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Memórias de José Pereira Tavares - pp. 57-60

 

V

– Aqui tem o colega uma turma de Geografia da 3.ª classe. Pode gabar-se de que lhe entrego a turma mais indisciplinada do Liceu!...

Tais foram, pouco mais ou menos, as palavras que ouvi a um provisório, ao entregar-me a caderneta. Era essa, precisamente, a turma em que ia principiar a minha carreira! Confesso que não foi sem grande receio que entrei na sala de aula, para me defrontar com os díscolos... Mas quê! A turma não era indisciplinada: um pouco mexida, sim; daí, porém, até à indisciplina, ia grande distância. Fiquei satisfeito! Possuía um dos principais requisitos do mestre: sem constrangimentos, sem atitudes de papão, tinha nas mãos os alunos. E logo me convenci de que podia vir a ser um bom professor. Fazendo exame de consciência; evocando todas quantas leituras fizera de pedagogia e didáctica, propus-me ser o que não eram muitos dos professores meus conhecidos: rigorosamente assíduo e pontual; paternal, actuando não pelo castigo, mas pela persuasão, e sempre com o máximo respeito pela personalidade do

educando; leal, franco e generoso; justo; sempre ansioso de cultura e progresso. A escola primária, o Liceu; mesmo, em parte, o Curso Superior de Letras, apontavam-me processos de ensino condenáveis, a que se podia juntar o sinistro cortejo da incúria, desleixo, cabulice, deslealdade e velhacaria... Iria eu imitar esses mestres e pseudo-educadores? Não! Procuraria conduzir-me muito ao invés desses falsos pedagogos, imitando os raros, os raríssimos capazes de me servirem de modelo. Dois, especialmente, avultavam a meus olhos: Manuel de Oliveira Ramos e o Dr. José Maria Rodrigues. Seguir-lhes-ia o exemplo salutaríssimo!

O corpo docente do Liceu de Alves Martins recebeu-me bem. De quase todos os professores tive provas de estima e fiquei ligado a bastantes deles por laços de amizade. A primeira coisa que fiz foi estudá-los... O Reitor era homem bondoso, mas pouco enérgico e, portanto, incapaz de congregar, numa só vontade, à volta de si, a grande maioria dos mestres. Logo nos primeiros dias / 58 / notei conluios, má língua... Tomei nota e não me inclinei, nem para o lado dos afeiçoados ao chefe nem para o dos seus inimigos. Essa falta de harmonia tomava os conselhos escolares verdadeiramente tumultuosos e infrutíferos, e não podia deixar de se reflectir, desastrosamente, na disciplina da população escolar. Durante o tempo em que estive em Viseu – desde Fevereiro a 31 de Outubro de 1916 –, houve sete processos disciplinares contra alunos, sem que nenhum deles, mercê da facção hostil ao Reitor, mais numerosa, sofresse qualquer castigo! Para se avaliar do ambiente do Liceu, em matéria de disciplina, bastará referir um episódio.

No dia 14 de Maio, primeiro aniversário da revolução assim designada, antes do toque da sineta para a primeira aula. Ainda não chegara o Reitor. Alguém disse ao director de classe mais antigo, um cónego, que estava ali uma carta do Governador Civil a pedir se concedesse feriado aos rapazes, e que, na falta do Reitor, lhe competia tomar conhecimento e dar providências... O cónego, muito ingénuo, abriu a carta e concedeu o feriadinho! Pouco depois, chega o Reitor. Apesar de republicano, mostrou-se aborrecido com o que se passara, mas não contrariou os factos.

No dia imediato, os alunos das classes mais adiantadas, que logo de manhã haviam ido à estação esperar um grupo de estudantes da Escola de Belas Artes de Lisboa, entenderam que, por esse motivo, lhes devia ser dado feriado, e mandaram ao Reitor uma deputação de visitantes formular o pedido. Quando os emissários apareceram e um deles disse – "Caros colegas, o Sr. Reitor não dá feriado!", foi o diabo: assuada, assobios, gritos subversivos de toda aquela turba. No auge do motim, teve o Reitor a insensatez de aparecer e de falar... E assistiu-se então a esta inconcebível cena: o Reitor foi vaiado e corrido aos gritos de "Abaixo! Fora o Reitor!"

Lá dentro, na Reitoria, cercado agora da maior parte dos mestres, o Reitor, enfiado, perguntava:

– E agora? Que hei-de fazer? / 59 /

E fui eu, o mais moderno dos professores e talvez o mais inexperiente, quem lhe respondeu:

– Se me dá licença, Sr. Reitor, direi que o que V. Ex.ª tem a fazer é bem simples: manda tocar para a segunda aula e marcar falta a quem não comparecer.

Assim se fez, mas nenhum dos cabeças do motim foi castigado!

A minha carreira começou neste fantástico meio escolar. No ensino, predominava a rotina. Os professores novos, alguns distintos, faziam contra-vapor, mas só com atitudes heróicas se iam impondo. Dois deles, mais ásperos, chegaram a ser apupados no cinema por alunos a quem haviam atribuído notas baixas e, por precaução, viram-se obrigados a usar revólver!

Por determinação de Conselho Escolar, fui escolhido para falar na comemoração camoniana desse ano, realizada numa das salas do Liceu, no dia 10 de Junho. Perante os alunos e o corpo docente, proferi uma alocução sobre Camões. Foi a primeira vez que me defrontei com público numeroso.

Referirei agora um episódio, resultante da declaração de guerra da Alemanha a Portugal (9 de Março de 1916). Estava constituído o Governo da União Sagrada, e os súbditos alemães iam ser expulsos do nosso país. Havia no Liceu de Viseu um professor provisório, alemão, encarregado da regência da sua língua – um pobre velho, de apelido Lenschner – sobre cuja cabeça caiu o rigor das leis da guerra. Pobre homem! Era o mais sincero lusófilo que ainda conheci: grande admirador de Camões, recitava-nos estrofes inteiras de Os Lusíadas. Português pelo coração, via-se obrigado a abandonar a sua pátria adoptiva!

Chorava como uma criança, quando de nós de despediu! Pobre homem!

Viseu é uma bela cidade e uma boa terra, rica e farta como poucas. Guardo as melhores recordações dos visienses e do seu meio, e isso a despeito da conhecidíssima frase de "De Viseu, cão sim, homem não!". A vida familiar, porém, decorreu-nos pessimamente, em virtude de grave doença de minha filha, que obrigava minha mulher a não abandonar a casa, e do problema das / 60 / criadas... Guiado pelo Director da Escola Normal, Pe José Marques de Castilho, que já o fora da congénere de Aveiro, pude, ainda assim, conhecer os principais arrabaldes da cidade – Ranhados, Vil de Moinhos, S. Pedro de France, Abravezes, etc. – e os cemitérios pré-históricos que na região abundam.

Já atrás disse que abandonei Viseu no dia 31 de Outubro daquele ano de 1916. Com efeito, nesse dia; deixámos a nossa casa, sita no Bairro do Massorim. Vinha para o Liceu de Aveiro tomar conta do serviço deixado pelo professor adido, Dr. João Ferreira Gomes, na altura transferido para o de Viseu, onde também iria exercer o cargo de professor efectivo da Escola Industrial.

 

 

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