Acesso à hierarquia superior.

Memórias de José Pereira Tavares - pp. 61-85

 

VI

Entrei no Liceu de Aveiro, como professor agregado, no dia 1 de Novembro. Não foi sem comoção que o antigo aluno se encontrou com antigos mestres seus: com o Dr. Álvaro de Messa Coutinho de Almeida de Eça (Reitor), Dr. Eduardo Silva, Alexandre Pereira da Cunha e Sousa, Padre Manuel Rodrigues Vieira e Dr. Elias Fernandes Pereira (Secretário) (1). Foi-me entregue, como já disse, o serviço deixado pelo prof. João Ferreira Gomes. Além de turmas de Português e Latim (4.ª e 5.ª3 classes), herdei duas turmas de Matemática e Desenho da 2.ª classe! Para quem desejava aperfeiçoar-se nas disciplinas do seu grupo, era de desanimar!

O Liceu estava disciplinado: os professores viviam em harmonia e estimavam geralmente o Reitor, e não havia, entre a população discente, nada que se parecesse com o estado de permanente indisciplina do Liceu que eu deixara. Mantinham-se, porém, costumes um tanto obsoletos. A chamada para as aulas, por exemplo, fazia-se à medida que os professores se iam dirigindo para as respectivas salas, por tantos toques de sineta quantas as turmas; de modo que não raro se ouvia o sinal de chamada vinte minutos antes de terminar o tempo lectivo. Uma grande bambochata!

Os alunos que me couberam em sorte estavam habituados a chamadas à lição em determinados dias e a só estudarem, portanto, segundo os palpites... Nas cadernetas que recebi do prof. Ferreira Gomes, achavam-se exaradas notas de chamada de 12 e 13 valores, atribuídas a alunos que não sabiam literalmente nada. Passei, pois, à categoria de fera, fama que se estendeu por bastante tempo, ou seja, até à altura em que outros professores modernos foram chegando. Mais: um professor provisório dava explicações a alunos externos, cuja / 62 / aprovação conseguia depois, no fim do ano, mercê da influência que tinha junto dos membros do júri. Finalmente, no ensino imperava a mais profunda rotina.

Não me deixei contaminar: segui impávida e heroicamente o caminho que traçara. No respeitante à chamada para as aulas, ainda lembrei o sistema do toque único; mas a minha proposta, por demasiado revolucionária, não encontrou eco. Compreendi que não podia modificar o meio, tanto mais que a minha sugestão era a de simples professor agregado; mas soube esperar...

* * *

O Liceu, elevado a Central por decreto de 18 de Novembro de 1916, começou a funcionar como tal no dia 8 de Janeiro seguinte. No novo horário, couberam-me vinte horas de serviço semanal. Continuava com as disciplinas de Matemática e Desenho, mas recebia também a de Literatura Portuguesa da 6.ª classe de Letras, aspiração já manifestada, sem resultado, perante a reitoria do Liceu de Viseu, no início do ano lectivo, quando ainda não suspeitava da possibilidade de colocação em Aveiro. Esbarrei com uma grande dificuldade: queria ensinar Literatura, fugir do rançoso processo, tão seguido, de exigir dos alunos simplesmente o conhecimento da lista dos autores, das suas obras e dos dados biográficos; mas a biblioteca do Liceu, bastante rica, ao que parecia, em obras de carácter teológico, não possuía o mínimo indispensável para o ensino moderno daquela disciplina. O Reitor encarregou-me então dos trabalhos preliminares da actualização da biblioteca. Por proposta minha, adquiriram-se bastantes volumes de primeira necessidade, e os alunos de Literatura tiveram à sua disposição, igualmente, a minha biblioteca particular. E assim se começou, no Liceu de Aveiro, a ministrar o ensino daquela disciplina pelo único processo recomendável...

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Aberto concurso para professor efectivo do 1.º grupo do Liceu de Angra do Heroísmo, nessa sinistra época da feroz guerra submarina, concorri e, por decreto publicado no ““Diário do Governo”” de 6 de Abril de 1917, quase sem o / 63 / esperar, fui nomeado! Estava efectivo! Já podia, como tal, falar nos Conselhos!

No entretanto, deu-se vaga do meu grupo no Liceu de Mouzinho da Silveira (Portalegre), a cujo concurso me apresentei e para a qual fui nomeado. Posse... tomei-a eu em pessoa, no dia 25 de Setembro, por sinal de horrível calor. De novo em Aveiro, estava disposto a tudo para marchar com a família, quando o prof. Ferreira Gomes, havia pouco colocado, como efectivo, no Liceu de Aveiro, e, por conseguinte, na crítica situação de efectivo em estabelecimentos de ensino de duas cidades, me propôs trabalhássemos para conseguir do Ministro da Instrução (o aveirense Dr. Barbosa de Magalhães) uma dupla permuta com o professor Amadeu da Silva, de Viseu, que ia abandonar o ensino para seguir a carreira diplomática! Abracei com entusiasmo a proposta e fui a Lisboa tratar do assunto. Depois de vencidos os escrúpulos do Ministro, foi enfim assinado o despacho de permuta, em virtude do qual eu ficava em Aveiro, o prof. Ferreira Gomes em Viseu e o prof. Amadeu da Silva em Portalegre. E assim, no dia 17 de Outubro entrei ao serviço no Liceu de Aveiro, tendo a meu cargo a regência de vinte e seis horas semanais. Dois dias depois, era o despacho publicado no “Diário do Governo".

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Quando em 1916 cheguei a Aveiro, vigorava o plano de estudos de 29 de Agosto de 1905 – Curso Geral com cinco classes e bifurcação de Letras e Ciências na 6.ª e 7.ª. No dia 18 de Abril de 1917, foi publicado o decreto n.º 3091, que remodelou o Ensino Secundário (Min. da Instrução – Joaquim Pedro Martins). Com esse decreto, primeiro do regime republicano em matéria de ensino liceal e que verdadeiramente o honra, tinha-se em vista a elevação da cultura dos alunos e consequente selecção das competências. Nele se estabeleciam 3 horas de Português em cada uma das 6.ª e 7.ª classes de Ciências, onde também figuravam duas horas de Filosofia; na 6.ª e 7.ª de Letras, havia 4 1/2 horas de Ciências Físicas e Naturais. Além disso, determinava-se que os alunos que nas provas escritas de mais de duas disciplinas obtivessem qualificação inferior a / 64 / 10 valores ficassem reprovados, e acabava-se com o regime das "esperas", visto que o aluno que na prova oral de cada disciplina não obtivesse a qualificação de 10 valores, pelo menos, se considerava reprovado.

Estas e outras disposições do citado decreto foram a causa da greve académica que rebentou em princípios de Novembro de 1917 e perturbou a vida escolar dos liceus a ponto de eles terem de ser mandados encerrar pelo Governo (Min. da Instrução – Barbosa de Magalhães).

A algumas das reclamações dos estudantes e de pais e encarregados da educação procurou dar satisfação o decreto n.º 3.592, de 22 de Novembro daquele ano, o qual todavia mantinha eliminatórias as provas escritas, mas com menos rigor: seriam excluídos os alunos que alcançassem em duas ou mais disciplinas médias inferiores a 6 valores no exame do Curso Geral, 1.ª secção (3.ª classe); a 8 valores no exame do Curso Geral, 2.ª secção (5.ªa classe) e a 10 valores no exame de qualquer dos Cursos Complementares.

Com a vitória do movimento revolucionário de Sidónio Pais, em princípio de Dezembro, os alunos liceais, que, apesar do decreto n.º 3592, ainda se mantinham rebelados, conseguiram a revogação das disposições com que não se conformavam. Decreto da Junta Revolucionária, de 10 de Dezembro, suspende a execução dos decs. 3091 e 3592, ao mesmo tempo que se ordena a reabertura dos liceus, se abonam as faltas dadas pelos alunos grevistas e se trancam os processos instaurados por motivo dos acontecimentos.

Para não alterar a cronologia, deve referir-se aqui uma conquista, que, mercê do auxílio do professor efectivo novo, o Dr. Rebelo de Queirós, finalmente consegui: a partir do dia 18 de Março de 1918, passaram os alunos a serem chamados para as aulas por toque único da sineta! Deu isso lugar a cenas cómicas: nos primeiros dias, os velhos professores não sabiam, positivamente, de que terra eram...

Com o decreto n.º 4799, de 8 de Setembro de 1918 (Min. da Instrução Alfredo de Magalhães), novamente se reformou o Ensino Secundário. Deixaram de ser / 65 / eliminatórias as provas, mas não se ressuscitou o regímen das "esperas". O art. 2670 do referido decreto rezava assim: "aluno que nas provas orais tiver nota inferior a 10 valores em duas disciplinas ou nota inferior a 6 valores em uma considera-se reprovado".

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No entretanto, dão-se acontecimentos que se prendem com a minha vida familiar. Meu irmão João, que no dia 24 de Fevereiro de 1917 partira para França, é feito prisioneiro dos alemães em 19 de Abril de 1918. De França, porém, o José Gamelas, médico miliciano, dando crédito a simples boatos, escreveu-me uma carta em que me dava a notícia da morte de meu irmão! Dias se passaram, até que, à meia-noite de 18 de Maio, chegou um telegrama, por intermédio da Cruz Vermelha suíça, que rezava assim: «prisonnier à Carlsruhe bien portant Jean»! À suprema angústia sucedia uma alegria inefável!

Depois, os sucessos ocorrem vertiginosos: em 5 de Setembro, torpedeamento do vapor Desertas, ex-alemão, encalhado no Sul da Costa Nova, que os alemães pretendiam inutilizar, para impedirem o seu projectado salvamento; […..]; no dia 11 de Novembro, veio a indescritível alegria da notícia da assinatura do armistício entre a Alemanha e os Aliados, que punha termo no grande prélio mundial; no dia 14, o assassínio do Presidente Sidónio Pais, na ocasião em que, no Rossio, tomava comboio para o Porto; em 19 de Janeiro seguinte, Paiva Couceiro proclamava a Monarquia na capital do Norte e constitui governo...

Meu irmão João, repatriado da Alemanha depois de ter demorado uns vinte dias na Holanda, chega a Aveiro, em plena luta civil de monárquicos e republicanos, em 12 de Fevereiro, isto é, na véspera em que a República é restabelecida no Porto, acto que, com a refrega de Monsanto e a submissão de outros focos de rebelião, vibrou o golpe de misericórdia na malfadada e criminosa aventura couceirista.

Vivi dias de intenso nervosismo nesse período que decorre de 19 de Janeiro a 13 de Fevereiro, durante o qual a cidade de Aveiro esteve em pé de guerra e / 66 / foi o local de refúgio para inúmeros republicanos, que do Norte iam escapando à sanha dos denominados "trauliteiros".

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Mercê do crescente aumento da frequência do Liceu, foi preciso ampliá-lo. Pelo decreto n.º 5490, publicado no “Diário do Governo” de 29 de Abril de 1919, o Governo determinou a compra do edifício anexo, sempre assim designado para o futuro. Nele começaram imediatamente as obras de adaptação, muito ligeiras, para funcionamento das primeiras classes.

Em 25 de Setembro, saiu o decreto n.º 6128, que originou uma monstruosidade pedagógica (Min. da Instrução – Joaquim de Oliveira). Por ele se determinava que o aluno de qualquer classe a quem no ano anterior (1918-1919) fora aplicada a doutrina dos art.º 2030 e 2670 do dec. N.º 4799 (Alfr. de Magalhães), fosse considerado como tendo obtido a média final de 10 valores, desde que em todas as disciplinas, menos três o máximo, houvesse obtido média de passagem. Nos considerandos justificativos do decreto, fala-se na alteração da ordem pública, provocada pelos especuladores monárquicos, perturbadora dos trabalhos escolares; na invasão da gripe pneumónica, que forçara o Governo a mandar encerrar muitos liceus; nos interesses legítimos dos estudantes, que transparecia nas representações dos encarregados da educação; e, ainda, nas opiniões das entidades competentes, que, consultadas, se não haviam oposto... Desta forma, transitariam para a classe imediata muitas turmas de alunos incompetentes, que tinham sido reprovados em duas e em três disciplinas, quer em exames...

Contra tal decreto, de que tivera conhecimento em Espinho, apresentei no primeiro Conselho Escolar de 1919-1920 uma moção de protesto, para ser enviada ao Ministério; mas o Reitor entendeu que eu a devia retirar... Dessa forma, não pôde o Conselho Escolar enfileirar ao lado de outros que contra a referida medida governamental desassombradamente se pronunciaram. Bons tempos! / 67 /

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A minha política havia muito estava definida: republicano. Nenhumas ambições tinha, porém, não esperava nada da República a que pelas minhas habilitações não tivesse direito; e, tratando da minha colocação no Liceu de Aveiro, não invoquei, para o conseguir, o meu republicanismo, nem o Ministro Barbosa de Magalhães sobre tal me interrogou. Apesar disso, no próprio dia em que, como efectivo, tomei conta do serviço que me era destinado, escrevia-me o Ministro da Instrução a seguinte carta: «Meu caro amº: trata-se de organizar a lista democrática para a próxima eleição municipal nessa cidade, e pensando no assunto, que mt. me interessa, pois desejo que a representação do meu partido seja a melhor possível, de pessoas de categoria, sérias e inteligentes, lembrei-me de si para fazer parte dessa representação. Mtº estimarei ver o seu nome na lista e por isso lhe venho perguntar se permite que nela seja incluído. Espero que a sua resposta seja afirmativa, porque nesta hora difícil ninguém tem o direito de se recusar a tomar os postos que lhe compitam, e mt.º menos os professores. Não é apenas ao partido democrático que o meu amº irá prestar um serviço; é também a essa cidade e, portanto, ao paiz, ao qual mal irá se todos os que pela sua situação mais lhe devem ser úteis, o não fôrem. Agradeço-lhe, pois, desde já a sua aquiescência, que me dará mt. prazer. E aqui continua ao seu dispôr o seu mt. att. e ob., Barbosa de Magalhães.» (17-10-17).

A minha resposta, como não poderia deixar de ser, foi afirmativa. E assim me vi membro da Câmara e, inesperadamente, investido no cargo de Presidente do Senado. Devo, desde já, declarar que nada fiz. O Presidente da Câmara era o Dr. Lourenço Peixinho, que só em 1942, um ano antes de falecer, e através das mais variadas vicissitudes políticas, veio a ser exonerado do cargo.

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Como Presidente do Senado, o meu acto mais importante foi por ocasião da recepção, em sessão solene da Câmara, no dia 12 de Outubro de 1919, a representantes do Município de Braga (Drs. Leão Ferreira da Silva, Rodrigues Braga / 68 / e Raul Barbosa), que a Aveiro vieram entregar as insígnias da Torre Espada, galardão concedido à Cidade como homenagem pela sua atitude de fidelidade ao regime por ocasião da luta entre monárquicos e republicanos, em Janeiro-Fevereiro daquele ano. Visitaram Aveiro, nessa ocasião, os ministros da Guerra (Hélder Ribeiro) e da Marinha (Silvério da Rocha e Cunha) e tomou lugar honroso nas festas o general José Domingues Peres, que fora, em Aveiro, o comandante das operações contra os sediciosos. Antes da sessão solene, houve, em S. Jacinto, almoço de homenagem aos visitantes. A sessão iniciou-se às 15 horas. E eu, tão pouco fadado para discursos, tive de responder à saudação ("Noblesse oblige"...) que o Presidente da Câmara de Braga dirigiu a Aveiro. Do meu discurso, que foi publicado, integralmente, no "Campeão das Províncias" de 25 de Outubro, transcreverei alguns passos, em especial aqueles que o meu entusiasmo de rapaz então traçou e que ainda hoje, com cinquenta e seis anos, escreveria, apenas um tanto atenuados pela lição da experiência. Depois de saudar os visitantes e de me referir ao motivo que a Aveiro os trouxera, li o seguinte: – «Recordar o que foram os primeiros momentos que se seguiram à divulgação da notícia da traição de Paiva Couceiro e de Solari Alegro; a rápida e inteligente defesa das instituições; o ardor e a abnegação admiráveis com que muitos civis acorreram espontaneamente a pegar em armas contra os rebeldes – fora fastidioso, porque é do conhecimento de todos. Bélgica da República já eu ouvi chamar a esta terra, e por vezes o vi escrito em jornais. Não me seduzem estes paralelos; mas o que é certo é que se Aveiro, só por si, não salvou a República porque a chave da defesa foi, sem dúvida, Monsanto, impediu, contudo, que as forças de Paiva Couceiro avançassem para o Sul do Vouga; provou que havia aqui dentro quem estivesse disposto a defender o regime traiçoeiramente atacado por uma horda de bandoleiros e, com a sua tenaz resistência, tomou possível a repressão quase imediata da quixotesca aventura... Merece, por isso, a cidade o reconhecimento dos poderes públicos, como aliás o de todos os portugueses, pois tendo ajudado a salvar o país de uma monarquia, à qual, para ser absoluta, nem sequer faltavam os caceteiros nem os inquisidores, de uma monarquia que havia de ser retintamente / 69 / clerical, furtou os cidadãos à contingência de verem assaltadas as suas bolsas, e para o Sul do Vouga puderam ficar intactos os cofres do Estado... Foi, na verdade, notável o papel desta cidade na defesa da República; mas ingratidão seria não apontar os nomes dos indivíduos que lançaram o grito da revolta e dos que, congregando-se com os primeiros em redor da bandeira da Pátria, trabalharam com denodo pelo seu ideal. Quem foram esses homens? Foi V.ª Ex.ª, Sr. Ministro da Marinha, a quem eu vi, a quem todos viram desde o primeiro momento, radiante, feliz por se haverem enfim extremado os campos e por no seu espírito haver a profunda convicção de que a vitória final nos havia de pertencer; foi V.ª Ex.ª Sr. General Peres, pondo-se imediatamente à disposição dos republicanos para dirigir as primeiras operações contra os monárquicos, sem procurar saber, nessas horas de acabrunhante ansiedade, qual a atitude da guarnição de Coimbra, que talvez já não se conservasse fiel como a de Aveiro; foi o sargento Lima, da Infantaria 24, que ali nos Arcos, ao ter conhecimento da traição, em 19 de Janeiro, arrancou da espada e, brandindo-a na mão convulsa, exclamou "Viva a República!" –; foi o bravo alferes Robi, que em AIbergaria-a-Velha aprisionou os primeiros automóveis dos chamados trauliteiros, e foi o sargento Couceiro, que, com outros, arrancou dos Paços do Concelho daquela vila a bandeira dos monárquicos, fazendo novamente tremular a da Pátria; foram os indivíduos que constituíram a Junta republicana de defesa do distrito de Aveiro, os quais assinaram a primeira proclamação dirigida ao povo republicano, chamando-o ao cumprimento do seu dever os Drs. André dos Reis, Alberto Souto e Rui da Cunha e Costa, e os Snrs. José Casimiro da Silva, director da Escola Normal de Aveiro, Bernardo Tôrres e Alfredo Osório; foram os voluntários civis, que altiva e entusiasticamente, quando tudo era ainda incerteza, se encaminharam para o quartel de Infantaria, a fim de receberem instrução rápida e armamento; foram os oficiais da guarnição de Aveiro; foram os sargentos, com a absoluta fidelidade ao regime e com a sua alma republicana; foi o punhado de marinheiros da capitania de Aveiro e a Guarda Fiscal; foi a pequena, mas valentíssima guarda-avançada de Ovar, com o Dr. Pedro Chaves à frente; poderia mesmo dizer que foram os outros republicanos, que, com / 70 / o seu entusiasmo, e com a sua fé, se mostraram como tais à luz do Sol. Sem todo esse ardor, sem toda essa dedicação, sem toda essa fé imensa, a monarquia teria sido um facto em Aveiro, e a sua liquidação final haveria sido muito demorada. Aveiro cumpriu o seu dever. A cidade de Aveiro, cujas tradições são, aliás, eminentemente liberais, pode ser apontada como exemplo.»

Frisei, depois, que o problema nacional é um problema educativo; agradeci a presença dos ministros; mostrei quanto nos sensibilizava a distinção conferida pela Câmara de Braga, e terminei assim: "Aveirenses! Temos aqui, junto de nós, a honrar-nos com a sua presença, o Ex.º Ministro da Guerra, Major Hélder Ribeiro, um dos valentes que em 4 e 5 de Outubro de 1910 se bateram em Lisboa pelo advento da República e um bravo militar que em França combateu o feroz militarismo alemão. Aí está também o Ex.º General Domingues Peres, actual Comandante da 8.ª Divisão do exército, que em Aveiro, como já disse, desempenhou tão notável papel na defesa das instituições. Viva o Exército da República! O brioso Capitão-Tenente, Ex.º Sr. Silvério da Rocha e Cunha, ministro da Marinha, português de rija têmpera e republicano como os que o são, é bem a encarnação perfeita da valentia e da abnegação patriótica dos nossos marinheiros. Viva a Marinha Portuguesa! O terceiro viva é daqueles que há um ano se não podiam soltar impunemente em toda a parte, porque se corria o risco de ir para a cadeia. É este: Viva República Portuguesa!"

* * *

Nas minhas aulas, logo desde 1917, não me cansava de aconselhar os alunos mais adiantados a ocuparem as suas horas de ócio em coisas úteis, por exemplo na organização de récitas académicas. Em fins de 1919, alunos das 6.ª e 7.ª classes procuraram-me para me dizer estarem dispostos a pôr em execução o meu conselho. Com a aquiescência do Reitor, tomei a direcção do grupo cénico e aí me vejo eu arvorado em ensaiador! Pus então em prática uma ideia que havia muito nascera em meu espírito: a organização de récitas em que se exemplificasse o nosso teatro clássico. / 71 /

Escolhi, para a primeira dessas representações o Monólogo do Vaqueiro, de Gil Vicente, em tradução do aluno da 5.ª" classe, António Augusto Cruzeiro (António de Cértima); a Exortação da Guerra, do mesmo autor, com prólogo explicativo, da minha autoria; a terceira jornada do Fidalgo Aprendiz, de D. Francisco Manuel de Melo, também precedido de prólogo; e, para amenizar, escrevi uma comédia – O Lobo e as Raposas, fundada em caso de "conto do vigário" de que recentemente havia sido vítima pessoa do meu conhecimento. Esse espectáculo, que obteve grande sucesso, realizou-se no Teatro Aveirense no dia 6 de Março de 1920 e foi precedido de uma conferência minha – «Gil Vicente e a Origem do Teatro Português» – que, pouco depois dei à estampa, dedicando-a a todos os componentes do grupo cénico. Não devo deixar de me referir ao incidente desagradável que essa conferência originou. Com a cena já aberta perante a casa à cunha, pretendi reproduzir, de cor, o que escrevera... Impossível! Uma súbita amnésia, provocada talvez pelo excesso de trabalho resultante dos ensaios e preparativos para a récita, incapacitou-me de pronunciar sequer uma palavra! O pano desceu, e só voltou a subir quando eu, já munido dos linguados de papel que continham o meu trabalho, me apresentei para o ler. Passara-se tudo, talvez, em dois minutos... Foi essa cena, não esperada pelos espectadores, que levou um plumitivo da terra, que se tinha na conta de jornalista, a dizer, mais tarde, que eu, quando falava, sucumbia... Descontada a influência da antipatia que o sujeito me votava, declararei que o homem não deixava de ter sua razão: durante muito tempo, senti – e ainda hoje isso por vezes me acontece – certa perturbação e nervosismo quando tenho de me defrontar, pela palavra, com o público. Não obstante isso, a prática já me tem levado algumas vezes a falar sem auxílio de papéis, e até, pela força das circunstâncias, a fazê-lo de improviso.

O bom êxito desta récita levou-me a organizar outra, que veio a realizar-se no dia 11 de Maio desse ano, com novos actores a engrossar o elenco. Constituiu esse segundo espectáculo a Farsa de Inês Pereira, de Gil Vicente; uma cena da Vida do Grande D. Quixote de la Mancha e do Gordo Sancho Pança, / 72 / de António José da Silva; a peça de Francisco Palha – A Morte de Catimbau; e um episódio da entrada de Portugal na guerra, que para a récita escrevi e se intitulava – Sacrifício de Abraão.

No dia 15 a 23 de Maio, fez o grupo uma excursão a Braga (dias 15 e 16), Viana do Castelo (dia 17), Guimarães (dia 19) e Viseu (dia 23) e representou em cada uma dessas cidades o Monólogo do Vaqueiro, a Exortação da Guerra, a Inês Pereira e ainda a minha atrás citada comédia de O Lobo e as Raposas.

O trabalho do grupo e do ensaiador foi muito lisonjeiramente apreciado por um crítico bracarense, que no "Diário do Minho", do dia 22 de Maio, em artigo intitulado "Gil Vicente em Braga", escreveu: «Gil Vicente, o mestre da cena portuguesa, é múmia que o tempo religiosamente conserva; é espectro que se anima e vivifica numa ressurreição bendita em que tão empenhada anda a mocidade estudiosa de Aveiro, interpretando-lhe as peças com algum rigor, bastante precisão até, no interesse único de despertar a combalida alma nacional, sacudir o espírito dum povo que foi grande e se deixou adormecer ao marulhar das águas do Atlântico, se amorteceu em lassidão criminosa ao sol do meio-dia. Há coisa de oito dias, Gil Vicente passou por nós ali, no Teatro Circo, já velho, mas ainda correcto; mordaz, mas ainda justo. Vimo-lo no seu porte desempenado, ouvimo-lo na sua linguagem altiva. Os estudantes da Bacia-Vouga não podiam ser mais felizes: revelaram bom gosto, foram genuinamente portugueses nos seus intuitos, mostraram-se senhores absolutos dos seus papéis. Ensaiou-os o seu inteligente professor Dr. José Tavares, autor do prólogo que, gizado ao sabor vicentino, nos diz do significado das personagens, nos convida a transportarmo-nos aos venturosos tempos de D. Manuel I, nos pede indulgências para as faltas e nos anuncia que o pano vai subir. E subiu bem para nos mostrar o século XVI em toda a sua pujança, o nosso áureo período em todo o seu esplendor. Nós, o público, fomos grandes, que éramos a corte de 1513, - princesas e açafatas nos camarotes, príncipes e conselheiros na plateia.»

E o crítico segue depois na análise das peças e depois termina assim: «Recolhe Gil Vicente, é certo, mas a gente moça fica a chorar saudades, cantando / 73 / fados. Os rapazes são almas de luar vestidos de preto, capas onde brilham estrelas que são olhos de mulher, olhos que lhes vão no coração com o ruído de aplausos e palmas merecidas, a todos indistintamente, graças ao esforço simpático do seu mestre Dr. José Tavares, juiz da festa, portuguesa de lei pela nobreza do intuito: aprender no passado a viver no presente, semeando com arte e apurado gosto a beleza que há-de preparar o futuro.»

Em Viseu, inversamente, um bronco redactor da "Voz do Operário" deitou artigo, em que dizia andar um grupo de alunos do Liceu de Aveiro a fazer propaganda jesuítica... Mas o mais desagradável, nessa cidade, foi o seguinte: depois de apoteoticamente recebido na estação de caminho de ferro, o grupo cénico teve as honras da sessão solene no Liceu, a que presidiu o Governador Civil. Constituída a mesa, quando o Reitor se propunha dirigir a sua saudação aos excursionistas, não o conseguiu, tal o barulho e a assuada que os alunos visienses faziam, aos gritos de "Abaixo o Reitor! Abaixo o Barbas-de-Aço!", Era bem a mesma indisciplina, observada por mim cerca de quatro anos antes, ou porventura ainda mais agravada... Cena idêntica se deu no dia seguinte, na ocasião em que o Reitor nos quis saudar no "copo de água" com que lhe aprouve distinguir-nos. Os alunos não o deixaram falar, afogando-lhe as palavras iniciais do brinde com os gritos já nossos conhecidos, de – "Abaixo o Reitor! Abaixo o Barbas-de-Aço!".

Em Junho desse mesmo ano, fui convidado pelo Comandante da Infantaria n.º 24 a falar numa sessão solene de homenagem aos soldados portugueses, mortos da Grande Guerra, que veio a realizar-se, no respectivo quartel, no dia 10. O discurso que então li, frisando a política seguida pelo nosso país nos conflitos europeus, enaltecendo a acção do nosso exército na Guerra e afirmando que "os homens que estavam à frente dos destinos de Portugal, quando a Alemanha se nos declarou inimiga, tiveram em vista os altos interesses nacionais", foi publicado no "Campeão" do dia 19 daquele mês. Nessa sessão falaram também o Dr. Joaquim de Melo Freitas e meu irmão João, então tenente. / 74 /

* * *

Voltando a assuntos pedagógicos, cabe aqui referência ao Dec. N.º 6675, de 12 de Junho de 1920 (Min. da Instrução – Vasco Borges), que remodelou de novo o Ensino Secundário. Nele se mantinham provas escritas não eliminatórias; no C. Complementar de Letras figuraria a Matemática e no de Ciências a Filosofia.

Sobre Ensino Secundário, o diploma que a este se seguiu foi o Dec. N.º 7558, de 18 de Junho de 1921 (Min. da Instrução – Ginestal Machado), que regulamenta os serviços e grande parte de cujos artigos ainda hoje (Dezembro de 1943...) estão em vigor...

* * *

No dia 10 de Abril de 1921, tive o inefável prazer de assistir, na Batalha, à comovente cerimónia em honra dos Soldados Desconhecidos. Acompanhou-me minha mulher, e foram nossos excelentes companheiros de viagem (9, 10 e 11 daquele mês) o Dr. André dos Reis e Esposa e o irmão dele, Artur dos Reis. Em Leiria, fomos hóspedes, eu e minha mulher, do meu antigo condiscípulo Dr. José Saraiva, ao tempo professor do Liceu daquela cidade. Como eu era o representante da Câmara de Aveiro e o Dr. André dos Reis ia representar a Junta Geral do Distrito de Aveiro, incorporámo-nos no grandioso e patriótico cortejo, organizado a uns três quilómetros do Mosteiro, e assim pudemos penetrar no majestoso templo e assistir a parte da impressionantíssima manifestação. Vieram nessa ocasião a Portugal, para se associarem às festas ordenadas pelo Governo, o Marechal Jofre, herói do Marne; o Generalíssimo Diaz, italiano; e o General inglês, Smith Dorrien.

Pode fazer-se ideia da imponência do cortejo pela leitura das Instruções, que copio no respectivo programa, subscrito pelo Comandante da Divisão. Dizia o seguinte:

«A concentração para a organização do cortejo far-se-à no largo da capela de Santo Antão, na estrada Leiria-Batalha, sendo os diferentes lugares indicados por tabuletas numeradas. – Os carros de coroas e palmas, à medida que / 75 / atingirem o chafariz da Batalha, pararão o tempo indispensável para que elas sejam retiradas e entregues a oficiais que estiveram na Grande Guerra, que as receberão como representantes dos seus camaradas, cuja glória se glorifica, devendo dirigir-se para o catafalco. – À chegada dos armões à escadaria do Mosteiro, serão deles retirados os Heróis por oficiais combatentes na Grande Guerra; e, ao toque da continência feito por todos os corneteiros que no cortejo formaram grupo e ao som do Hino Nacional, tocado por todas as bandas, apresentarão armas todas as tropas; e, salvando a artilharia, conduzidas por oficiais generais, para este fim convidados, darão entrada no Mosteiro por entre as bandeiras e estandartes inclinados, sendo os Heróis colocados no catafalco. Quando salve a artilharia, todos os sinos da Batalha e das povoações próximas, que os tenham, deverão repicar festivamente, lembrando ao povo o acto de gratidão que a Nação acaba de prestar, glorificando os dois Heróis Desconhecidos, os Nossos Queridos Mortos na Grande Guerra. – Terminadas as homenagens da Igreja, seguirão os Heróis para a sala do capítulo, conduzidos por outros oficiais generais de terra e mar, sendo naquela sala depostos e ladeados por bandeiras, estandartes, coroas e palmas. Seguidamente, Sua Ex8 o Ministro da Guerra fará ali a apologia dos Imortais Soldados, finda a qual ficarão expostos, rodeados de todas as palmas o coroas. – Os contingentes, logo que atinjam a frente do Mosteiro, seguirão pela estrada velha que liga a Batalha à estrada Alcobaça-Leiria, a prolongar o flanco esquerdo das forças em guarda de honra. – Às 11 horas, todas as forças estarão em formatura nos locais que lhes são determinados. – Oficiais da guarnição de Leiria regularão a entrada de individualidades e colectividades nos talhões que por este programa lhes são indicados e a sua incorporação no cortejo.».

Foi imponentíssimo o momento da entrada dos féretros no Mosteiro. Quando a artilharia começou a troar e os sinos do Convento a repicar, ao som da "Portuguesa", fez-se completo silêncio em toda a multidão dos que totalmente cobriam os terrenos marginais da estrada, e poucos olhos terão, por certo, ficado enxutos. Espectáculo sublime e indescritível! / 76 /

O Presidente da República, Dr. António José de Almeida, pronunciou, a respeito dos Heróis Desconhecidos, no dia 7 de Abril, dois notabilíssimos discursos, que em Outubro desse ano a Imprensa Nacional editou (6 exemplares em papel Whatman, 100 em papel "couché" e 1000 em papel de linho). Para fechar esta pálida evocação do histórico e cívico acontecimento, transcrevo aqui dois passos dessas admiráveis peças oratórias. Seja o primeiro, da oração dirigida ao Congresso:

«Sobretudo, são gémeos os serranos e o Infante Santo. Porque o Infante, morto pela Pátria, como refém, para que não se perdesse Ceuta, uma parcela de Portugal, morto em holocausto, de morte resignada e dolorosa, e os serranos, que caíram nas trincheiras e no sertão, realizando o seu sacrifício com melancólico, saudoso, mas impertérito heroísmo, são dignos de que a gratidão nacional perpetuamente os irmane como expressão intangível desse princípio sagrado de que, perante a integridade e a independência da Pátria, nada há que prevaleça além da obrigação de morrer, servindo-a. Que a mesma bênção os cubra a todos!»

O segundo excerto pertence ao discurso proferido, no mesmo dia, no átrio do Congresso, perante as urnas que continham os sagrados despojos vindos da França e da África: – «Povo! Grande Povo! É para ti que falo agora. Comove-te e chora lágrimas de saudade sobre os despojos dos teus filhos, porque eles são pedaços do teu ser; mas ergue também a fronte, ergue-a com altivez e soberba, porque eles são dignos de ti, rebentos heróicos da tua Raça. Traze-lhes ramos de loiro; traze-lhes açucenas e rosas: loiros para o seu forte heroísmo, açucenas e rosas para a sua virtude indomável. Aqui está, em volta do seu corpo, comovido e silente, na ansiedade de uma celebração votiva, tudo o que pode representar a Raça, tudo o que pode simbolizar a Pátria. Aqui estão os Embaixadores, Ministros e Delegados especiais das Nações Aliadas e amigas, que lhes prestam, reconhecidas, a homenagem de gratidão. Bandeiras dos exércitos aliados, que as balas furaram nos campos de batalha; pavilhões, estandartes, que os tufões de fogo rasgaram nos combates do mar; símbolos augustos / 77 / do génio guerreiro dos que foram seus companheiros de armas, aqui vieram para lhes beijar o ataúde. Heróicas espadas sangrentas, que fizeram a vitória, regando o horizonte de um futuro novo, aqui vieram para lhes fazer continência. Junto a eles, tudo se curva, tudo se rende. Homenagem magnífica, como as que se prestam aos semi-deuses, apoteose sem igual, que remoça e dá esplendor a virtudes imperecíveis.»

* * *

No início do ano lectivo de 1920 - 1921, entrou no Liceu de Aveiro, como efectivo, o professor Álvaro Sampaio, do 6.º grupo, que logo se revelou competentíssimo, muito dinâmico e cumpridor, e muito sério! Estava com a minha gente, para arrancar o Liceu do marasmo em que caíra... Álvaro Sampaio começou imediatamente a montar o Gabinete de Ciências Naturais em moldes modernos; e, em anos sucessivos, levou por diante o seu projecto. Lançada por mim, para aquele ano, a organização de festas camonianas, imediatamente aquele professor a abraçou, mas não sem lembrar números novos... Em reunião do corpo docente, assentou-se em que houvesse sessão solene, sarau, quermesse e, a fechar o ciclo de festas, baile oferecido às entidades oficiais e às pessoas de representação da cidade, cujas despesas ficariam a cargo dos professores. A proposta foi aprovada por unanimidade, menos no respeitante ao baile, que não obteve a sanção de um professor, nada de bailes e pouco propenso a largar dinheiro...

As festas constaram do seguinte:

Dia 10: à tarde, sessão solene, na biblioteca do Liceu, com conferência minha acerca de "Camões e os Lusíadas"; à noite, no Teatro Aveirense, sarau de gala, com o seguinte programa: Alocução patriótica do prof. provisório Dr. José Barata; números de orfeão; marcha de Ginástica; a comédia de Garrett – Falar verdade a mentir – e a opereta de Lehar, em um acto – A Filha da Senhora Angot. Dias 11 e 12: quermesse na cerca do Liceu. – Dia 13: Imponentíssimo baile na sala da biblioteca, onde se reuniu tudo quanto Aveiro tinha de mais / 78 / distinto. Com ele se conseguiu o que se pretendia: ligar a cidade ao seu Liceu!

* * *

Ao passar pelas mãos todos os volumes que constituíam o fundo da biblioteca do Liceu – a maior parte, em grande parte, proveniente da livraria do Paço Episcopal, encontrei um exemplar das "Obras Métricas" de D. Francisco Manuel de Melo (1665), que eu nunca vira. Desse volume, quase totalmente inutilizado pela traça, resolvi tirar cópias da parte portuguesa ("Segundas Três Musas de Melodino"), da qual em seguida extrai uma colectânea, no intuito de a dar à estampa, tornando assim conhecido, como poeta, o notável polígrafo do séc. XVII. Organizado o trabalho, dirigi-me à Companhia Portuguesa Editora, do Porto, que o aceitou e publicou em Novembro de 1921. Intitula-se essa obra de vulgarização O Poeta Melodino (D. Francisco Manuel de MeIo – Rimas Portuguesas (sonetos, éclogas, cartas, poesias várias, farsa do Fidalgo Aprendiz) e Orações Académicas. Infelizmente, o volume, de 304 páginas, tem mau aspecto gráfico e foi impresso em papel bastante ordinário. A crítica feita a esse trabalho foi, toda ela, muito pobrezinha, a não ser a que se dignou dedicar-lhe o professor Rodrigues Lapa, no volume 25.º da “Revista Lusitana” (1923-1925), a pág. 317 - 318. Devi também inteligentes reparos ao professor Hernâni Cidade, feitos em carta particular.

* * *

Em Junho de 1922, novas festas camonianas foram organizadas por mim e pelo prof. Sampaio, cujo programa foi o seguinte:

Dia 10 – Sessão solene, na biblioteca, em que falámos eu (tema: "Camões Comediógrafo") e o prof. Mendonça Monteiro; dia 11 – Exposição de trabalhos dos alunos, e gincana na área do Liceu e, à noite, no teatro, sarau. Fazendo o relato das festas, no "Povo de Aveiro", do dia 25 daquele mês, o jornalista Homem Cristo terminava assim: "Esta exposição de trabalhos deixou-nos muito bem impressionados, pois vê-se que no Liceu de Aveiro, ao contrário do que supúnhamos, se trabalha inteligentemente e com zelo muito notável. Os / 79 / senhores reitor e professores e os próprios alunos são dignos do mais vivo aplauso".

Em Agosto desse ano de 1922, fui nomeado para ir fazer exames no Liceu de Rodrigues de Freitas, onde presidi a um júri da 2.ª classe e entrei, como vogal, em outro júri de exames de admissão. Aí me encontrei com o meu antigo mestre Pe Correia e me relacionei com os professores Augusto César Pires de Lima e Pe Júlio Albino Ferreira, autor de notáveis compêndios de Inglês, oficialmente aprovados. Durante os vinte dias que demorei na cidade do Porto, privei sempre com o meu velho amigo Júlio Moreira, em cuja casa não dormi, por falta de quarto, mas onde comia, por imposição do dono... Nas horas vagas, demo-nos à extravagância de escrever uma peça – Transviados – de que guardo a única cópia que dela se fez. Daí por diante, as minhas relações com aquele infeliz amigo tornaram-se cada vez mais íntimas, a ponto de ser eu o único dos seus amigos com quem ele mais gostava de conversar.

Em 2 de Setembro do mesmo ano, fui nomeado director interino do Museu Regional de Aveiro, em substituição de Marques Gomes, afastado do lugar em virtude de feroz perseguição de inimigos seus, que teve por epílogo uma sindicância, nem sempre serena nos seus processos... A posse foi-me dada no dia 24 de Outubro. Sentindo-me deslocado, vim a pedir a exoneração em 16 de Dezembro de 1924, mas só me deferiram o requerimento em Março de 1925.

* * *

No começo do ano lectivo de 1922-1923, lancei a ideia da organização de uma série de conferências públicas, de carácter cultural, feitas, já por individualidades notáveis, estranhas ao Liceu, já por professores da casa. Para abrir a série, lembrei o nome do Dr. Fidelino de Figueiredo, com quem já havia tempo mantinha correspondência, e fui encarregado de fazer o convite. Fidelino de Figueiredo, com quem depois passei a privar com mais intimidade, chegou a Aveiro no dia 9 de Dezembro de 1922; e nessa noite leu na biblioteca do Liceu, perante numeroso auditório, a sua conferência "Das Cartas como Género Literário”, / 80 / a que assistiram o escritor Antero de Figueiredo e o prof. José Guerreiro Murta, que de Lisboa o acompanhou.

A segunda conferência fi-la eu, no dia 14 de Abril de 1923, sobre "História da Língua Portuguesa". Esse meu trabalho, por conselho de Fidelino de Figueiredo, que me arranjou editor, foi publicado em opúsculo, saído em princípio de Dezembro desse ano (Liv. Armando Tavares, Calçada do Combro, Lisboa).

No dia 11 de Junho de 1923, na comemoração camoniana, pronunciou o prof. Mendonça Monteiro a terceira conferência da série: "Determinantes Etnográficas e Museológicas dos Descobrimentos".

* * *

Em 1923, publicou-me a Livraria Chardron (de Lello & Irmão), do Porto, a minha – "Selecta de Textos Arcaicos e Medievais" (6.ª classe do Liceu) , com que eu me apresentara no concurso de livros para o Ensino Secundário, a qual foi aprovada pelo Governo (D. do Gov. de 2 /1/ 1923).

Nesse mesmo ano, em Julho, apareceu à venda o trabalho que Júlio Moreira publicou com o pseudónimo de Carlos Duarte: "Graça Portuguesa", editada pela Livraria Clássica Editora, de Lisboa. Esta referência a obra que não me pertence explica-se pela circunstância de ter sido eu a única pessoa a quem ela foi lida em borrão e de a mim se dever a importante publicação: Júlio Moreira, só depois de muito instado por mim, se resolveu a dar à estampa esse produto das largas leituras e estudos que durante mais de um ano fez. Devo dizer que o notável trabalho recebeu as melhores referências da crítica, em especial da brasileira. A inconfidência do editor desvendou o segredo do pseudónimo, o que muito arreliou o meu querido amigo.

* * *

Em Outubro de 1923, eu e Álvaro Sampaio resolvemos escrever uma revista de costumes locais, para ser levada à cena por alunos e alunas do Liceu em / 81 / benefício da Caixa Escolar. Mãos à obra, peça feita! O Pe António Estêvão musicou vários números; aos restantes adaptou-se música conhecida. A peça, em três actos, chamava-se "Pangloss em Aveiro", designação proposta por mim e aprovada pelo meu colaborador. Representou-se, no Teatro Aveirense, três vezes: nos dias 13 e 16 de Fevereiro de 1924, a favor da Caixa Escolar; no dia 20, em benefício da Companhia dos Bombeiros Voluntários. O êxito foi brilhante e determinou o aparecimento de uma revista, chamada “A Caldeirada”, que o grupo cénico do Clube dos Galitos pôs em cena, também com êxito, no nosso Teatro, e chegou a representar em Coimbra e no Porto.

* * *

Por iniciativa de Álvaro Sampaio, veio ao liceu fazer uma conferência sobre "Dunas da Costa Portuguesa e sua Fixação" o Dr. Luís Carriço, da Fac. de Ciências de Coimbra (6 de Fevereiro de 1925). Assim ia prosseguindo o programa das conferências culturais...

Nesse ano, a 16 de Março, comemorou o Liceu o 1.º centenário do nascimento de Camilo. Na sessão solene, leu o Dr. Jaime de Magalhães Lima, com quem eu travara relações em 1918, o seu notabilíssimo trabalho "Camilo e a Renovação de Sentimento Nacional", depois integralmente publicado no jornal "O Debate", do qual se tirou separata (2).

As conferências continuavam... No dia 14 de Maio do mesmo ano, por sugestão minha e a meu pedido, veio o Dr. Joaquim de Carvalho dar a sua colaboração. Dele me aproximava a generosa amizade de Fidelino de Figueiredo. A conferência do ilustre professor da Fac. de Letras de Coimbra "O Terramoto de 1755 e a Filosofia do século XVIII", apesar de ser trabalho notabilíssimo, não despertou na cidade o interesse que merecia. Comecei a convencer-me de que Aveiro, em matéria de cultura, cansa-se depressa! / 82 /

Nessa altura, já eu me carteava com o ilustre filólogo brasileiro, Dr. Mário Barreto. Lembrara-me Júlio Moreira que eu enviasse àquele professor um exemplar da minha "História da Língua Portuguesa". Daí por diante, fiquei ligado à amizade do notável homem de letras, com quem vim a trocar bastante correspondência, a propósito da minha colaboração, a seu pedido, na “Revista de Filologia Portuguesa” (S. Paulo), de que era director. Lá publiquei um pequeno estudo sobre "Fonética Sintáctica" (Maio de 1925) e os dois primeiros actos da comédia manuscrita de António Denis da Cruz e Silva – O Falso Heroísmo ou D. Guifal de Montalto, variante de O Falso Heroísmo, pertencente à livraria da casa Sacchetti, de Aveiro (3). – Ao mesmo tempo, relacionei-me também com os filólogos Drs. Sousa da Silveira, e Silva Ramos, de quem tive o prazer de receber cartas e livros.

* * *

Em Junho de 1925, novamente se comemorou, com certo brilho, o aniversário da morte de Camões. No dia 10, conferência do Dr. Hernâni Cidade, da Fac. de Letras do Porto, sobre "A Obra Épica e Lírica de Camões"; nos dias 11 e 12, quermesse na cerca do Liceu, no dia 13, baile na sala da biblioteca; no dia 14 festa de recepção a antigos alunos. O baile mereceu ao jornalista Homem Cristo censura bastante azeda; mas toda a gente percebeu que a sua inesperada má vontade contra o Liceu se explicava pela antipatia que votava ao conferente!...

* * *

No entretanto, não corriam com regularidade os serviços internos do Liceu. Mercê da sua precária saúde, o reitor, Álvaro de Eça, só tarde aparecia, quando aparecia... De dia para dia, menos atenção prestava aos diversos problemas pedagógicos e administrativos. O Liceu estava, por assim dizer, sem cabeça... / 83 /

No dia 11 de Novembro de 1925, reuniu-se extraordinariamente o Conselho Escolar, que resolveu representar ao Governo no sentido de o chefe do estabelecimento ser substituído interinamente, a fim de tratar da saúde; o professor Álvaro Sampaio propôs que fosse indicada a minha pessoa para tomar conta do cargo. Apesar, porém, dos termos em que a resolução do Conselho foi redigida, só em 2 de Janeiro fui nomeado! Soube-se, depois, que elementos não estranhos ao Liceu haviam pretendido pôr pedra sobre o assunto, ou conseguir que a nomeação não recaísse sobre mim. Escusado é dizer que não dei, acerca do assunto o mínimo passo!

Investido no cargo, logo me capacitei das responsabilidades que sobre mim impendiam: tinha de trabalhar com afã para carrilar a desconjuntada barcaça... Nas primeiras semanas, a maior canseira consistiu na organização das contas do Conselho Administrativo, atrasadas dois anos! O secretário do Liceu não teve uma hora de tréguas! Mas enfim, em princípios de Abril, estava tudo mais ou menos em ordem. Sabendo isso, apresentou-se o Reitor, inesperadamente, para retomar as suas funções (10 de Abril); e, no dia 14, resolveu convocar o Conselho Escolar e fez aprovar uma moção, em que se teciam elogios à minha gerência...

Duas mortes de professores se deram neste lapso de tempo: a do Dr. Eduardo Silva, em Janeiro, na ocasião em que um forte ataque de gripe me retinha na cama; e o do Dr. Elias Pereira, em 5 de Abril. A respeito deste professor, pronunciei no cemitério algumas palavras de justiça, por ocasião do funeral.

Foi também durante a minha reitoria interina que eu e Álvaro Sampaio lançámos a revista de ensino e extensão cultural – “Labor”  – que viria a ter grande expansão e a exercer notabilíssima influência no ensino. Bastará citar a reorganização da combalida Associação dos Professores Liceais e a realização dos Congressos do Ensino Secundário, para provar que não éramos simples visionários quando, mais uma vez, acamaradámos – e sempre em perfeita harmonia e unidade de vistas – para honrar o Ensino Secundário e a nossa classe. O nome da publicação, cujo primeiro número saiu em 18 de Janeiro de 1926, foi-me / 84 / sugerido pelo meu nunca esquecido amigo Júlio Moreira, em carta a que pertencem estas palavras: «Folgo muito com as boas noticias da revista, que, espalhando cultura, virá estimular as actividades intelectuais do público e será simultaneamente órgão dos professores que trabalham a sério no liceu e a sério tombam na sua nobre missão, – da revista “Labor”, por consequência". Foi seu único administrador o professor Armando Coimbra, e editor, durante algum tempo, Pedro Gradil, nomeado para a vaga deixada por Eduardo Silva.

* * *

O movimento revolucionário do 28 de Maio de 1926, que estabeleceu entre nós uma ditadura militar, veio modificar o regime escolar dos liceus e imprimir à educação da mocidade, como provarei adiante, orientação bastante diversa. À parte número reduzido de indivíduos, todos os republicanos, embora desconhecessem os fins que os revolucionários tinham em vista, se conformaram com os factos. A chefia do Governo Civil de Aveiro foi entregue a um velho republicano ten.-cor. médico, Dr. Manuel Rodrigues da Cruz, geralmente estimado nesta cidade. Fui cumprimentá-lo ao Governo Civil, e lembro-me de que pronunciei esta frase:

– Quere-se uma ditadura, inteligente, de cinco ou seis anos.

[Cinco ou seis anos! Uma eternidade!... Afinal, já lá vão dezassete, e ainda cá a temos!...]

Vem a propósito a referência a um episódio passado na estação do caminho-de-ferro, à passagem do general Gomes da Costa para o Sul. Na altura em que o comboio presidencial se punha em andamento, o chefe da revolução veio à janela e disse, de braço estendido para a multidão:

– Rapazes! Eu cá vou p'ra baixo!

Comentário de um advogado aveirense, conhecido pelo seu grande poder de adaptação política:

– O quê?! Então ele já diz que vai p'ra baixo?! / 85 /

* * *

Um dos primeiros actos do novo Ministro da lnstrução foi ordenar que em todos os liceus se fizessem, nos termos da lei, eleições de reitores. Em Aveiro, o Conselho Escolar reuniu-se para isso no dia 19 de Junho. Os três professores mais votados foram: eu, com oito votos; César Fontes, com seis; Álvaro Sampaio, com cinco.

No dia 9 de Julho, faleceu, na sua casa de Esgueira, o reitor Álvaro de Eça. O serviço de exames foi interrompido, e o corpo docente prestou ao morto a sua última homenagem, acompanhando-o ao jazigo da família, junto do qual falou o prof. Manuel Rodrigues Vieira. Anos antes, tinham os colegas resolvido inaugurar-lhe o retrato na sala dos professores, fazendo assim justiça à sua acção a favor do engrandecimento do Liceu.

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(1) – O Dr. José Rodrigues Soares estava gravemente enfermo e veio a falecer no dia 11 de Janeiro de 1917.

(2) – Foi, mais tarde, incorporado no volume – "O Amor das Nossas Coisas e Alguns que Bem o Serviram" –, editado pela Imprensa da Universidade (1933).

(3) – O terceiro e último acto, cuja cópia enviei a Mário Barreto, não foi publicado, pela circunstância de a Revista ter terminado.

 

 

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