V
– Aqui tem o colega uma turma de Geografia da 3.ª classe.
Pode gabar-se de que lhe entrego a turma mais indisciplinada do
Liceu!...
Tais foram, pouco mais ou menos, as palavras que ouvi a
um provisório, ao entregar-me a caderneta. Era essa, precisamente, a
turma em que ia principiar a minha carreira! Confesso que não foi sem
grande receio que entrei na sala de aula, para me defrontar com os
díscolos... Mas quê! A turma não era indisciplinada: um pouco mexida,
sim; daí, porém, até à indisciplina, ia grande distância. Fiquei
satisfeito! Possuía um dos principais requisitos do mestre: sem
constrangimentos, sem atitudes de papão, tinha nas mãos os alunos. E
logo me convenci de que podia vir a ser um bom professor. Fazendo exame
de consciência; evocando todas quantas leituras fizera de pedagogia e
didáctica, propus-me ser o que não eram muitos dos professores meus
conhecidos: rigorosamente assíduo e pontual; paternal, actuando não pelo
castigo, mas pela persuasão, e sempre com o máximo respeito pela
personalidade do
educando; leal, franco e generoso; justo; sempre ansioso
de cultura e progresso. A escola primária, o Liceu; mesmo, em parte, o
Curso Superior de Letras, apontavam-me processos de ensino condenáveis,
a que se podia juntar o sinistro cortejo da incúria, desleixo, cabulice,
deslealdade e velhacaria... Iria eu imitar esses mestres e
pseudo-educadores? Não! Procuraria conduzir-me muito ao invés desses
falsos pedagogos, imitando os raros, os raríssimos capazes de me
servirem de modelo. Dois, especialmente, avultavam a meus olhos: Manuel
de Oliveira Ramos e o Dr. José Maria Rodrigues. Seguir-lhes-ia o exemplo
salutaríssimo!
O corpo docente do Liceu de Alves Martins recebeu-me bem.
De quase todos os professores tive provas de estima e fiquei ligado a
bastantes deles por laços de amizade. A primeira coisa que fiz foi
estudá-los... O Reitor era homem bondoso, mas pouco enérgico e,
portanto, incapaz de congregar, numa só vontade, à volta de si, a grande
maioria dos mestres. Logo nos primeiros dias
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notei conluios, má língua... Tomei nota e não me inclinei, nem para o
lado dos afeiçoados ao chefe nem para o dos seus inimigos. Essa falta de
harmonia tomava os conselhos escolares verdadeiramente tumultuosos e
infrutíferos, e não podia deixar de se reflectir, desastrosamente, na
disciplina da população escolar. Durante o tempo em que estive em Viseu
– desde Fevereiro a 31 de Outubro de 1916 –, houve sete processos
disciplinares contra alunos, sem que nenhum deles, mercê da facção
hostil ao Reitor, mais numerosa, sofresse qualquer castigo! Para se
avaliar do ambiente do Liceu, em matéria de disciplina, bastará referir
um episódio.
No dia 14 de Maio, primeiro aniversário da revolução
assim designada, antes do toque da sineta para a primeira aula. Ainda
não chegara o Reitor. Alguém disse ao director de classe mais antigo, um
cónego, que estava ali uma carta do Governador Civil a pedir se
concedesse feriado aos rapazes, e que, na falta do Reitor, lhe competia
tomar conhecimento e dar providências... O cónego, muito ingénuo, abriu
a carta e concedeu o feriadinho! Pouco depois, chega o Reitor. Apesar de
republicano, mostrou-se aborrecido com o que se passara, mas não
contrariou os factos.
No dia imediato, os alunos das classes mais adiantadas,
que logo de manhã haviam ido à estação esperar um grupo de estudantes da
Escola de Belas Artes de Lisboa, entenderam que, por esse motivo, lhes
devia ser dado feriado, e mandaram ao Reitor uma deputação de visitantes
formular o pedido. Quando os emissários apareceram e um deles disse –
"Caros colegas, o Sr. Reitor não dá feriado!", foi o diabo: assuada,
assobios, gritos subversivos de toda aquela turba. No auge do motim,
teve o Reitor a insensatez de aparecer e de falar... E assistiu-se então
a esta inconcebível cena: o Reitor foi vaiado e corrido aos gritos de
"Abaixo! Fora o Reitor!"
Lá dentro, na Reitoria, cercado agora da maior parte dos
mestres, o Reitor, enfiado, perguntava:
– E agora? Que hei-de fazer?
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E fui eu, o mais moderno dos professores e talvez o mais
inexperiente, quem lhe respondeu:
– Se me dá licença, Sr. Reitor, direi que o que V. Ex.ª
tem a fazer é bem simples: manda tocar para a segunda aula e marcar
falta a quem não comparecer.
Assim se fez, mas nenhum dos cabeças do motim foi
castigado!
A minha carreira começou neste fantástico meio escolar.
No ensino, predominava a rotina. Os professores novos, alguns distintos,
faziam contra-vapor, mas só com atitudes heróicas se iam impondo. Dois
deles, mais ásperos, chegaram a ser apupados no cinema por alunos a quem
haviam atribuído notas baixas e, por precaução, viram-se obrigados a
usar revólver!
Por determinação de Conselho Escolar, fui escolhido para
falar na comemoração camoniana desse ano, realizada numa das salas do
Liceu, no dia 10 de Junho. Perante os alunos e o corpo docente, proferi
uma alocução sobre Camões. Foi a primeira vez que me defrontei com
público numeroso.
Referirei agora um episódio, resultante da declaração de
guerra da Alemanha a Portugal (9 de Março de 1916). Estava constituído o
Governo da União Sagrada, e os súbditos alemães iam ser expulsos do
nosso país. Havia no Liceu de Viseu um professor provisório, alemão,
encarregado da regência da sua língua – um pobre velho, de apelido
Lenschner – sobre cuja cabeça caiu o rigor das leis da guerra. Pobre
homem! Era o mais sincero lusófilo que ainda conheci: grande admirador
de Camões, recitava-nos estrofes inteiras de Os Lusíadas.
Português pelo coração, via-se obrigado a abandonar a sua pátria
adoptiva!
Chorava como uma criança, quando de nós de despediu!
Pobre homem!
Viseu é uma bela cidade e uma boa terra, rica e farta
como poucas. Guardo as melhores recordações dos visienses e do seu meio,
e isso a despeito da conhecidíssima frase de "De Viseu, cão sim, homem
não!". A vida familiar, porém, decorreu-nos pessimamente, em virtude de
grave doença de minha filha, que obrigava minha mulher a não abandonar a
casa, e do problema das
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criadas... Guiado pelo Director da Escola Normal, Pe José Marques de
Castilho, que já o fora da congénere de Aveiro, pude, ainda assim,
conhecer os principais arrabaldes da cidade – Ranhados, Vil de Moinhos,
S. Pedro de France, Abravezes, etc. – e os cemitérios pré-históricos que
na região abundam.
Já atrás disse que abandonei Viseu no dia 31 de Outubro
daquele ano de 1916. Com efeito, nesse dia; deixámos a nossa casa, sita
no Bairro do Massorim. Vinha para o Liceu de Aveiro tomar conta do
serviço deixado pelo professor adido, Dr. João Ferreira Gomes, na altura
transferido para o de Viseu, onde também iria exercer o cargo de
professor efectivo da Escola Industrial.
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