VI
Entrei no Liceu de Aveiro, como professor agregado, no
dia 1 de Novembro. Não foi sem comoção que o antigo aluno se encontrou
com antigos mestres seus: com o Dr. Álvaro de Messa Coutinho de Almeida
de Eça (Reitor), Dr. Eduardo Silva, Alexandre Pereira da Cunha e Sousa,
Padre Manuel Rodrigues Vieira e Dr. Elias Fernandes
Pereira (Secretário) (1).
Foi-me entregue, como já disse, o serviço deixado pelo prof. João
Ferreira Gomes. Além de turmas de Português e Latim (4.ª e 5.ª3
classes), herdei duas turmas de Matemática e Desenho da 2.ª classe! Para
quem desejava aperfeiçoar-se nas disciplinas do seu grupo, era de
desanimar!
O Liceu estava disciplinado: os professores viviam em
harmonia e estimavam geralmente o Reitor, e não havia, entre a população
discente, nada que se parecesse com o estado de permanente indisciplina
do Liceu que eu deixara. Mantinham-se, porém, costumes um tanto
obsoletos. A chamada para as aulas, por exemplo, fazia-se à medida que
os professores se iam dirigindo para as respectivas salas, por tantos
toques de sineta quantas as turmas; de modo que não raro se ouvia o
sinal de chamada vinte minutos antes de terminar o tempo lectivo. Uma
grande bambochata!
Os alunos que me couberam em sorte estavam habituados a
chamadas à lição em determinados dias e a só estudarem, portanto,
segundo os palpites... Nas cadernetas que recebi do prof. Ferreira
Gomes, achavam-se exaradas notas de chamada de 12 e 13 valores,
atribuídas a alunos que não sabiam literalmente nada. Passei, pois, à
categoria de fera, fama que se estendeu por bastante tempo, ou seja, até
à altura em que outros professores modernos foram chegando. Mais: um
professor provisório dava explicações a alunos externos, cuja
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aprovação conseguia depois, no fim do ano, mercê da influência que tinha
junto dos membros do júri. Finalmente, no ensino imperava a mais
profunda rotina.
Não me deixei contaminar: segui impávida e heroicamente o
caminho que traçara. No respeitante à chamada para as aulas, ainda
lembrei o sistema do toque único; mas a minha proposta, por demasiado
revolucionária, não encontrou eco. Compreendi que não podia modificar o
meio, tanto mais que a minha sugestão era a de simples professor
agregado; mas soube esperar...
* * *
O Liceu, elevado a Central por decreto de 18 de Novembro
de 1916, começou a funcionar como tal no dia 8 de Janeiro seguinte. No
novo horário, couberam-me vinte horas de serviço semanal. Continuava com
as disciplinas de Matemática e Desenho, mas recebia também a de
Literatura Portuguesa da 6.ª classe de Letras, aspiração já manifestada,
sem resultado, perante a reitoria do Liceu de Viseu, no início do ano
lectivo, quando ainda não suspeitava da possibilidade de colocação em
Aveiro. Esbarrei com uma grande dificuldade: queria ensinar Literatura,
fugir do rançoso processo, tão seguido, de exigir dos alunos
simplesmente o conhecimento da lista dos autores, das suas obras e dos
dados biográficos; mas a biblioteca do Liceu, bastante rica, ao que
parecia, em obras de carácter teológico, não possuía o mínimo
indispensável para o ensino moderno daquela disciplina. O Reitor
encarregou-me então dos trabalhos preliminares da actualização da
biblioteca. Por proposta minha, adquiriram-se bastantes volumes de
primeira necessidade, e os alunos de Literatura tiveram à sua
disposição, igualmente, a minha biblioteca particular. E assim se
começou, no Liceu de Aveiro, a ministrar o ensino daquela disciplina
pelo único processo recomendável...
* * *
Aberto concurso para professor efectivo do 1.º grupo do
Liceu de Angra do Heroísmo, nessa sinistra época da feroz guerra
submarina, concorri e, por decreto publicado no ““Diário do Governo”” de
6 de Abril de 1917, quase sem o
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esperar, fui nomeado! Estava efectivo! Já podia, como tal, falar nos
Conselhos!
No entretanto, deu-se vaga do meu grupo no Liceu de
Mouzinho da Silveira (Portalegre), a cujo concurso me apresentei e para
a qual fui nomeado. Posse... tomei-a eu em pessoa, no dia 25 de
Setembro, por sinal de horrível calor. De novo em Aveiro, estava
disposto a tudo para marchar com a família, quando o prof. Ferreira
Gomes, havia pouco colocado, como efectivo, no Liceu de Aveiro, e, por
conseguinte, na crítica situação de efectivo em estabelecimentos de
ensino de duas cidades, me propôs trabalhássemos para conseguir do
Ministro da Instrução (o aveirense Dr. Barbosa de Magalhães) uma dupla
permuta com o professor Amadeu da Silva, de Viseu, que ia abandonar o
ensino para seguir a carreira diplomática! Abracei com entusiasmo a
proposta e fui a Lisboa tratar do assunto. Depois de vencidos os
escrúpulos do Ministro, foi enfim assinado o despacho de permuta, em
virtude do qual eu ficava em Aveiro, o prof. Ferreira Gomes em Viseu e o
prof. Amadeu da Silva em Portalegre. E assim, no dia 17 de Outubro
entrei ao serviço no Liceu de Aveiro, tendo a meu cargo a regência de
vinte e seis horas semanais. Dois dias depois, era o despacho publicado
no “Diário do Governo".
* * *
Quando em 1916 cheguei a Aveiro, vigorava o plano de
estudos de 29 de Agosto de 1905 – Curso Geral com cinco classes e
bifurcação de Letras e Ciências na 6.ª e 7.ª. No dia 18 de Abril de
1917, foi publicado o decreto n.º 3091, que remodelou o Ensino
Secundário (Min. da Instrução – Joaquim Pedro Martins). Com esse
decreto, primeiro do regime republicano em matéria de ensino liceal e
que verdadeiramente o honra, tinha-se em vista a elevação da cultura dos
alunos e consequente selecção das competências. Nele se estabeleciam 3
horas de Português em cada uma das 6.ª e 7.ª classes de Ciências, onde
também figuravam duas horas de Filosofia; na 6.ª e 7.ª de Letras, havia
4 1/2 horas de Ciências Físicas e Naturais. Além disso, determinava-se
que os alunos que nas provas escritas de mais de duas disciplinas
obtivessem qualificação inferior a
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10 valores ficassem reprovados, e acabava-se com o regime das "esperas",
visto que o aluno que na prova oral de cada disciplina não obtivesse a
qualificação de 10 valores, pelo menos, se considerava reprovado.
Estas e outras disposições do citado decreto foram a
causa da greve académica que rebentou em princípios de Novembro de 1917
e perturbou a vida escolar dos liceus a ponto de eles terem de ser
mandados encerrar pelo Governo (Min. da Instrução – Barbosa de
Magalhães).
A algumas das reclamações dos estudantes e de pais e
encarregados da educação procurou dar satisfação o decreto n.º 3.592, de
22 de Novembro daquele ano, o qual todavia mantinha eliminatórias as
provas escritas, mas com menos rigor: seriam excluídos os alunos que
alcançassem em duas ou mais disciplinas médias inferiores a 6 valores no
exame do Curso Geral, 1.ª secção (3.ª classe); a 8 valores no exame do
Curso Geral, 2.ª secção (5.ªa classe) e a 10 valores no exame de
qualquer dos Cursos Complementares.
Com a vitória do movimento revolucionário de Sidónio
Pais, em princípio de Dezembro, os alunos liceais, que, apesar do
decreto n.º 3592, ainda se mantinham rebelados, conseguiram a revogação
das disposições com que não se conformavam. Decreto da Junta
Revolucionária, de 10 de Dezembro, suspende a execução dos decs. 3091 e
3592, ao mesmo tempo que se ordena a reabertura dos liceus, se abonam as
faltas dadas pelos alunos grevistas e se trancam os processos
instaurados por motivo dos acontecimentos.
Para não alterar a cronologia, deve referir-se aqui uma
conquista, que, mercê do auxílio do professor efectivo novo, o Dr.
Rebelo de Queirós, finalmente consegui: a partir do dia 18 de Março de
1918, passaram os alunos a serem chamados para as aulas por toque único
da sineta! Deu isso lugar a cenas cómicas: nos primeiros dias, os velhos
professores não sabiam, positivamente, de que terra eram...
Com o decreto n.º 4799, de 8 de Setembro de 1918 (Min. da
Instrução Alfredo de Magalhães), novamente se reformou o Ensino
Secundário. Deixaram de ser
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eliminatórias as provas, mas não se ressuscitou o regímen das "esperas".
O art. 2670 do referido decreto rezava assim: "aluno que nas provas
orais tiver nota inferior a 10 valores em duas disciplinas ou nota
inferior a 6 valores em uma considera-se reprovado".
* * *
No entretanto, dão-se acontecimentos que se prendem com a
minha vida familiar. Meu irmão João, que no dia 24 de Fevereiro de 1917
partira para França, é feito prisioneiro dos alemães em 19 de Abril de
1918. De França, porém, o José Gamelas, médico miliciano, dando crédito
a simples boatos, escreveu-me uma carta em que me dava a notícia da
morte de meu irmão! Dias se passaram, até que, à meia-noite de 18 de
Maio, chegou um telegrama, por intermédio da Cruz Vermelha suíça, que
rezava assim: «prisonnier à Carlsruhe bien portant Jean»! À
suprema angústia sucedia uma alegria inefável!
Depois, os sucessos ocorrem vertiginosos: em 5 de
Setembro, torpedeamento do vapor Desertas, ex-alemão, encalhado no Sul
da Costa Nova, que os alemães pretendiam inutilizar, para impedirem o
seu projectado salvamento; […..]; no dia 11 de Novembro, veio a
indescritível alegria da notícia da assinatura do armistício entre a
Alemanha e os Aliados, que punha termo no grande prélio mundial; no dia
14, o assassínio do Presidente Sidónio Pais, na ocasião em que, no
Rossio, tomava comboio para o Porto; em 19 de Janeiro seguinte, Paiva
Couceiro proclamava a Monarquia na capital do Norte e constitui
governo...
Meu irmão João, repatriado da Alemanha depois de ter
demorado uns vinte dias na Holanda, chega a Aveiro, em plena luta civil
de monárquicos e republicanos, em 12 de Fevereiro, isto é, na véspera em
que a República é restabelecida no Porto, acto que, com a refrega de
Monsanto e a submissão de outros focos de rebelião, vibrou o golpe de
misericórdia na malfadada e criminosa aventura couceirista.
Vivi dias de intenso nervosismo nesse período que decorre
de 19 de Janeiro a 13 de Fevereiro, durante o qual a cidade de Aveiro
esteve em pé de guerra e
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foi o local de refúgio para inúmeros republicanos, que do Norte iam
escapando à sanha dos denominados "trauliteiros".
* * *
Mercê do crescente aumento da frequência do Liceu, foi
preciso ampliá-lo. Pelo decreto n.º 5490, publicado no “Diário do
Governo” de 29 de Abril de 1919, o Governo determinou a compra do
edifício anexo, sempre assim designado para o futuro. Nele começaram
imediatamente as obras de adaptação, muito ligeiras, para funcionamento
das primeiras classes.
Em 25 de Setembro, saiu o decreto n.º 6128, que originou
uma monstruosidade pedagógica (Min. da Instrução – Joaquim de Oliveira).
Por ele se determinava que o aluno de qualquer classe a quem no ano
anterior (1918-1919) fora aplicada a doutrina dos art.º 2030 e 2670 do
dec. N.º 4799 (Alfr. de Magalhães), fosse considerado como tendo obtido
a média final de 10 valores, desde que em todas as disciplinas, menos
três o máximo, houvesse obtido média de passagem. Nos considerandos
justificativos do decreto, fala-se na alteração da ordem pública,
provocada pelos especuladores monárquicos, perturbadora dos trabalhos
escolares; na invasão da gripe pneumónica, que forçara o Governo a
mandar encerrar muitos liceus; nos interesses legítimos dos estudantes,
que transparecia nas representações dos encarregados da educação; e,
ainda, nas opiniões das entidades competentes, que, consultadas, se não
haviam oposto... Desta forma, transitariam para a classe imediata muitas
turmas de alunos incompetentes, que tinham sido reprovados em duas e em
três disciplinas, quer em exames...
Contra tal decreto, de que tivera conhecimento em
Espinho, apresentei no primeiro Conselho Escolar de 1919-1920 uma moção
de protesto, para ser enviada ao Ministério; mas o Reitor entendeu que
eu a devia retirar... Dessa forma, não pôde o Conselho Escolar
enfileirar ao lado de outros que contra a referida medida governamental
desassombradamente se pronunciaram. Bons tempos!
/
67 /
* * *
A minha política havia muito estava definida:
republicano. Nenhumas ambições tinha, porém, não esperava nada da
República a que pelas minhas habilitações não tivesse direito; e,
tratando da minha colocação no Liceu de Aveiro, não invoquei, para o
conseguir, o meu republicanismo, nem o Ministro Barbosa de Magalhães
sobre tal me interrogou. Apesar disso, no próprio dia em que, como
efectivo, tomei conta do serviço que me era destinado, escrevia-me o
Ministro da Instrução a seguinte carta: «Meu caro amº: trata-se de
organizar a lista democrática para a próxima eleição municipal nessa
cidade, e pensando no assunto, que mt. me interessa, pois desejo que a
representação do meu partido seja a melhor possível, de pessoas de
categoria, sérias e inteligentes, lembrei-me de si para fazer parte
dessa representação. Mtº estimarei ver o seu nome na lista e por isso
lhe venho perguntar se permite que nela seja incluído. Espero que a sua
resposta seja afirmativa, porque nesta hora difícil ninguém tem o
direito de se recusar a tomar os postos que lhe compitam, e mt.º menos
os professores. Não é apenas ao partido democrático que o meu amº irá
prestar um serviço; é também a essa cidade e, portanto, ao paiz, ao qual
mal irá se todos os que pela sua situação mais lhe devem ser úteis, o
não fôrem. Agradeço-lhe, pois, desde já a sua aquiescência, que me dará
mt. prazer. E aqui continua ao seu dispôr o seu mt. att. e ob., Barbosa
de Magalhães.» (17-10-17).
A minha resposta, como não poderia deixar de ser, foi
afirmativa. E assim me vi membro da Câmara e, inesperadamente, investido
no cargo de Presidente do Senado. Devo, desde já, declarar que nada fiz.
O Presidente da Câmara era o Dr. Lourenço Peixinho, que só em 1942, um
ano antes de falecer, e através das mais variadas vicissitudes
políticas, veio a ser exonerado do cargo.
* * *
Como Presidente do Senado, o meu acto mais importante foi
por ocasião da recepção, em sessão solene da Câmara, no dia 12 de
Outubro de 1919, a representantes do Município de Braga (Drs. Leão
Ferreira da Silva, Rodrigues Braga
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e Raul Barbosa), que a Aveiro vieram entregar as insígnias da Torre
Espada, galardão concedido à Cidade como homenagem pela sua atitude de
fidelidade ao regime por ocasião da luta entre monárquicos e
republicanos, em Janeiro-Fevereiro daquele ano. Visitaram Aveiro, nessa
ocasião, os ministros da Guerra (Hélder Ribeiro) e da Marinha (Silvério
da Rocha e Cunha) e tomou lugar honroso nas festas o general José
Domingues Peres, que fora, em Aveiro, o comandante das operações contra
os sediciosos. Antes da sessão solene, houve, em S. Jacinto, almoço de
homenagem aos visitantes. A sessão iniciou-se às 15 horas. E eu, tão
pouco fadado para discursos, tive de responder à saudação ("Noblesse
oblige"...) que o Presidente da Câmara de Braga dirigiu a
Aveiro. Do meu discurso, que foi publicado, integralmente, no "Campeão
das Províncias" de 25 de Outubro, transcreverei alguns passos, em
especial aqueles que o meu entusiasmo de rapaz então traçou e que ainda
hoje, com cinquenta e seis anos, escreveria, apenas um tanto atenuados
pela lição da experiência. Depois de saudar os visitantes e de me
referir ao motivo que a Aveiro os trouxera, li o seguinte: – «Recordar o
que foram os primeiros momentos que se seguiram à divulgação da notícia
da traição de Paiva Couceiro e de Solari Alegro; a rápida e inteligente
defesa das instituições; o ardor e a abnegação admiráveis com que muitos
civis acorreram espontaneamente a pegar em armas contra os rebeldes –
fora fastidioso, porque é do conhecimento de todos. Bélgica da
República já eu ouvi chamar a esta terra, e por vezes o vi escrito em
jornais. Não me seduzem estes paralelos; mas o que é certo é que se
Aveiro, só por si, não salvou a República porque a chave da defesa foi,
sem dúvida, Monsanto, impediu, contudo, que as forças de Paiva Couceiro
avançassem para o Sul do Vouga; provou que havia aqui dentro quem
estivesse disposto a defender o regime traiçoeiramente atacado por uma
horda de bandoleiros e, com a sua tenaz resistência, tomou possível a
repressão quase imediata da quixotesca aventura... Merece, por isso, a
cidade o reconhecimento dos poderes públicos, como aliás o de todos os
portugueses, pois tendo ajudado a salvar o país de uma monarquia, à
qual, para ser absoluta, nem sequer faltavam os caceteiros nem os
inquisidores, de uma monarquia que havia de ser retintamente
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clerical, furtou os cidadãos à contingência de verem assaltadas as suas
bolsas, e para o Sul do Vouga puderam ficar intactos os cofres do
Estado... Foi, na verdade, notável o papel desta cidade na defesa da
República; mas ingratidão seria não apontar os nomes dos indivíduos que
lançaram o grito da revolta e dos que, congregando-se com os primeiros
em redor da bandeira da Pátria, trabalharam com denodo pelo seu ideal.
Quem foram esses homens? Foi V.ª Ex.ª, Sr. Ministro da Marinha, a quem
eu vi, a quem todos viram desde o primeiro momento, radiante, feliz por
se haverem enfim extremado os campos e por no seu espírito haver a
profunda convicção de que a vitória final nos havia de pertencer; foi
V.ª Ex.ª Sr. General Peres, pondo-se imediatamente à disposição dos
republicanos para dirigir as primeiras operações contra os monárquicos,
sem procurar saber, nessas horas de acabrunhante ansiedade, qual a
atitude da guarnição de Coimbra, que talvez já não se conservasse fiel
como a de Aveiro; foi o sargento Lima, da Infantaria 24, que ali nos
Arcos, ao ter conhecimento da traição, em 19 de Janeiro, arrancou da
espada e, brandindo-a na mão convulsa, exclamou "Viva a República!"
–; foi o bravo alferes Robi, que em AIbergaria-a-Velha aprisionou os
primeiros automóveis dos chamados trauliteiros, e foi o sargento
Couceiro, que, com outros, arrancou dos Paços do Concelho daquela vila a
bandeira dos monárquicos, fazendo novamente tremular a da Pátria; foram
os indivíduos que constituíram a Junta republicana de defesa do distrito
de Aveiro, os quais assinaram a primeira proclamação dirigida ao povo
republicano, chamando-o ao cumprimento do seu dever os Drs. André dos
Reis, Alberto Souto e Rui da Cunha e Costa, e os Snrs. José Casimiro da
Silva, director da Escola Normal de Aveiro, Bernardo Tôrres e Alfredo
Osório; foram os voluntários civis, que altiva e entusiasticamente,
quando tudo era ainda incerteza, se encaminharam para o quartel de
Infantaria, a fim de receberem instrução rápida e armamento; foram os
oficiais da guarnição de Aveiro; foram os sargentos, com a absoluta
fidelidade ao regime e com a sua alma republicana; foi o punhado de
marinheiros da capitania de Aveiro e a Guarda Fiscal; foi a pequena, mas
valentíssima guarda-avançada de Ovar, com o Dr. Pedro Chaves à frente;
poderia mesmo dizer que foram os outros republicanos, que, com
/ 70 /
o seu entusiasmo, e com a sua fé, se mostraram como tais à luz do Sol.
Sem todo esse ardor, sem toda essa dedicação, sem toda essa fé imensa, a
monarquia teria sido um facto em Aveiro, e a sua liquidação final
haveria sido muito demorada. Aveiro cumpriu o seu dever. A cidade de
Aveiro, cujas tradições são, aliás, eminentemente liberais, pode ser
apontada como exemplo.»
Frisei, depois, que o problema nacional é um problema
educativo; agradeci a presença dos ministros; mostrei quanto nos
sensibilizava a distinção conferida pela Câmara de Braga, e terminei
assim: "Aveirenses! Temos aqui, junto de nós, a honrar-nos com a sua
presença, o Ex.º Ministro da Guerra, Major Hélder Ribeiro, um dos
valentes que em 4 e 5 de Outubro de 1910 se bateram em Lisboa pelo
advento da República e um bravo militar que em França combateu o feroz
militarismo alemão. Aí está também o Ex.º General Domingues Peres,
actual Comandante da 8.ª Divisão do exército, que em Aveiro, como já
disse, desempenhou tão notável papel na defesa das instituições. Viva o
Exército da República! O brioso Capitão-Tenente, Ex.º Sr. Silvério da
Rocha e Cunha, ministro da Marinha, português de rija têmpera e
republicano como os que o são, é bem a encarnação perfeita da valentia e
da abnegação patriótica dos nossos marinheiros. Viva a Marinha
Portuguesa! O terceiro viva é daqueles que há um ano se não podiam
soltar impunemente em toda a parte, porque se corria o risco de ir para
a cadeia. É este: Viva República Portuguesa!"
* * *
Nas minhas aulas, logo desde 1917, não me cansava de
aconselhar os alunos mais adiantados a ocuparem as suas horas de ócio em
coisas úteis, por exemplo na organização de récitas académicas. Em fins
de 1919, alunos das 6.ª e 7.ª classes procuraram-me para me dizer
estarem dispostos a pôr em execução o meu conselho. Com a aquiescência
do Reitor, tomei a direcção do grupo cénico e aí me vejo eu arvorado em
ensaiador! Pus então em prática uma ideia que havia muito nascera em meu
espírito: a organização de récitas em que se exemplificasse o nosso
teatro clássico.
/
71 /
Escolhi, para a primeira dessas representações o
Monólogo do Vaqueiro, de Gil Vicente, em tradução do aluno da 5.ª"
classe, António Augusto Cruzeiro (António de Cértima); a Exortação da
Guerra, do mesmo autor, com prólogo explicativo, da minha autoria; a
terceira jornada do Fidalgo Aprendiz, de D. Francisco Manuel de
Melo, também precedido de prólogo; e, para amenizar, escrevi uma comédia
– O Lobo e as Raposas, fundada em caso de "conto do vigário" de
que recentemente havia sido vítima pessoa do meu conhecimento. Esse
espectáculo, que obteve grande sucesso, realizou-se no Teatro Aveirense
no dia 6 de Março de 1920 e foi precedido de uma conferência minha – «Gil
Vicente e a Origem do Teatro Português» – que, pouco depois dei à
estampa, dedicando-a a todos os componentes do grupo cénico. Não devo
deixar de me referir ao incidente desagradável que essa conferência
originou. Com a cena já aberta perante a casa à cunha, pretendi
reproduzir, de cor, o que escrevera... Impossível! Uma súbita amnésia,
provocada talvez pelo excesso de trabalho resultante dos ensaios e
preparativos para a récita, incapacitou-me de pronunciar sequer uma
palavra! O pano desceu, e só voltou a subir quando eu, já munido dos
linguados de papel que continham o meu trabalho, me apresentei para o
ler. Passara-se tudo, talvez, em dois minutos... Foi essa cena, não
esperada pelos espectadores, que levou um plumitivo da terra, que se
tinha na conta de jornalista, a dizer, mais tarde, que eu, quando
falava, sucumbia... Descontada a influência da antipatia que o sujeito
me votava, declararei que o homem não deixava de ter sua razão: durante
muito tempo, senti – e ainda hoje isso por vezes me acontece – certa
perturbação e nervosismo quando tenho de me defrontar, pela palavra, com
o público. Não obstante isso, a prática já me tem levado algumas vezes a
falar sem auxílio de papéis, e até, pela força das circunstâncias, a
fazê-lo de improviso.
O bom êxito desta récita levou-me a organizar outra, que
veio a realizar-se no dia 11 de Maio desse ano, com novos actores a
engrossar o elenco. Constituiu esse segundo espectáculo a Farsa de
Inês Pereira, de Gil Vicente; uma cena da Vida do Grande D.
Quixote de la Mancha e do Gordo Sancho Pança,
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de António José da Silva; a peça de Francisco Palha – A Morte de
Catimbau; e um episódio da entrada de Portugal na guerra, que para a
récita escrevi e se intitulava – Sacrifício de Abraão.
No dia 15 a 23 de Maio, fez o grupo uma excursão a Braga
(dias 15 e 16), Viana do Castelo (dia 17), Guimarães (dia 19) e Viseu
(dia 23) e representou em cada uma dessas cidades o Monólogo do
Vaqueiro, a Exortação da Guerra, a Inês Pereira e
ainda a minha atrás citada comédia de O Lobo e as Raposas.
O trabalho do grupo e do ensaiador foi muito
lisonjeiramente apreciado por um crítico bracarense, que no "Diário do
Minho", do dia 22 de Maio, em artigo intitulado "Gil Vicente em Braga",
escreveu: «Gil Vicente, o mestre da cena portuguesa, é múmia que o tempo
religiosamente conserva; é espectro que se anima e vivifica numa
ressurreição bendita em que tão empenhada anda a mocidade estudiosa de
Aveiro, interpretando-lhe as peças com algum rigor, bastante precisão
até, no interesse único de despertar a combalida alma nacional, sacudir
o espírito dum povo que foi grande e se deixou adormecer ao marulhar das
águas do Atlântico, se amorteceu em lassidão criminosa ao sol do
meio-dia. Há coisa de oito dias, Gil Vicente passou por nós ali, no
Teatro Circo, já velho, mas ainda correcto; mordaz, mas ainda justo.
Vimo-lo no seu porte desempenado, ouvimo-lo na sua linguagem altiva. Os
estudantes da Bacia-Vouga não podiam ser mais felizes: revelaram bom
gosto, foram genuinamente portugueses nos seus intuitos, mostraram-se
senhores absolutos dos seus papéis. Ensaiou-os o seu inteligente
professor Dr. José Tavares, autor do prólogo que, gizado ao sabor
vicentino, nos diz do significado das personagens, nos convida a
transportarmo-nos aos venturosos tempos de D. Manuel I, nos pede
indulgências para as faltas e nos anuncia que o pano vai subir. E subiu
bem para nos mostrar o século XVI em toda a sua pujança, o nosso áureo
período em todo o seu esplendor. Nós, o público, fomos grandes, que
éramos a corte de 1513, - princesas e açafatas nos camarotes, príncipes
e conselheiros na plateia.»
E o crítico segue depois na análise das peças e depois
termina assim: «Recolhe Gil Vicente, é certo, mas a gente moça fica a
chorar saudades, cantando
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fados. Os rapazes são almas de luar vestidos de preto, capas onde
brilham estrelas que são olhos de mulher, olhos que lhes vão no coração
com o ruído de aplausos e palmas merecidas, a todos indistintamente,
graças ao esforço simpático do seu mestre Dr. José Tavares, juiz da
festa, portuguesa de lei pela nobreza do intuito: aprender no passado a
viver no presente, semeando com arte e apurado gosto a beleza que há-de
preparar o futuro.»
Em Viseu, inversamente, um bronco redactor da "Voz do
Operário" deitou artigo, em que dizia andar um grupo de alunos do Liceu
de Aveiro a fazer propaganda jesuítica... Mas o mais desagradável, nessa
cidade, foi o seguinte: depois de apoteoticamente recebido na estação de
caminho de ferro, o grupo cénico teve as honras da sessão solene no
Liceu, a que presidiu o Governador Civil. Constituída a mesa, quando o
Reitor se propunha dirigir a sua saudação aos excursionistas, não o
conseguiu, tal o barulho e a assuada que os alunos visienses faziam, aos
gritos de "Abaixo o Reitor! Abaixo o Barbas-de-Aço!", Era bem a mesma
indisciplina, observada por mim cerca de quatro anos antes, ou
porventura ainda mais agravada... Cena idêntica se deu no dia seguinte,
na ocasião em que o Reitor nos quis saudar no "copo de água" com que lhe
aprouve distinguir-nos. Os alunos não o deixaram falar, afogando-lhe as
palavras iniciais do brinde com os gritos já nossos conhecidos, de –
"Abaixo o Reitor! Abaixo o Barbas-de-Aço!".
Em Junho desse mesmo ano, fui convidado pelo Comandante
da Infantaria n.º 24 a falar numa sessão solene de homenagem aos
soldados portugueses, mortos da Grande Guerra, que veio a realizar-se,
no respectivo quartel, no dia 10. O discurso que então li, frisando a
política seguida pelo nosso país nos conflitos europeus, enaltecendo a
acção do nosso exército na Guerra e afirmando que "os homens que estavam
à frente dos destinos de Portugal, quando a Alemanha se nos declarou
inimiga, tiveram em vista os altos interesses nacionais", foi publicado
no "Campeão" do dia 19 daquele mês. Nessa sessão falaram também o Dr.
Joaquim de Melo Freitas e meu irmão João, então tenente.
/
74 /
* * *
Voltando a assuntos pedagógicos, cabe aqui referência ao
Dec. N.º 6675, de 12 de Junho de 1920 (Min. da Instrução – Vasco
Borges), que remodelou de novo o Ensino Secundário. Nele se mantinham
provas escritas não eliminatórias; no C. Complementar de Letras
figuraria a Matemática e no de Ciências a Filosofia.
Sobre Ensino Secundário, o diploma que a este se seguiu
foi o Dec. N.º 7558, de 18 de Junho de 1921 (Min. da Instrução –
Ginestal Machado), que regulamenta os serviços e grande parte de cujos
artigos ainda hoje (Dezembro de 1943...) estão em vigor...
* * *
No dia 10 de Abril de 1921, tive o inefável prazer de
assistir, na Batalha, à comovente cerimónia em honra dos Soldados
Desconhecidos. Acompanhou-me minha mulher, e foram nossos excelentes
companheiros de viagem (9, 10 e 11 daquele mês) o Dr. André dos Reis e
Esposa e o irmão dele, Artur dos Reis. Em Leiria, fomos hóspedes, eu e
minha mulher, do meu antigo condiscípulo Dr. José Saraiva, ao tempo
professor do Liceu daquela cidade. Como eu era o representante da Câmara
de Aveiro e o Dr. André dos Reis ia representar a Junta Geral do
Distrito de Aveiro, incorporámo-nos no grandioso e patriótico cortejo,
organizado a uns três quilómetros do Mosteiro, e assim pudemos penetrar
no majestoso templo e assistir a parte da impressionantíssima
manifestação. Vieram nessa ocasião a Portugal, para se associarem às
festas ordenadas pelo Governo, o Marechal Jofre, herói do Marne; o
Generalíssimo Diaz, italiano; e o General inglês, Smith Dorrien.
Pode fazer-se ideia da imponência do cortejo pela leitura
das Instruções, que copio no respectivo programa, subscrito pelo
Comandante da Divisão. Dizia o seguinte:
«A concentração para a organização do cortejo far-se-à no
largo da capela de Santo Antão, na estrada Leiria-Batalha, sendo os
diferentes lugares indicados por tabuletas numeradas. – Os carros de
coroas e palmas, à medida que
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atingirem o chafariz da Batalha, pararão o tempo indispensável para que
elas sejam retiradas e entregues a oficiais que estiveram na Grande
Guerra, que as receberão como representantes dos seus camaradas, cuja
glória se glorifica, devendo dirigir-se para o catafalco. – À chegada
dos armões à escadaria do Mosteiro, serão deles retirados os Heróis por
oficiais combatentes na Grande Guerra; e, ao toque da continência feito
por todos os corneteiros que no cortejo formaram grupo e ao som do Hino
Nacional, tocado por todas as bandas, apresentarão armas todas as
tropas; e, salvando a artilharia, conduzidas por oficiais generais, para
este fim convidados, darão entrada no Mosteiro por entre as bandeiras e
estandartes inclinados, sendo os Heróis colocados no catafalco. Quando
salve a artilharia, todos os sinos da Batalha e das povoações próximas,
que os tenham, deverão repicar festivamente, lembrando ao povo o acto de
gratidão que a Nação acaba de prestar, glorificando os dois Heróis
Desconhecidos, os Nossos Queridos Mortos na Grande Guerra. – Terminadas
as homenagens da Igreja, seguirão os Heróis para a sala do capítulo,
conduzidos por outros oficiais generais de terra e mar, sendo naquela
sala depostos e ladeados por bandeiras, estandartes, coroas e palmas.
Seguidamente, Sua Ex8 o Ministro da Guerra fará ali a apologia dos
Imortais Soldados, finda a qual ficarão expostos, rodeados de todas as
palmas o coroas. – Os contingentes, logo que atinjam a frente do
Mosteiro, seguirão pela estrada velha que liga a Batalha à estrada
Alcobaça-Leiria, a prolongar o flanco esquerdo das forças em guarda de
honra. – Às 11 horas, todas as forças estarão em formatura nos locais
que lhes são determinados. – Oficiais da guarnição de Leiria regularão a
entrada de individualidades e colectividades nos talhões que por este
programa lhes são indicados e a sua incorporação no cortejo.».
Foi imponentíssimo o momento da entrada dos féretros no
Mosteiro. Quando a artilharia começou a troar e os sinos do Convento a
repicar, ao som da "Portuguesa", fez-se completo silêncio em toda a
multidão dos que totalmente cobriam os terrenos marginais da estrada, e
poucos olhos terão, por certo, ficado enxutos. Espectáculo sublime e
indescritível!
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O Presidente da República, Dr. António José de Almeida,
pronunciou, a respeito dos Heróis Desconhecidos, no dia 7 de Abril, dois
notabilíssimos discursos, que em Outubro desse ano a Imprensa Nacional
editou (6 exemplares em papel Whatman, 100 em papel "couché" e 1000 em
papel de linho). Para fechar esta pálida evocação do histórico e cívico
acontecimento, transcrevo aqui dois passos dessas admiráveis peças
oratórias. Seja o primeiro, da oração dirigida ao Congresso:
«Sobretudo, são gémeos os serranos e o Infante Santo.
Porque o Infante, morto pela Pátria, como refém, para que não se
perdesse Ceuta, uma parcela de Portugal, morto em holocausto, de morte
resignada e dolorosa, e os serranos, que caíram nas trincheiras e no
sertão, realizando o seu sacrifício com melancólico, saudoso, mas
impertérito heroísmo, são dignos de que a gratidão nacional
perpetuamente os irmane como expressão intangível desse princípio
sagrado de que, perante a integridade e a independência da Pátria, nada
há que prevaleça além da obrigação de morrer, servindo-a. Que a mesma
bênção os cubra a todos!»
O segundo excerto pertence ao discurso proferido, no
mesmo dia, no átrio do Congresso, perante as urnas que continham os
sagrados despojos vindos da França e da África: – «Povo! Grande Povo! É
para ti que falo agora. Comove-te e chora lágrimas de saudade sobre os
despojos dos teus filhos, porque eles são pedaços do teu ser; mas ergue
também a fronte, ergue-a com altivez e soberba, porque eles são dignos
de ti, rebentos heróicos da tua Raça. Traze-lhes ramos de loiro;
traze-lhes açucenas e rosas: loiros para o seu forte heroísmo, açucenas
e rosas para a sua virtude indomável. Aqui está, em volta do seu corpo,
comovido e silente, na ansiedade de uma celebração votiva, tudo o que
pode representar a Raça, tudo o que pode simbolizar a Pátria. Aqui estão
os Embaixadores, Ministros e Delegados especiais das Nações Aliadas e
amigas, que lhes prestam, reconhecidas, a homenagem de gratidão.
Bandeiras dos exércitos aliados, que as balas furaram nos campos de
batalha; pavilhões, estandartes, que os tufões de fogo rasgaram nos
combates do mar; símbolos augustos
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do génio guerreiro dos que foram seus companheiros de armas, aqui vieram
para lhes beijar o ataúde. Heróicas espadas sangrentas, que fizeram a
vitória, regando o horizonte de um futuro novo, aqui vieram para lhes
fazer continência. Junto a eles, tudo se curva, tudo se rende. Homenagem
magnífica, como as que se prestam aos semi-deuses, apoteose sem igual,
que remoça e dá esplendor a virtudes imperecíveis.»
* * *
No início do ano lectivo de 1920 - 1921, entrou no Liceu
de Aveiro, como efectivo, o professor Álvaro Sampaio, do 6.º grupo, que
logo se revelou competentíssimo, muito dinâmico e cumpridor, e muito
sério! Estava com a minha gente, para arrancar o Liceu do marasmo em que
caíra... Álvaro Sampaio começou imediatamente a montar o Gabinete de
Ciências Naturais em moldes modernos; e, em anos sucessivos, levou por
diante o seu projecto. Lançada por mim, para aquele ano, a organização
de festas camonianas, imediatamente aquele professor a abraçou, mas não
sem lembrar números novos... Em reunião do corpo docente, assentou-se em
que houvesse sessão solene, sarau, quermesse e, a fechar o ciclo de
festas, baile oferecido às entidades oficiais e às pessoas de
representação da cidade, cujas despesas ficariam a cargo dos
professores. A proposta foi aprovada por unanimidade, menos no
respeitante ao baile, que não obteve a sanção de um professor, nada de
bailes e pouco propenso a largar dinheiro...
As festas constaram do seguinte:
Dia 10: à tarde, sessão solene, na biblioteca do Liceu,
com conferência minha acerca de "Camões e os Lusíadas"; à noite, no
Teatro Aveirense, sarau de gala, com o seguinte programa: Alocução
patriótica do prof. provisório Dr. José Barata; números de orfeão;
marcha de Ginástica; a comédia de Garrett – Falar verdade a mentir
– e a opereta de Lehar, em um acto – A Filha da Senhora Angot.
Dias 11 e 12: quermesse na cerca do Liceu. – Dia 13: Imponentíssimo
baile na sala da biblioteca, onde se reuniu tudo quanto Aveiro tinha de
mais
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distinto. Com ele se conseguiu o que se pretendia: ligar a cidade ao seu
Liceu!
* * *
Ao passar pelas mãos todos os volumes que constituíam o
fundo da biblioteca do Liceu – a maior parte, em grande parte,
proveniente da livraria do Paço Episcopal, encontrei um exemplar das "Obras
Métricas" de D. Francisco Manuel de Melo (1665), que eu nunca vira.
Desse volume, quase totalmente inutilizado pela traça, resolvi tirar
cópias da parte portuguesa ("Segundas Três Musas de Melodino"),
da qual em seguida extrai uma colectânea, no intuito de a dar à estampa,
tornando assim conhecido, como poeta, o notável polígrafo do séc. XVII.
Organizado o trabalho, dirigi-me à Companhia Portuguesa Editora, do
Porto, que o aceitou e publicou em Novembro de 1921. Intitula-se essa
obra de vulgarização O Poeta Melodino (D. Francisco Manuel de MeIo –
Rimas Portuguesas (sonetos, éclogas, cartas, poesias várias, farsa
do Fidalgo Aprendiz) e Orações Académicas. Infelizmente, o volume, de
304 páginas, tem mau aspecto gráfico e foi impresso em papel bastante
ordinário. A crítica feita a esse trabalho foi, toda ela, muito
pobrezinha, a não ser a que se dignou dedicar-lhe o professor Rodrigues
Lapa, no volume 25.º da “Revista Lusitana” (1923-1925), a pág. 317 -
318. Devi também inteligentes reparos ao professor Hernâni Cidade,
feitos em carta particular.
* * *
Em Junho de 1922, novas festas camonianas foram
organizadas por mim e pelo prof. Sampaio, cujo programa foi o seguinte:
Dia 10 – Sessão solene, na biblioteca, em que falámos eu
(tema: "Camões Comediógrafo") e o prof. Mendonça Monteiro; dia 11 –
Exposição de trabalhos dos alunos, e gincana na área do Liceu e, à
noite, no teatro, sarau. Fazendo o relato das festas, no "Povo de
Aveiro", do dia 25 daquele mês, o jornalista Homem Cristo terminava
assim: "Esta exposição de trabalhos deixou-nos muito bem impressionados,
pois vê-se que no Liceu de Aveiro, ao contrário do que supúnhamos, se
trabalha inteligentemente e com zelo muito notável. Os
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senhores reitor e professores e os próprios alunos são dignos do mais
vivo aplauso".
Em Agosto desse ano de 1922, fui nomeado para ir fazer
exames no Liceu de Rodrigues de Freitas, onde presidi a um júri da 2.ª
classe e entrei, como vogal, em outro júri de exames de admissão. Aí me
encontrei com o meu antigo mestre Pe Correia e me relacionei
com os professores Augusto César Pires de Lima e Pe Júlio
Albino Ferreira, autor de notáveis compêndios de Inglês, oficialmente
aprovados. Durante os vinte dias que demorei na cidade do Porto, privei
sempre com o meu velho amigo Júlio Moreira, em cuja casa não dormi, por
falta de quarto, mas onde comia, por imposição do dono... Nas horas
vagas, demo-nos à extravagância de escrever uma peça – Transviados
– de que guardo a única cópia que dela se fez. Daí por diante, as minhas
relações com aquele infeliz amigo tornaram-se cada vez mais íntimas, a
ponto de ser eu o único dos seus amigos com quem ele mais gostava de
conversar.
Em 2 de Setembro do mesmo ano, fui nomeado director
interino do Museu Regional de Aveiro, em substituição de Marques Gomes,
afastado do lugar em virtude de feroz perseguição de inimigos seus, que
teve por epílogo uma sindicância, nem sempre serena nos seus
processos... A posse foi-me dada no dia 24 de Outubro. Sentindo-me
deslocado, vim a pedir a exoneração em 16 de Dezembro de 1924, mas só me
deferiram o requerimento em Março de 1925.
* * *
No começo do ano lectivo de 1922-1923, lancei a ideia da
organização de uma série de conferências públicas, de carácter cultural,
feitas, já por individualidades notáveis, estranhas ao Liceu, já por
professores da casa. Para abrir a série, lembrei o nome do Dr. Fidelino
de Figueiredo, com quem já havia tempo mantinha correspondência, e fui
encarregado de fazer o convite. Fidelino de Figueiredo, com quem depois
passei a privar com mais intimidade, chegou a Aveiro no dia 9 de
Dezembro de 1922; e nessa noite leu na biblioteca do Liceu, perante
numeroso auditório, a sua conferência "Das Cartas como Género
Literário”,
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a que assistiram o escritor Antero de Figueiredo e o prof. José
Guerreiro Murta, que de Lisboa o acompanhou.
A segunda conferência fi-la eu, no dia 14 de Abril de
1923, sobre "História da Língua Portuguesa". Esse meu trabalho,
por conselho de Fidelino de Figueiredo, que me arranjou editor, foi
publicado em opúsculo, saído em princípio de Dezembro desse ano (Liv.
Armando Tavares, Calçada do Combro, Lisboa).
No dia 11 de Junho de 1923, na comemoração camoniana,
pronunciou o prof. Mendonça Monteiro a terceira conferência da série: "Determinantes
Etnográficas e Museológicas dos Descobrimentos".
* * *
Em 1923, publicou-me a Livraria Chardron (de Lello &
Irmão), do Porto, a minha – "Selecta de Textos Arcaicos e Medievais"
(6.ª classe do Liceu) , com que eu me apresentara no concurso de livros
para o Ensino Secundário, a qual foi aprovada pelo Governo (D. do Gov.
de 2 /1/ 1923).
Nesse mesmo ano, em Julho, apareceu à venda o trabalho
que Júlio Moreira publicou com o pseudónimo de Carlos Duarte: "Graça
Portuguesa", editada pela Livraria Clássica Editora, de Lisboa. Esta
referência a obra que não me pertence explica-se pela circunstância de
ter sido eu a única pessoa a quem ela foi lida em borrão e de a mim se
dever a importante publicação: Júlio Moreira, só depois de muito instado
por mim, se resolveu a dar à estampa esse produto das largas leituras e
estudos que durante mais de um ano fez. Devo dizer que o notável
trabalho recebeu as melhores referências da crítica, em especial da
brasileira. A inconfidência do editor desvendou o segredo do pseudónimo,
o que muito arreliou o meu querido amigo.
* * *
Em Outubro de 1923, eu e Álvaro Sampaio resolvemos
escrever uma revista de costumes locais, para ser levada à cena por
alunos e alunas do Liceu em
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benefício da Caixa Escolar. Mãos à obra, peça feita! O Pe
António Estêvão musicou vários números; aos restantes adaptou-se música
conhecida. A peça, em três actos, chamava-se "Pangloss em Aveiro",
designação proposta por mim e aprovada pelo meu colaborador.
Representou-se, no Teatro Aveirense, três vezes: nos dias 13 e 16 de
Fevereiro de 1924, a favor da Caixa Escolar; no dia 20, em benefício da
Companhia dos Bombeiros Voluntários. O êxito foi brilhante e determinou
o aparecimento de uma revista, chamada “A Caldeirada”, que o
grupo cénico do Clube dos Galitos pôs em cena, também com êxito, no
nosso Teatro, e chegou a representar em Coimbra e no Porto.
* * *
Por iniciativa de Álvaro Sampaio, veio ao liceu fazer uma
conferência sobre "Dunas da Costa Portuguesa e sua Fixação" o Dr.
Luís Carriço, da Fac. de Ciências de Coimbra (6 de Fevereiro de 1925).
Assim ia prosseguindo o programa das conferências culturais...
Nesse ano, a 16 de Março, comemorou o Liceu o 1.º
centenário do nascimento de Camilo. Na sessão solene, leu o Dr. Jaime de
Magalhães Lima, com quem eu travara relações em 1918, o seu
notabilíssimo trabalho "Camilo e a Renovação de Sentimento Nacional",
depois integralmente publicado no jornal "O Debate",
do qual se tirou separata
(2).
As conferências continuavam... No dia 14 de Maio do mesmo
ano, por sugestão minha e a meu pedido, veio o Dr. Joaquim de Carvalho
dar a sua colaboração. Dele me aproximava a generosa amizade de Fidelino
de Figueiredo. A conferência do ilustre professor da Fac. de Letras de
Coimbra "O Terramoto de 1755 e a Filosofia do século XVIII",
apesar de ser trabalho notabilíssimo, não despertou na cidade o
interesse que merecia. Comecei a convencer-me de que Aveiro, em matéria
de cultura, cansa-se depressa!
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Nessa altura, já eu me carteava com o ilustre filólogo
brasileiro, Dr. Mário Barreto. Lembrara-me Júlio Moreira que eu enviasse
àquele professor um exemplar da minha "História da Língua Portuguesa".
Daí por diante, fiquei ligado à amizade do notável homem de letras, com
quem vim a trocar bastante correspondência, a propósito da minha
colaboração, a seu pedido, na “Revista de Filologia Portuguesa” (S.
Paulo), de que era director. Lá publiquei um pequeno estudo sobre "Fonética
Sintáctica" (Maio de 1925) e os dois primeiros actos da comédia
manuscrita de António Denis da Cruz e Silva – O Falso Heroísmo ou D.
Guifal de Montalto, variante de O Falso
Heroísmo, pertencente à livraria da casa Sacchetti, de Aveiro
(3). – Ao mesmo
tempo, relacionei-me também com os filólogos Drs. Sousa da Silveira, e
Silva Ramos, de quem tive o prazer de receber cartas e livros.
* * *
Em Junho de 1925, novamente se comemorou, com certo
brilho, o aniversário da morte de Camões. No dia 10, conferência do Dr.
Hernâni Cidade, da Fac. de Letras do Porto, sobre "A Obra Épica e
Lírica de Camões"; nos dias 11 e 12, quermesse na cerca do Liceu, no
dia 13, baile na sala da biblioteca; no dia 14 festa de recepção a
antigos alunos. O baile mereceu ao jornalista Homem Cristo censura
bastante azeda; mas toda a gente percebeu que a sua inesperada má
vontade contra o Liceu se explicava pela antipatia que votava ao
conferente!...
* * *
No entretanto, não corriam com regularidade os serviços
internos do Liceu. Mercê da sua precária saúde, o reitor, Álvaro de Eça,
só tarde aparecia, quando aparecia... De dia para dia, menos atenção
prestava aos diversos problemas pedagógicos e administrativos. O Liceu
estava, por assim dizer, sem cabeça...
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83 /
No dia 11 de Novembro de 1925, reuniu-se
extraordinariamente o Conselho Escolar, que resolveu representar ao
Governo no sentido de o chefe do estabelecimento ser substituído
interinamente, a fim de tratar da saúde; o professor Álvaro Sampaio
propôs que fosse indicada a minha pessoa para tomar conta do cargo.
Apesar, porém, dos termos em que a resolução do Conselho foi redigida,
só em 2 de Janeiro fui nomeado! Soube-se, depois, que elementos não
estranhos ao Liceu haviam pretendido pôr pedra sobre o assunto, ou
conseguir que a nomeação não recaísse sobre mim. Escusado é dizer que
não dei, acerca do assunto o mínimo passo!
Investido no cargo, logo me capacitei das
responsabilidades que sobre mim impendiam: tinha de trabalhar com afã
para carrilar a desconjuntada barcaça... Nas primeiras semanas, a maior
canseira consistiu na organização das contas do Conselho Administrativo,
atrasadas dois anos! O secretário do Liceu não teve uma hora de tréguas!
Mas enfim, em princípios de Abril, estava tudo mais ou menos em ordem.
Sabendo isso, apresentou-se o Reitor, inesperadamente, para retomar as
suas funções (10 de Abril); e, no dia 14, resolveu convocar o Conselho
Escolar e fez aprovar uma moção, em que se teciam elogios à minha
gerência...
Duas mortes de professores se deram neste lapso de tempo:
a do Dr. Eduardo Silva, em Janeiro, na ocasião em que um forte ataque de
gripe me retinha na cama; e o do Dr. Elias Pereira, em 5 de Abril. A
respeito deste professor, pronunciei no cemitério algumas palavras de
justiça, por ocasião do funeral.
Foi também durante a minha reitoria interina que eu e
Álvaro Sampaio lançámos a revista de ensino e extensão cultural –
“Labor” – que viria a ter grande expansão e a exercer notabilíssima
influência no ensino. Bastará citar a reorganização da combalida
Associação dos Professores Liceais e a realização dos Congressos do
Ensino Secundário, para provar que não éramos simples visionários
quando, mais uma vez, acamaradámos – e sempre em perfeita harmonia e
unidade de vistas – para honrar o Ensino Secundário e a nossa classe. O
nome da publicação, cujo primeiro número saiu em 18 de Janeiro de 1926,
foi-me
/ 84 /
sugerido pelo meu nunca esquecido amigo Júlio Moreira, em carta a que
pertencem estas palavras: «Folgo muito com as boas noticias da revista,
que, espalhando cultura, virá estimular as actividades intelectuais do
público e será simultaneamente órgão dos professores que trabalham a
sério no liceu e a sério tombam na sua nobre missão, – da revista
“Labor”, por consequência". Foi seu único administrador o professor
Armando Coimbra, e editor, durante algum tempo, Pedro Gradil, nomeado
para a vaga deixada por Eduardo Silva.
* * *
O movimento revolucionário do 28 de Maio de 1926, que
estabeleceu entre nós uma ditadura militar, veio modificar o regime
escolar dos liceus e imprimir à educação da mocidade, como provarei
adiante, orientação bastante diversa. À parte número reduzido de
indivíduos, todos os republicanos, embora desconhecessem os fins que os
revolucionários tinham em vista, se conformaram com os factos. A chefia
do Governo Civil de Aveiro foi entregue a um velho republicano ten.-cor.
médico, Dr. Manuel Rodrigues da Cruz, geralmente estimado nesta cidade.
Fui cumprimentá-lo ao Governo Civil, e lembro-me de que pronunciei esta
frase:
– Quere-se uma ditadura, inteligente, de cinco ou seis
anos.
[Cinco ou seis anos! Uma eternidade!... Afinal, já lá vão
dezassete, e ainda cá a temos!...]
Vem a propósito a referência a um episódio passado na
estação do caminho-de-ferro, à passagem do general Gomes da Costa para o
Sul. Na altura em que o comboio presidencial se punha em andamento, o
chefe da revolução veio à janela e disse, de braço estendido para a
multidão:
– Rapazes! Eu cá vou p'ra baixo!
Comentário de um advogado aveirense, conhecido pelo seu
grande poder de adaptação política:
– O quê?! Então ele já diz que vai p'ra baixo?!
/
85 /
* * *
Um dos primeiros actos do novo Ministro da lnstrução foi
ordenar que em todos os liceus se fizessem, nos termos da lei, eleições
de reitores. Em Aveiro, o Conselho Escolar reuniu-se para isso no dia 19
de Junho. Os três professores mais votados foram: eu, com oito votos;
César Fontes, com seis; Álvaro Sampaio, com cinco.
No dia 9 de Julho, faleceu, na sua casa de Esgueira, o
reitor Álvaro de Eça. O serviço de exames foi interrompido, e o corpo
docente prestou ao morto a sua última homenagem, acompanhando-o ao
jazigo da família, junto do qual falou o prof. Manuel Rodrigues Vieira.
Anos antes, tinham os colegas resolvido inaugurar-lhe o retrato na sala
dos professores, fazendo assim justiça à sua acção a favor do
engrandecimento do Liceu.
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(1)
– O Dr. José Rodrigues Soares estava gravemente enfermo e veio a falecer
no dia 11 de Janeiro de 1917.
(2)
– Foi, mais tarde, incorporado no volume – "O Amor das Nossas Coisas
e Alguns que Bem o Serviram" –, editado pela Imprensa da
Universidade (1933).
(3)
– O terceiro e último acto, cuja cópia enviei a Mário Barreto, não foi
publicado, pela circunstância de a Revista ter terminado.
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