, que lhe permite ver com nitidez a ambiência em que os factos se
desenrolam, junta um critério ponderado para os colocar na posição que
nela devem ocupar. A sua acção dentro do
/ 105 /
liceu tem sido tenacíssima e fecunda. Pelo seu trabalho, lento mas
ininterrupto, tem-se conseguido melhorar apreciavelmente as condições
materiais do edifício. As bem feitorias que este ultimamente recebeu,
desde a beneficiação da frontaria e do interior até à restauração do
Anexo, são incontestavelmente obra sua. Também sem a sua cooperação e o
seu auxílio franco não se teriam podido dotar tão rapidamente os
gabinetes, nem esta biblioteca, sem a sua protecção valiosa, poderia ter
atingido o desenvolvimento que revela.
O liceu de Aveiro, que é, com sobejo motivo, considerado
um dos melhores da Província, está, no entanto, ainda longe da perfeição
por que todos almejam. O zelo do seu reitor, auxiliado pela dedicação
nunca deficiente do seu corpo professoral, há-de levá-lo a curto prazo,
estou disso certo, ao grau de esplendor que deve atingir. O Sr. Dr. José
Tavares não é um reitor que nos tenha sido imposto violentamente pelo
Poder Central, ou tenha sido trazido até nós pela influência, tantas
vezes perniciosa, da política. É um reitor que o Governo, como não podia
deixar de ser, nomeou, mas cujo nome fomos nós que indicámos. Este
facto, se o tem cercado daquela atmosfera de simpatia que tão necessária
é para a realização de uma obra profícua, é também sobremaneira honroso
para nós. Mostra-nos que não nos enganámos na escolha que fizemos do seu
nome e prova exuberantemente que ninguém melhor que os professores podem
indicar aquele que deve presidir aos destinos dum liceu.
Há na vida pública do Dr. José Tavares um facto, recente
ainda, que basta para o impor à consideração de todos nós. Quando há
pouco mais de um ano se procuravam professores que quisessem assumir a
inglória tarefa de fiscalizar o ensino liceal, o Dr. José Tavares, um
dos primeiros convidados para inspector, sem um momento de reflexão ou
hesitação, recusou peremptoriamente o cargo com que o pretendiam
investir. Esta recusa, se patenteia o bem ponderado do seu critério e a
clareza de visão da sua inteligência, revela-nos igualmente que ele tem
pela sua classe a mais alta consideração e que, acima de tudo, é um
colega leal, incapaz de praticar um acto que se preste a interpretações
equívocas. Por todas estas razões, é justíssima a homenagem que lhe
estamos tributando.
/
106 /
Não devemos esquecer, ainda, que ele tem sabido conservar
a harmonia entre os mestres e mantido em nível elevado, sem violências,
mas também sem tibieza, a boa ordem e disciplina no liceu. Nada mais lhe
poderíamos pedir; nada mais também dele tínhamos o direito de esperar.
Tendo sido encarregado pelos meus ilustres colegas e distintos
professores de dirigir ao Sr. Dr. José Tavares, a propósito do acto que
estamos realizando, algumas palavras de louvor, e de explicar o
significado desta pequena festa, não quero, ao ser intérprete dos seus
sentimentos, deixar de frisar igualmente o meu sentir pessoal.
Faltando-me escassos dias para abandonar este liceu e o convívio, sempre
grato para mim, que nele mantive com mestres e alunos, aproveito o
ensejo para patentear ao Sr. Dr. José Tavares quanto me cativaram sempre
as suas primorosas qualidades de espírito e de coração, sentindo imenso
prazer em lhe dirigir em nome colectivo aquelas expressões de estima e
apreço que lhe quereria dirigir em meu nome individual. Viva o Sr. Dr.
José Tavares. Viva o reitor do liceu de Aveiro.»
Lendo estas palavras de encómio, dirigidas à pessoa que
as copiou, poderá alguém taxar-me de muito vaidoso... Contudo, se as
transcrevi, é porque acredito na sinceridade de quem as pronunciou e
porque a consciência me diz que, à parte os inevitáveis exageros do
amigo, elas exprimem, na parte em que frisam o meu amor ao Liceu e o
escrupuloso cuidado no trato com os colegas e com os alunos, uma
insofismável verdade. E a verdade, quando nos façam
justiça, pode ouvir-se ou apontar-se sem manifestações de
falsa modéstia. Pedro Gradil conhecia-me bem. É-me grato reconhecer
isso!
* * *
Pelo decreto n.º 15 942, de 11 de Setembro de 1928 (Min.
da Instr. – Eng. Duarte Pacheco), foi o Governo autorizado «a contrair
com a Caixa Geral dos Depósitos um empréstimo (40.000 contos), destinado
à construção de edifícios para o funcionamento dos liceus, à conclusão
dos já iniciados e grandes reparações daqueles em que os referidos
estabelecimentos de ensino funcionam e que constituem pertença do
Estado, e bem assim à aquisição de mobiliário
/ 107 /
e material didáctico», etc. – empréstimo que era administrado por uma
Junta. Logo após a publicação deste diploma, tratou o Conselho Escolar
do Liceu de José Estêvão de estudar a melhor forma de ampliar as suas
instalações, de melhorar as condições de outras e de pôr termo a certas
deficiências. Reunido em 12 de Novembro desse ano, resolveu se oficiasse
à Junta Administrativa do Empréstimo, lembrando a aquisição do Teatro
Aveirense, contíguo ao Liceu, o qual, devidamente adaptado, se prestaria
admiravelmente para aquela ampliação e para a condigna instalação dos
gabinetes; lembrando a construção de retretes e balneários para os
alunos; a aquisição de mobiliário e material didáctico, e a conclusão
das obras do ginásio e a sua adaptação a sala de festas e de
representações cénicas, escolares. De acordo com o aprovado em Conselho,
enviei à referida Junta, no dia 8 de Dezembro, uma desenvolvida
exposição, acompanhada da planta do Liceu e todas as suas dependências.
Cabem aqui, perfeitamente, embora contrarie a cronologia
do meu relato, todas as principais diligências feitas até à minha saída
da reitoria. Em 21 de Agosto de 1929, o Sr. Presidente da Junta do
Empréstimo, Dr. Eusébio Tamagnini, visitou demoradamente o Liceu. Ficou
assente, em princípio, a adaptação do Anexo e todos os demais
melhoramentos sugeridos, com excepção da aquisição do Teatro, ideia mal
vista pelo jornalista Homem Cristo e ultimamente, mercê dos ataques
deste, não perfilhada pela direcção do mesmo Teatro. Em 7 de Novembro
desse ano, o Engenheiro Mário Filgueiras, do Porto, veio a Aveiro, a fim
de tirar medidas e colher todos os elementos para a elaboração do
ante-projecto dos melhoramentos e obras propostos. Passados meses,
declarou-me que a Junta achava inviável o projecto da construção de uma
ala perpendicular ao edifício principal, visto tal obra tornar muito
sombrios os recreios, principalmente o das alunas, pelo que a referida
Junta reputava preferível a demolição do Anexo, em cujo lugar se
levantaria edifício novo, para instalação de gabinetes e aulas. E logo
procedeu à elaboração do respectivo ante-projecto, que, depois de várias
modificações, foi dado como pronto a ser examinado pela Junta, em Julho
de 1930.
/
108 /
Decorreram meses, até que pelo mesmo Engenheiro me foi
dito que a Junta achava acanhado o terreno destinado às obras e punha a
hipótese de expropriação de algumas das casas da Rua de Santo António,
que confinam com terrenos do Liceu pelo lado sul, afim de em seu lugar
se erguer um edifício que continuasse, quase em ângulo recto, o novo
edifício a levantar no local do Anexo, sem prejuízo dos recreios, que
são relativamente pequenos. Em 7 de Dezembro de 1930, foi o Liceu
visitado pelo Eng. Mário Filgueiras e Francisco Maria Henriques, para se
assentar, definitivamente, em que deveriam consistir as obras.
Examinados os edifícios e terrenos de que o Liceu dispõe e observado o
ante-projecto último, o Eng. Henriques afirmou que, em virtude da
pequena extensão de terreno disponível, o Liceu ficaria muito mal
servido com as obras constantes daquele ante-projecto e que a melhor
solução seria proceder-se à expropriação das casas da Rua de Santo
António, ou então – e isso seria o preferível – adquirir terreno, em
ponto conveniente, para a construção de edifício novo. No fim da
conferência, a que assistiram vários professores e o Presidente da
Câmara (Dr. Lourenço Peixinho), fui com os referidos Engenheiros ver uma
quinta - a quinta da Casa Cardoso, situada perto do centro da cidade,
que se prestaria para a construção do novo Liceu. Como adiante se verá,
este problema de Aveiro é dos tais que se etemizam. A principal causa é
a falta de interesse dos aveirenses pelos seus melhoramentos: a reitoria
encontrou-se sempre sozinha, a pregar no deserto!...
* * *
No dia 23 de Fevereiro de 1929, fiz no Liceu de Nun'
Alvares, em Castelo Branco, a pedido do reitor Dr. João Joaquim Pires,
uma conferência sobre "A Mulher na Literatura Portuguesa". [
…..]
P.S. – Esqueci-me, na devida altura, de fazer referência
a uma conferência que, a pedido da "Escola Livre", de Oliveira de
Azeméis, fui fazer ao Teatro dessa vila na noite de 22 de Junho de 1924,
acerca de – "Camões símbolo da Pátria Portuguesa". / 109 /
Nesse ano (1929), e por iniciativa de professores do
Liceu deA1ves Martins, realizaram-se neste Liceu e no de Aveiro
conferências de intercâmbio cultural. Assente, entre as reitorias dos
dois liceus, a época em que as conferências se realizariam, os liceus
interessados oficiaram à Direcção Geral do Ensino Secundário a pedir que
na conferência inaugural se representasse o titular da pasta da
Instrução. Este pedido teve deferimento. Eis a ordem das conferências:
1.ª – 13 de Abril.
– Em Aveiro. Conferente – prof. Alfredo de Carvalho ("Da Poesia
Feminina Contemporânea em França"). Assistiu o reitor do Liceu de
Viseu, Dr. João Augusto Cardoso, e presidiu à conferência o Dr. Vitor
Manuel Braga Paixão, como representante do Ministro da Instrução.
2.ª – 20 de Abril.
– Em Viseu. Conferente – prof. José Pereira Tavares ("O Ensino e o
Culto da Língua Materna"). Presidiu o Gov. Civil de Viseu,
Tenente-Coronel Numa Pompílio. Sumário da conferência: Importância do
assunto e necessidade de a favor dela despertar o interesse público;
fases de desenvolvimento da Língua Portuguesa; os propugnadores da
vernaculidade e o culto da língua materna através dos tempos; o estudo e
o culto da língua materna na actualidade, a Língua Portuguesa no Brasil;
necessidade de uma intensa propaganda a favor da pureza e integridade do
nosso idioma; papel da Academia das Ciências, papel dos governos, papel
dos educadores; conclusões.
3.ª – 27 de Abril.
Em Aveiro. Conferente – Cap. Almeida Moreira ("Uma escola de pintura
primitiva portuguesa"). Presidiu o Gov. Civil, Tenente Silva Mendes.
4.ª – 4 de Maio.
Em Viseu. Conferente – prof. Alberto Sá de Oliveira ("A orientação
Profissional nas Profissões Intelectuais"). Presidiu o Governador
Civil.
5.ª – 18 de Maio.
Em Aveiro. Conferente – prof. Álvaro Ferreira de Matos ("Da evolução
do Teatro inglês. O drama shakespeariano").
6.ª – No mesmo dia,
em Viseu. Conferente – prof. Francisco Ferreira Neves / 110 / ("Problema
da Origem e Etimologia de Aveiro"). Presidiu o Comandante Militar.
7.ª – 29
de Maio.
Aveiro. – Conferente – prof. Joaquim Figanier ("Impressão de uma
leitura. Rosália de Castro e os Cantares Galegos").
8.ª – 1 de Junho.
Viseu – Conferente – prof. José Barata ("Portugal e os Modernos
Geógrafos Estrangeiros", única conferência que foi publicada).
Presidiu o Gov. Civil, que representava o Ministro da Instrução.
Acerca da minha conferência, o "Jornal da Beira", de
Viseu (26 de Abril), depois de encómios vários, inseria estas palavras:
– «Uma nota ligeira, que para mais não dá o espaço. O conferente, na sua
bela conferência, de que damos um pálido resumo, afirmou a inutilidade
da análise no ensino da língua portuguesa, inutilidade que logicamente
deve reconhecer-se também no estudo das línguas estrangeiras – vivas ou
mortas. De facto, estas doutrinas vêm-se pondo em prática desde há
muito, sendo corrente encontrar alunos, em classes adiantadas, que não
distinguem um advérbio de um adjectivo, não conhecem o predicado de uma
oração, não sabem dividir um período e muito menos classificar as suas
orações... – Discordamos em absoluto, e connosco muita gente, desta
estranha e perniciosa novidade e em parte a ela atribuímos o facto
doloroso, que S. Ex.ª não soube explicar, de hoje os alunos saírem, na
sua maioria, do liceu sem saberem a sua língua, incapazes de redigirem,
com consciente segurança, o mais simples documento literário. Que se
condene o abuso de uma técnica exclusivamente minuciosa, puramente
convencional, com que noutros tempos se sobrecarregava inutilmente a
memória, perfeitamente; mas que se dispense o aluno de conhecer a
natureza funcional das partes da oração (análise gramatical) e a sua
interdependência ou regência na construção do discurso (sintaxe), não é
admissível. Parece-nos até um contra-senso (nonsense, como dizem
os ingleses), salvo o devido respeito. Como poderia, por exemplo,
ensinar-se a um aluno o emprego dos modos e tempos verbais, se ele não
soubesse classificar as diversas proposições, chamadas subordinadas? Um
exemplo: em Latim, uma oração interrogativa indirecta leva o verbo ao
conjuntivo.
/
111 /
Como poderia fazer-se compreender ao aluno este facto
linguístico, se ele não soubesse classificar as orações? E que é a
análise senão um estudo, um exercício elementar da Lógica? A linguagem é
a expressão do pensamento. A sua análise é a análise da própria função
intelectual, a análise do pensamento, uma verdadeira ginástica
filosófica, que dá acuidade e clareza ao espírito. Uma outra causa da
decadência do estudo do português é o desprezo a que tem sido votado o
estudo do Latim, sem o qual é impossível um conhecimento consciente da
nossa língua, filha do Latim.»
Estas considerações, feitas, evidentemente, por padre,
levaram-me a dirigir uma carta ao referido periódico, No número
imediato, de 9 de Maio, lia-se o seguinte: – «Uma carta. Do ilustre
professor do liceu de Aveiro, sr. Dr. José Pereira Tavares, que no nosso
Liceu fez uma brilhante e erudita conferência sobre o estudo e defesa da
pureza da língua materna, recebemos a seguinte carta, que gostosamente
publicamos: "...Sr. – No último número do jornal que V. ...
proficientemente dirige, a par das benévolas e gentilíssimas expressões
que a respeito da minha conferência do dia 20 do corrente traçou, borda
V. ..., a propósito de uma passagem, algumas considerações que farão
supor a quem as tiver lido que eu condeno, de modo absoluto, a análise
gramatical e lógica no ensino do Português e, em geral, no ensino das
línguas. Ora, como tal não
sucede, espero da lealdade de V. ... que esta aclaração
seja publicada num dos próximos números do "Jornal da Beira". Eu não me
pronunciei, nem de modo algum poderia pronunciar-me, contra os
exercícios de análise: condenei, como tenho condenado e continuarei a
condenar sempre, o seu abuso. Eu disse, textualmente, que «a análise
pela análise é um contra-senso»; e manifestei-me contra aqueles que
parecem considerar a análise como o escopro do ensino das línguas. Se é
essa a opinião de V.ª ..., estamos, afinal, de acordo. De V.ª ..., etc.
Aveiro, 30/ IV /1929, José Pereira Tavares.» – Agradecendo ao ilustre e
douto professor a honra e os termos atenciosos da sua carta,
felicitamo-nos por tê-la provocado, dando a S. Ex.ª ensejo de desfazer
tão categoricamente uma impressão, pelo visto errada, que as suas
palavras sobre a "inutilidade" da
/ 112 /
análise deixaram na assistência, que não somente no nosso espírito de
repórter, ou cronista. Reservamo-nos, para quando o espaço no-lo
permita, fazer ainda sobre o momentoso assunto algumas considerações,
que bem merece. Nós cremos que não é lícito, nem conveniente à educação
da mocidade, diminuir, ainda que sob o pretexto de combater abusos, a
grande importância da análise no ensino das línguas e sobretudo da
língua materna. S. Ex.ª disse: «se o aluno entende o que leu, não é
precisa a análise; se não entendeu, a análise é inútil para o fazer
entender.». Ora esta doutrina não pode, a nosso ver, ser sacrificada,
antes precisa de ser rectificada.» Quero dizer: o crítico, dando uma no
cravo e outra na ferradura, ficou na mesma. Não respondi, porém, apesar
de facilmente lhe poder provar que ele não ouvira bem o que eu disse.
Afirmar-lhe-ia que os meus alunos, desde que eu os aprove, sabem sempre,
de gramática e análise, o que o crítico deseja que se saiba, e isso sem
que eu, nem uma só vez durante todo o curso, faça análise pela análise.
Há pouco tempo, ouvi a um antigo aluno, que em breve será distinto
professor liceal – António Gomes Ferreira, esta afirmação, que muito me
consolou: «Lendo hoje as gramáticas do Sr. Doutor Tavares, reconheço que
sei tudo quanto elas inserem, sem S. Ex.ª nunca nos haver marcado uma
lição de gramática!» Acho que estas palavras constituem o melhor elogio
do meu método... A ignorância de muitos, em língua materna, depois de
abandonaram o curso liceal, tem por causa a defeituosa organização dos
estudos, e não o processo do ensino. Reporto-me, é claro, a alunos meus,
pois muito bem sei que há professores que não ensinam o que devem
ensinar, nem como devem ensinar. Este assunto levar-me-ia muito longe!
Este intercâmbio de cultura dos dois liceus mereceu a
gratidão do Ministério respectivo: os conferentes, os reitores dos dois
liceus e o Governador Civil de Viseu, Ten.-Cor. Numa Pompílio, foram
louvados pelo Ministro da Instrução (Dr. Silva Teles) no “Diário do
Governo” n.º 191 de 15 de Agosto de 1929.
* * *
No mesmo ano, a 13 de Maio, fez o professor italiano, Dr.
Guido Batelli, na biblioteca do Liceu de José Estêvão, uma conferência
sobre – "Gabriel d'Annunzio
/ 113 /
e a Literatura Italiana Contemporânea".
* * *
A classe dos professores liceais continuava a provar a
sua actividade. De 9 a 12 de Junho, realizou-se no Liceu de Braga o
Terceiro Congresso do Ensino Secundário, em que intervim. Esta reunião
estava quase a gorar-se, mas eu consegui demo ver do seu propósito os
que eram da opinião de que abandonássemos a cidade. Foi o caso que o
Presidente da sessão inaugural, Governador Civil – Capitão Caravana, se
permitira aconselhar-nos a que não nos manifestássemos contra a
Ditadura! Começava o reinado da rolha!... Venceu o bomsenso: desistir do
Congresso seria um tremendo fiasco!
* * *
Nesse mesmo ano de 1929, colaborei no voI. I da "História
da Literatura Portuguesa Ilustrada" (publicada sob a direcção de
Albino Forjaz de Sampaio), com o artigo "A Língua Portuguesa no
Século XVI" (cit. voI., pág. 332-363). Redigi também uma adaptação
de fábulas de Fedro para uso das crianças. Conhecendo o original,
encorajou-me a publicá-lo o falecido publicista Pe Júlio
Albino Ferreira, que muito me auxiliou em tal tarefa. O trabalho saiu em
Novembro com o título de "Cinquenta Fábulas de Fedro", e foi
dedicado à minha Hermeliana, então de catorze anos, à minha sobrinha
Antónia e às duas filhas do meu velho e íntimo amigo José Gamelas – a
Maria José e a Maria Rosa. Foi bem recebido pela crítica, mas a venda
ficou bastante aquém da expectativa do autor e da daquele seu saudoso
amigo...
Data deste ano a constituição da "Sociedade dos Antigos
Alunos do Liceu de Aveiro", cujos fundamentos foram lançados por mim,
com a coadjuvação dos antigos alunos Amílcar Gamelas, Lívio Salgueiro,
José Vieira Gamelas e José Jóia de Noronha. As operações iniciais
constam da primeira acta, de 5 de Outubro de 1928, e os Estatutos foram
aprovados pelo Ministro da Instrução em 18 de Abril de 1929. A Sociedade
tem cumprido, mais ou menos, os fins estatuídos no Art.º 1.º dos
Estatutos: promover o progresso do Liceu, defender
/ 114 /
os seus legítimos direitos e interesses e estreitar as boas relações
entre ela e as famílias dos alunos.
* * *
Estamos agora em Janeiro de 1930. Nesse mês,
constituiu-se em Aveiro a Comissão Distrital, encarregada da angariação
de donativos para o monumento à memória do Dr. António José de Almeida:
Presidente – Dr. Abílio Barreto; Secretário – Fernando de Castro Maia;
Tesoureiro – José Tavares; Vogais – Drs. Alberto Souto, Alberto Ruela,
André dos Reis, Lourenço Peixinho, Manuel Rodrigues da Cruz, Homem
Cristo (Director de "O Povo de Aveiro"), Francisco da Silva Rocha,
Ten.-Cor. Carlos Gomes Teixeira, Major César da Costa Cabral, Albino
Pinto de Miranda, e Domingos João dos Reis Júnior (Director de "O
Debate"). Imediatamente, foi enviada para todos os concelhos a seguinte
circular: «Ex.mo Sr. ... A Comissão ao lado indicada,
confiada aos sentimentos liberais e patrióticos de V. Ex.ª e atendendo
às qualidades eminentes do vulto insigne que acaba de desaparecer, o Dr.
António José de Almeida, como propagandista ilustre e fervoroso, Chefe
prestigioso de Estado, Apóstolo sublime e ardente da Democracia e
exemplo das mais acrisoladas virtudes cívicas, solicita de V. Ex.ª e dos
seus amigos a sua valiosa cooperação na angariação de meios nesse
concelho para o monumento a erigir àquele prec1aríssimo Cidadão e grande
homem de bem. O Presidente... – O Tesoureiro... – O Secretário...". Os
donativos que desde 14 de Setembro de 1930 a 28 de Janeiro de 1932
remeti à Comissão Central ascenderam a Esc. 13.304$30.
No dia 31 desse mês, segundo resolução tomada pelo
Conselho Escolar em sessão de 14 de Dezembro de 1929, realizou-se na
biblioteca uma sessão solene de homenagem à memória daquele insigne
democrata, na qual falou o Capo Augusto Casimiro, vindo propositadamente
de Lisboa.
No entretanto, prosseguiam os trabalhos da Federação dos
Professores Liceais: nos dias 1, 2, 3 e 4 de Maio, realizou-se, no Liceu
de Évora, o quarto Congresso do Ensino Secundário, ao qual não pude
assistir. Dele se publicou o
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respectivo Livro.
Nesse mês, nas noites de 23 e 24, representaram alunos e
alunas do Liceu, no Teatro Aveirense, uma revista de costumes locais,
refundição da de 1924, escrita por mim e por Álvaro Sampaio – "Crepúsculo
de Pangloss", cujo produto reverteu a favor da Caixa Escolar.
No dia 31, o prof. italiano, Dr. Guido Batelli, fez uma
conferência, intitulada "Traduttore. tradittore".
No dia 9 de Junho, procedeu-se na biblioteca à
inauguração da nova bandeira dos estudantes, acto a que se seguiu um
baile oferecido pela Associação Escolar aos sócios da "Sociedade dos
Antigos Alunos".
No dia seguinte, comemoração de Camões, em que falei
sobre "O Culto de Camões em Portugal e no Estrangeiro".
* * *
O decreto n.º 13 056 (22/1/927) sofria modificações.
Introduzia-lhas o decreto n.º 18779, de 26 de Agosto de 1930 (Min. da
Instr. – Gustavo Ramos), seguido pelo decreto 18 827, de 6 de Setembro,
que estabelece normas acerca do livro do ponto, do caderno-diário, dos
directores de classe e da classificação do serviço docente. O Ensino
Secundário ia vivendo de tombos!...
* * *
Por indicação do Dr. José Leite de Vasconcelos, que
sempre me deu provas de amizade e consideração, fui convidado pelo
Instituto Giovanni Treccassi, de Roma, para colaborar, com artigos
literários, na "Enciclopédia Italiana". A minha colaboração,
sempre paga em dia, vai desde Cruz (Fr. Agostinho da) até Zurara (Gomes
Eanes de) e foi enviada para Roma entre 15 de Setembro de 1930 e 23 de
Outubro de 1932.
* * *
Em 16 de Dezembro de 1930, fui encarregado pela Direcção
Geral do Ensino
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Primário de fazer uma sindicância aos actos do professor Director da
Escola Primária Complementar, de Ovar. Dessa incumbência me desempenhei
em Janeiro e Fevereiro de 1931.
* * *
Tendo Álvaro Sampaio, meu grande colaborador no Liceu e
querido camarada na direcção da “Labor”, censurado com aspereza a acção
do Dr. Eusébio Tamagnini na presidência da Junta de Empréstimo, este
professor resolveu desafrontar-se, convidando o censor a comparecer a
determinada hora no recinto da Feira de Março, no dia 18 desse mês
(1931). O encontro deu-se rigorosamente à hora aprazada e dele resultou
uma cena de pugilato, a que amigos dos dois contendores imediatamente
puseram termo. O Conselho Escolar, reunido extraordinariamente no dia
seguinte, aprovou a moção apresentada pelo professor João Joaquim Pires,
sintetizada nos seguintes pontos: "1.º – Dar a Álvaro Sampaio toda a sua
solidariedade, patentear-lhe a sua alta consideração e apreço pelas suas
qualidades de carácter e aprumo moral e formular o seu mais enérgico
protesto contra o procedimento do Sr. Dr. Eusébio Tamagnini; 2.º – Dar
conhecimento dos factos e desta resolução a S. Ex.ª o Sr. Ministro da
Instrução Pública.»
Nesse ano, em Coimbra, desde o dia 19 a 23 de Maio,
realizou-se o quinto Congresso do Ensino Secundário – o último! – cuja
organização esteve a cargo do Liceu da Infanta D. Maria. Devido à
situação precária em que a Federação passou a viver e, um pouco mais
tarde, à circunstância de ela haver sido atingida pela lei que proibiu a
vida associativa dos funcionários públicos, não se chegou a publicar em
livro o relato das sessões dessa ultima reunião da classe. A “Labor”
referiu-se-lhe nos seus números de Maio e Junho de 1931.
* * *
Em 1931, realizaram-se as seguintes conferências
públicas: Dia 6 de Março com a assistência do Dir. Geral da
Agência Geral das Colónias (Armando Cortesão), a do prof. José Barata
sobre "Importância do Ensino Colonial nos
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Liceus"; Dia 21 de Março, conferência de Dr. Lobão de
Carvalho, do Liceu de Rodrigues de Freitas, acerca da "A Educação
Física como Base da Cultura dos Povos"; Dia 10 de Junho (Dia
de Camões), conferência do professor António Barbosa, do Liceu de
Alexandre Herculano, sobre "Erros e Ideias Falsas e Espoliações na
História dos Descobrimentos dos Portugueses".
Nesse ano lectivo, também se fizeram seis palestras de
alunos das classes mais adiantadas, perante professores e alunos.
* * *
No mesmo dia 10 de Junho, os alunos da 7.ª classe deram
uma récita de despedida no Teatro Aveirense, na qual representaram a
peça Frei Diabo, que propositadamente escrevi para esse fim.
* * *
Segundo o que ficou combinado entre mim e o Director dos
Serviços do Ensino Secundário (Eduardo Antonino Pestana), com quem me
encontrara em Coimbra, por ocasião do Congresso, no dia 11 de Julho pedi
a exoneração do cargo de reitor, resolução a que fui levado pela
necessidade que tinha de descansar. Entreguei a reitoria ao Vice-reitor,
prof. Tavares de Lima, no dia 21 daquele mês. Afinal, nesse mesmo dia, o
"Diário" publicava a portaria da minha exoneração, que rezava assim:
«Exonerado, a seu pedido, do lugar de reitor, em cujo exercício prestou
serviços muito relevantes em beneficio do Ensino Secundário, pelos quais
se consignam justos louvores.» (Diário n.º 166). Finalmente, no dia 25
de Julho, o Conselho Escolar, reunido extraordinariamente, aprovou a
seguinte moção, cuja cópia, segundo resolução do Concelho, me foi
enviada para o Pinheiro da Bemposta, onde eu me encontrava:
«Considerando que o prof. José Tavares pediu a exoneração do cargo de
reitor do Liceu de José Estêvão; Considerando que o mesmo professor
exerceu esse cargo durante cinco anos com o completo agrado e simpatia
de todos os seus colegas; Considerando que o Dr. Tavares, no exercício
das suas funções, demonstrou raras qualidades de dirigente e se tem
imposto à consideração do
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Liceu e da cidade pelo carinho com que sempre cuidou dos interesses
morais e materiais deste estabelecimento de ensino; O Conselho Escolar
do Liceu de José Estêvão apresenta a S. Ex.ª a homenagem do seu respeito
e consideração.» O Conselho aprovou por unanimidade esta moção do prof.
José Barata e resolveu que dela fosse dado conhecimento ao Ministro da
Instrução.
* * *
A herança que eu legava ao sucessor não era leve, antes
se deveria tornar cada vez mais árdua. A disciplina escolar era
perfeita: à parte a expulsão, por um ano, de um aluno, vindo de outro
liceu, em virtude de atitudes menos correctas por ocasião da celebração
do 10 de Dezembro, fora eu somente obrigado a aplicar, durante os cinco
anos, uma outra leve penalidade. Quanto à harmonia do corpo docente,
havia, por infelicidade, um professor bastante conflituoso, Apolinário
José Leal, do 7.º grupo, com quem alguns mestres não falavam. Saí da
reitoria convencido de que entre esse professor e o novo reitor se iam
levantar grandes conflitos, dados os feitios muito diferentes de um e de
outro.
Na parte administrativa, deixei ficar tudo absolutamente
em dia. Contas atrasadas, por pagar, apenas uma, de oitocentos e tal
escudos, importância em que o citado prof. Apolinário excedera as
autorizações que eu lhe havia concedido para melhoramento do material de
Física, de cujo gabinete era director.
A organização dos estudos era geralmente tida como
defeituosa. Desejava-se uma reforma que eliminasse as deficiências e
anomalias da última legislação e que compendiasse, em regulamento, todos
os diplomas dispersos. Mas, sobretudo, sentia-se a tendência do Governo
para centralizar, cada vez mais, todos os serviços e para tomar dia a
dia mais difícil a nobre missão do educador. A censura, a desconfiança,
a imposição de doutrinas políticas e ideológicas estavam em desarmonia
com a missão do mestre, que é formar homens. Começava-se-lhe a exigir
que formasse hipócritas, e dele mesmo se exigia que o fosse, sob pena de
cair sob a alçada das novas leis. A Ditadura, tão bem recebida, ia-se
tomando odiosa para quem, como eu, se considerava homem livre. Maus dias
iam passar os que não pensassem pelo padrão governamental!...
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Era horrível!
Colaboradores tinha-os o novo Reitor, e bons: Francisco
de Assis Ferreira da Maia, secretário, a lealdade em pessoa; Álvaro
Sampaio, Luís Tavares de Lima, Serafim Pinto, Armando Dias Coimbra, etc.
__________________________________
(1)
– Refere-se aos desejos que expressáramos de o trazer para a nossa
companhia, para Aveiro.
(2)
– "Coroa de Rosas", poesias, que foi publicado por D. Mimi pouco depois
do funeral do irmão.
(3)
– No "Estado de S. Paulo", saíram, em 1925, duas séries de artigos de
Júlio Moreira, mas assinados por Carlos Duarte. Outros subscritos por
Desidério Gama: Carlos Duarte é o crítico literário; Desidério Gama é o
humorista cintilante. Artigos de C. Duarte: "Função Critica do Ódio",
"António Sardinha", "Duas Espécies de Ambição", "Riquezas
da Linguagem Popular", "Etimologias Populares" (2 art.), "Vicissitudes
da Imagem", "A Lição da Saudade", "A Amizade", "Risus
de Risibus" e "Quem se não reeduca deseduca-se". – Artigos de
Desidério Beça: "O Falso Blaguera", "Traições da Linguagem",
"Sentenciosos e sentenciadores", "Pensadores e Pensativos",
"Glórias e Gloríolas", "A Graça e os seus Perigos" e "A
Moda".
(4)
- Júlio Moreira
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