IV
Era forçoso seguir para Lisboa, a fim de me iniciar nos
labores do Curso Superior de Letras. Foi um pouco impensadamente, apenas
levado pelo desejo de ser professor liceal, que escolhi a nova carreira:
nenhuma disposição legal garantia a rápida ou segura colocação aos
diplomados por essa escola. Mas... alea jacta erat! Necessário se
tornava partir, porque as aulas deviam abrir num dos primeiros dias de
Outubro. Além disso, o candidato a professor ansiava por conhecer
Lisboa, a capital do Reino e futura capital da República...
[…..]
* * *
Parti para Lisboa no dia 30 de Setembro, no comboio
correio da manhã, que tomei em Estarreja. Aí me juntei ao meu
condiscípulo da 7.ª classe de Letras, Caetano Vasques Calafate, poveiro
da gema, candidato, como eu, a professor liceal. Ambos nos íamos
familiarizar com a Capital, completamente desconhecida dos dois. No
Entroncamento, já fartos de "correio", resolvemos passar para o
"rápido", a fim de encurtar a viagem.
Chegados à Capital, instalámo-nos nas casas que um
saudoso amigo e quase conterrâneo meu nos havia arranjado: Vasques
Calafate aposentou-se em casa de uma senhora, na Rua da Procissão, e ia
comer à casa que me fora destinada, sita na Rua de S. Marçal. Sobre ele,
tinha eu a vantagem, não pequena, de comer e dormir debaixo das mesmas
telhas. Nessa noite, sob a direcção do meu citado amigo já fomos a um
cinema... Estavam lançados os dois provincianos!
No dia 1 Outubro, chegou e foi oficialmente recebido o
marechal Hermes da Fonseca, presidente eleito do Brasil; no dia 3, à
tarde, houve distúrbios, com vivas à República e pranchadas da polícia,
provocados pelo assassínio do Dr. Miguel Bombarda. Perpetrara o crime um
exaltado e destrambelhado, antigo doente do hospital da Rilhafoles, cuja
mão se dizia ter sido armada por
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elementos reaccionários. Pressentia-se que Lisboa era um vulcão e que
graves acontecimentos se iam dar.
Ao jantar, à noitinha, um comensal nosso, aluno do
Instituto Industrial, disse-nos, em segredo, que a revolução estalaria
naquela noite; que os estudantes revolucionários se juntariam no Café do
Gelo, cerca da meia-noite, e que dali se dirigiriam para o quartel de
Infantaria 5, onde lhes seria distribuído armamento. Embora ouvíssemos
com cepticismo a grave notícia, estivemos, eu e o Calafate, nas
cercanias do Café até à hora indicada. Cansados, porém, do contínuo
passear e convencidos de que a informação era simples boato, fomo-nos
deitar.
De madrugada acordo estremunhado. Havia vozes e movimento
na rua e, para os lados do Tejo troava o canhão! Levantei-me
imediatamente, tomado de grande nervosismo; e, quando me dispunha a
sair, bateu-me à porta o Calafate, para me dar a notícia do que se
passava. A revolução era um facto!
Não posso descrever o meu estado de espírito durante o
dia 4 e 5 de Outubro e os dias que se lhes seguiram! Numa manhã, os dois
inexperientes provincianos, que, para se não perderem na cidade, seguiam
sempre as mesmas ruas, tiveram o arrojo de atravessar a Baixa, pela Rua
de Santa Justa, para o lado da Praça da Figueira. Queríamos ouvir, da
boca de um meu quase conterrâneo, morador na Rua de Fernandes da
Fonseca, alguma coisa acerca do movimento.
Tendo ele sido preso por ocasião do 28 de Janeiro de
1908, era de crer que estivesse no segredo dos deuses, ou de novo metido
em movimentos revolucionários. Encontrámo-lo tranquilo, sem saber mais
do que nós... Trocadas poucas palavras, demo-nos pressa em passar para o
nosso bairro, o que não foi fácil, pois as embocaduras das ruas Augusta,
Arco da Bandeira e do Oiro estavam guarnecidas de forças, munidas de
metralhadoras. Passávamos de uma rua para outra nos intervalos do
tiroteio!
O dia 4 foi todo passado em pontos do Bairro Alto donde
alguma nesga da Avenida se podia descortinar: Jardim de S. Pedro de
Alcântara e Escadinhas da
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Mãe d'Água, principalmente. Deitámo-nos noite alta, extenuadíssimos.
No dia 5, levantei-me muito cedo, mas o meu companheiro,
dorminhoco, preferiu guardar para mais tarde o inteirar-se do que se ia
passando... Atravessei o Bairro Alto; segui por S. Pedro de Alcântara;
desci ao Largo de S. Roque... Aí, tive de me refugiar no vão de uma
porta. Terminado o tiroteio
que interrompera o prosseguimento das minhas pesquisas,
desci a Rua da Misericórdia, onde ficavam as instalações do jornal "O
Mundo", a mais avançada das gazetas republicanas, a cuja entrada vi o
cadáver de um homem. Era o do guarda-portão. Atingido o jardim do Alto
de Santa Catarina, aí encontrei compacta multidão de olhos fitos no
Tejo. O cruzador D. Carlos salvava a terra, sinal de que se rendera aos
revolucionários. Passado pouco tempo, uma mulher, açodada, dá a notícia
de que a República havia sido, pouco antes, proclamada das janelas da
Câmara Municipal.
Não quis ouvir mais: passei pelo "Mundo", onde soube da
constituição do Governo Provisório, e desci, pela Calçada da Glória, à
Avenida da Liberdade, tomada pela população. Um delírio! A alegria
lia-se em todos o rostos. Pessoas que nunca se tinham visto abraçavam-se
com efusão. Por toda a parte, surgiam bandeiras verde-rubras, que também
se divisavam em inúmeras janelas. Prosseguindo, achei-me em frente do
quartel-general instalado no palácio dos Almadas, no Largo de S.
Domingos. Nesse momento, um marinheiro, subido à extremidade de uma
escada Magyrus, acabara de içar, na ponta do mastro, uma bandeira; e,
tirando o boné, exclamou:
– Viva a República!
Frenéticas salvas de palmas da multidão coroaram as
palavras do marujo.
Organizou-se então um cortejo que eu não sabia aonde de
destinava. Todo aquele mar de gente, empunhando centenas e centenas de
bandeiras, seguiu atrás de uma banda – creio que a da Guarda Municipal –
entoando, ao som dela, as estrofes da Portuguesa. O cortejo marchou
através do Rossio, seguiu a Rua do Oiro e foi dissolver-se na frente da
Câmara Municipal. Não se descreve o
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entusiasmo daquela manifestação. Das janelas, soltavam-se vivas,
batiam-se palmas, agitavam-se lenços. O meu entusiasmo! Confesso que,
mais de uma vez, chorei de alegria.
O Vasques Calafate perdera um belo espectáculo. Teve de
se contentar com o relato que lhe fiz ao almoço. Como satisfação pelo
curso dos acontecimentos tivemos melhoria de rancho, e a filha da dona
da casa, que nunca costumava aparecer-nos, mostrou-se-nos durante o
almoço, sentada ao piano, na tarefa de nos deliciar com a Portuguesa.
Nos dias seguintes não abandonávamos a Baixa, a observar
os variadíssimos aspectos que ela ia tomando. Farroupilhas de guarda aos
Bancos; civis empregados na manutenção da ordem; marujos armados, em
rusgas pelo Bairro Alto, na tarefa de apreender armamento e de revistar
os transeuntes, outros conduzindo jesuítas presos; manifestações;
polícias e oficiais, fora do serviço, a ostentar, no braço, as cores
nacionais...
Vem-me agora à memória um curioso episódio dessa generosa
revolução, cheia de patrióticas aspirações, que mais tarde milhares de
camaleões e arranjistas haviam de desvirtuar e desacreditar.
No Rossio, à tarde, no passeio fronteiro aos cafés.
Grande movimento. De repente, surgem, vindos talvez da Avenida, dois
marinheiros, de arma ao ombro. Um sacerdote, de seus cinquenta anos,
óculos, rosto severo, seguia tranquilamente para o lado da Rua do Oiro.
Os marujos pararam. Depois, alcançaram o passeio e cercaram o velho,
que, atónito, quase sem palavras, lhes perguntava por que é que o
prendiam. Ouviu-se a palavra Jesuíta. Juntou-se gente. Então um
indivíduo, que depois reconheci ser aluno do Curso Superior de Letras,
furou pelo já grande aglomerado de pessoas e exclamou:
– Que é que os senhores estão a fazer? Este senhor não é
jesuíta: é o Sr. Dr. José Maria Rodrigues, distinto professor do Curso
Superior de Letras!
– Viva o Sr. Dr. José Maria Rodrigues! – respondeu um dos
marinheiros.
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E ele e o companheiro seguiram o seu caminho, por entre o
ruído das palmas dos espectadores.
Chamei generoso ao movimento. Sem dúvida. Foi
sobre a generosidade que os responsáveis fundaram a sua acção. A
revolução não tirou desforço algum dos inimigos da véspera. Como
escreveu João Chagas, «a revolução triunfante esqueceu num dia todo o
seu passado de sangue, de lágrimas e dores. Esqueceu tudo». Logo no dia
6, de manhã, pôde o povo ler, pregado por toda a parte ou entregue em
mão, o aviso, subscrito pelo Governador Civil de Lisboa, Eusébio Leão,
que dizia, textualmente: – «Republica Portuguesa. – Patria e Liberdade.
– Govêrno Civil de Lisboa. – Para garantir a liberdade individual,
condição necessaria da segurança social e da honra do povo republicano,
faz-se saber a todos os cidadãos que é indispensavel haver todo o
respeito pelas pessoas dos polícias, dos soldados municipaes e dos
padres, assim como de individuos de qualquer outra condição,
castigando-se rigorosamente qualquer desacato que se pratique.»
No dia 7, em proclamação dirigida Ao Povo de Lisboa,
o Governo Provisório convidava os revolucionários a deporem as armas,
confiando na acção da força armada, que de todos os cantos do país
aderia ao advento das novas instituições, e a regressarem ao trabalho.
Eis os primeiros períodos dessa proclamação:
– «A athitude do povo tem sido admirável de serenidade e
cordura. Após o acto revolucionario, em que elle foi de uma bravura
antiga, succedeu-se o enthusiasmo da victoria, em que elle se tem
comportado como um triumphador generoso que fez da nobreza de
sentimentos o mais bello padrão de uma gloria legendaria. Mas é preciso
regressar ao trabalho fecundo, que será, com uma moral idade severa, a
base da nossa regeneração. Por isso o Governo Provisorio convida todos
os grupos revolucionarios e forças populares não militarizadas a
entregarem as suas armas às Comissões parochiaes.»
Em 16, domingo, realizou-se o funeral, nacional, de
Miguel Bombarda e
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Cândido Reis – Almirante Reis –, alma do movimento que, na madrugada do
dia 4, julgando-o perdido, se suicidara para os lados de Arroios.
Espectáculo impressionantíssimo! Durante três horas consecutivas,
acompanhado do meu amigo José Gamelas – que propositadamente fora a
Lisboa – assisti, na Avenida da Liberdade, ao desfile do
impressionantíssimo cortejo, que era, ao mesmo tempo, homenagem a dois
obreiros da revolução e glorificação do regime nascente.
* * *
No dia 17, começaram enfim as aulas do Curso Superior de
Letras. O primeiro ano, comum, com os dois seguintes, aos candidatos de
todos os grupos, constava das seguintes cadeiras: Geografia, Filologia
Latina, Língua e Literatura Francesa, Inglês, História Antiga e
Filosofia. Decorrida a primeira semana, já nós estávamos inteirados do
valor e índole de cada mestre. O de Geografia, Silva Teles, dava-nos da
disciplina uma visão moderna, atraente, completamente diversa da que
conhecíamos, mas a exposição era algo prejudicada pela preocupação da
forma, demasiado oratória e palavrosa; o de Latim, Dr. José Maria
Rodrigues, apareceu-nos logo como o protótipo do professor: sapiência a
rodos, austeridade, lealdade, assiduidade e pontualidade exemplares;
David Lopes, professor de Francês, competentíssimo e muito cumpridor,
fêz-nos um curso da Literatura Francesa sobre o século XVII,
fundamentado em CorneilIe ("Le Cid") e Racine ("Phedre"); a Alfredo
Speel, professor de Inglês, de origem polaca (ou russa, valha a
verdade...), prejudicava-o a pouca confiança com que falava o Português;
em História Antiga tivemos, até Janeiro, o professor Manuel de Oliveira
Ramos, quase completamente cego, mas grande mestre, muito amigo dos
alunos, de exposição brilhantíssima, e de Fevereiro por diante Agostinho
Fortes, sabedor, mas cábula, que muitas vezes não preparava as lições e
nos falava ao sabor do que na ocasião lhe saía...; em Filosofia,
finalmente, Adolfo Coelho, cuja erudição era vastíssima, mas que, logo
aos primeiros contactos, se nos revelou criatura odienta e velhaca.
Já agora, direi as minhas impressões acerca dos restantes
professores, cujas
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lições ouvimos em anos futuros: Silva Cordeiro, de Filosofia, que nos
leccionou na História dessa cadeira, era um louco, com excentricidades
inconcebíveis, mas prelector de grande brilho, sempre ouvido com sumo
prazer; Queirós VeIoso, director do Curso e depois da Faculdade de
Letras, com quem sempre contávamos na defesa dos nossos direitos de
futuros professores liceais, ensinou-nos História da Pedagogia e
Metodologia do Ensino; Teófilo Braga, professor de Literatura Pátria,
poço de ciência, tinha uma exposição monótona, que afastava os ouvintes,
a ponto de, por vezes, serem as suas aulas apenas frequentadas por...
três alunos e, tendo gasto todo um ano só com Camões, pouco, pouquíssimo
nos ensinou; a José Leite de Vasconcelos ouvimos lições sempre
muito proveitosas, de Filologia Românica, fundadas
sobre textos provençais(1).
Era exigentíssimo, mas nunca ninguém o acusou de desleal ou o
desconsiderou, a despeito de seu feitio aparentemente agressivo.
Finalmente, o professor de Alemão foi Gustavo Cordeiro Ramos, rapaz
novo, muito acanhado, de aspecto efeminado, que logo na primeira lição,
perante alunos que, na sua maior parte, nem o alfabeto alemão conheciam,
começou a preleccionar na língua de Goethe, falando-nos do Fausto, nas
suas relações com os trabalhos de Marlowe... Resultado: como a grande
maioria dos alunos não podia acompanhar tais prelecções e como, por
outro lado, o professor não quis atender às objecções que se lhe fizeram
sobre isso, resolveu todo o curso abandonar as aulas durante os dois
anos lectivos (2.º e 3.º ano), com excepção, apenas, de uma aluna,
destinada ao 3.º grupo e à altura de poder acompanhar o entusiasmo do
mestre. No exame final, foi preciso conseguir do Ministro da Instrução
que a prova escrita de Alemão se cifrasse em traduzir um passo do texto
indicado para o acto ("Miss Sara Sampson"), e que o professor
Gustavo não fizesse parte do júri... Tudo isso ficámos a dever a Queirós
Veloso, para mais Director do Ensino Superior.
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A partir do meu 1.º ano, instituiu no Curso o Dr. José
Maria Rodrigues um curso livre de explicação de Os Lusíadas,
largamente frequentado, onde nos foi dado conhecer todas as conclusões a
que o grande Mestre havia chegado nos estudos que se acham reunidos nas
Fontes dos Lusíadas.
* * *
A respeito de aulas, houve um delicioso episódio que devo
aqui referir. Foi no dia em que Agostinho Fortes se apresentou, a
substituir o prof. Manuel Ramos. Perante o assombro de todos, o José
Saraiva, que nós, para assim dizer, já tínhamos nomeado nosso "leader",
sem que nada nos dissesse, entendeu dever increpar o novo mestre sobre a
sua nomeação e protestar contra ela! O nosso assombro redobrou quando
Agostinho Fortes, muito calmo e com ar de quem achava legítimos a
increpação e o protesto, nos explicou que estava ali por direito de
conquista, visto ter sido, em tempos, aprovado, em mérito absoluto, para
professor da casa. Devo dizer que este acto de audácia nenhum prejuízo
acarretou a José Saraiva, que até obteve distinções na cadeira. Bons
tempos!
Em política, no C. S. de Letras, havia de tudo:
republicanos avançados, alguns deles revolucionários de 5 de Outubro;
republicanos moderados; e bastantes rapazes indiferentes em matéria
política; mas a casa era também um razoável alfobrezinho de
reaccionários, que todavia se não manifestavam abertamente como tais,
por não verem campo propício para as suas exibições... Nos mais
retintamente avançados estavam o Domingos Braga Zicker, o Alberto Jordão
Marques da Costa – esses já adiantados no Curso – e o Alexandre Barbas,
nosso condiscípulo, que tinha relações com os grandes influentes
políticos e exercia o ensino na Tutoria da Infância. O Barbas! Nunca vi
esse bom amigo senão a protestar! Aquela fenomenal cabeleira, coroada
pelo chapéu de coco; a bigodeira, refilona, quase policial; o olhar
penetrante, de homem enérgico e voluntarioso – indicavam o inimigo,
declarado, do trono e do altar, muito mais do altar que do trono, apesar
de ex-seminarista, ou talvez por isso mesmo... /
51 /
* * *
Aquele primeiro ano do Curso foi o mais feliz de quantos
passei em Lisboa. Como arrelia, e não pequena, tive a dificuldade do
problema da alimentação. Estranhei muito a passagem do meio portuense,
onde se comia bem, para o de Lisboa, onde, a não me defender, passaria
fome! Tive de mudar, com frequência, de pensão: Isso e a má qualidade
dos temperos em todas elas foram o prelúdio de sofrimentos do aparelho
digestivo, que em muito prejudicaram o meu curso.
Em princípios de Novembro, foram instituídos cursos
livres. Essa disposição legal nenhum prejuízo me trouxe, antes me foi de
grande utilidade; a muitos, porém, veio alimentar a cabulice que já lhes
estava na massa do sangue... Fazia-me muita impressão que futuros
professores liceais não tratassem de adquirir ou cultivar as qualidades
que depois, como educadores, seriam obrigados a transmitir aos alunos.
Numa palavra: não compreendia que no Curso Superior de Letras houvesse
cábulas, embora alguns dos mestres o fossem... Cumprindo sempre as
minhas obrigações, fui aplicado e assíduo; mas não cifrava nisso a minha
actividade: lia bastante, lia sempre; assistia, regularmente, aos
concertos da banda da Guarda Republicana, na parada do quartel do Carmo,
às 5.ªs feiras; frequentava os concertos de música sinfónica da
orquestra do maestro Pedro Blanch, e as temporadas de ópera no Coliseu
tinham em mim, apesar da magreza da mesada, um fervoroso "dilettante".
Ouvi grandes celebridades, como a Maria Galvany, que já conhecia do
Porto, das óperas "Lucia", "Sonambola", "Traviata" e "Barbeiro de
Sevilha"; Maria Júdice da Costa; Francisco Viñas; e foi-me dado a
grandíssima satisfação de ver, em carne e osso, o célebre maestro e
compositor francês Saint-Saens a reger, perante o Coliseu à cunha, a sua
ópera "Sansão e Dalila"!
Feitos os exames do 1.º ano, em Julho de 1911, com
distinção em Filologia Latina, parti para férias. Começou então a minha
odisseia. Em fins de Agosto, um valente ataque de icterícia, que me
obrigou a dieta e a pôr de parte o vinho. O estômago começou a funcionar
mal. Já sabia que me era necessário ter muita cautela com as pensões. Um
diabólico problema! Em Outubro, voltei a Lisboa,
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agora acompanhado de meu irmão João, que resolvera tirar o resto dos
preparatórios na Escola Politécnica. Em Fevereiro de 1912, por
agravamento dos meus males, fui para o Pinheiro, com a esperança de
poder consertar o estômago até à Páscoa; mas, em breve, convenci-me de
que se iam seguir para mim dias bem amargos: as digestões faziam-se com
grande dificuldade, e as dores de estômago, violentas e periódicas, não
me deixavam. Deixei de ler, porque as enxaquecas eram constantes.
Neurastenizei-me ao máximo e emagreci extraordinariamente: o meu peso
baixou de 80 quilos para 64! Em fim de Maio, sem indicação médica, fui
para CaldeIas, acompanhado de minha irmã e de minha sobrinha Carmen,
filha dela. Foi na altura em que Paiva Couceiro fez a sua primeira
incursão para o restabelecimento da Monarquia...
Tive uma grande crise de águas, o que, no dizer de
aquistas experimentados, era sinal de que ia tirar bons resultados do
tratamento. Regressei abatidíssimo ao Pinheiro e exacerbou-se-me o
estado de neurastenia, agravado pela ideia de que não poderia
preparar-me para os actos do 2.º ano. Foi o Dr. Carros Ribeiro da Cunha,
que então se estabeleceu no Pinheiro como médico municipal, quem me
convenceu, em larga conversa sobre a etiologia da minha doença, de que,
se reagisse à depressão nervosa e soubesse querer, poderia fazer os
exames e até, com cuidados dietéticos, prosseguir nos meus estudos...
Com efeito, no dia seguinte comecei a preparar-me para os actos, que fiz
em Outubro. Estava, apesar de tudo, no terceiro ano!
[…..]
Apesar de todos os contratempos, fiz os meus exames e
consegui três distinções: em Filologia Românica, em Filologia Portuguesa
e em História Pátria. O Alemão, por causa do incidente com o prof.
Gustavo Ramos, ficava para Outubro: só a colega Adelaide Félix, que
sempre assistira às aulas durante o 2.º e o 3.º ano, é que se submeteu a
exame. Foi durante este terceiro ano que conheci e me relacionei com os
estudantes da Faculdade de Letras – Carlos Simão Ventura e João da Silva
Correia, ao depois muito ilustres professores, respectivamente, da
Faculdade de Letras de Coimbra e de Lisboa. Saíram do Curso,
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por altura do meu 2.º ano, se não me engano, os conceituados estudantes
Hernâni Cidade e Damião Peres, que mais tarde, depois de haverem passado
pelo Ensino Liceal, foram escolhidos para a Faculdade de Letras do
Porto, de vida efémera, e hoje estão honrando, o primeiro a Fac. de
Letras de Lisboa, e a de Coimbra o segundo, a que ascenderam por
concurso.
Depois de haver feito nova cura de águas em Caldelas,
seguiu-se o 4.º ano secção de Português e Latim (1.º grupo). Éramos
cinco: o José Saraiva, o Hermínio Sarmento, o Celestino Roda (Padre), o
José Luís (surdo como uma porta, que não chegou a concluir o curso), e
eu. O primeiro estava cotado em primeiro lugar, e eu em segundo. Nesse
ano, auxiliados pelo Dr. Queirós Veloso, tivemos de, várias vezes,
interceder junto do Parlamento para fazer valer os nossos direitos
contra uma lei, que chegou a ser aprovada, segundo um artigo da qual
indivíduos com cinco anos de exercício do cargo de professor provisório
dos liceus passariam a efectivos! Era a célebre emenda de Tomás da
Fonseca. Venceu a Justiça: tal artigo, gravemente lesivo dos interesses
de muitos diplomados, nunca chegou a ter execução. Bons tempos!
Esperava-me, no fim do ano, um dos maiores desgostos da
minha vida: o professor Adolfo Coelho mimoseou-me, no exame final, com
um R, que me obrigou a repetir o ano! Causa? Muito simples, conforme
depois averiguei: devi isso à circunstância de não ter submetido,
previamente, à apreciação do mestre, a minha dissertação – "O Ensino da
Língua Portuguesa nos Liceus" – e, sobretudo, de nela haver citado a
autoridade de José Leite de Vasconcelos. O meu desconhecimento da
verdadeira psicologia de Adolfo Coelho prejudicou-me, e muito, a minha
carreira. Mas houve outras vítimas, tão ingénuas como eu. A Dr.ª
Adelaide Félix, por exemplo, que teve o arrojo de apresentar um
trabalho sobre o Otelo de Shakespeare, com prefácio de Teófilo
Braga, sucedeu outro tanto! O meu R caiu como bomba no seio da
Faculdade, onde eu não era desconhecido. Lamentaram-no, assombrados, os
restantes mestres, inclusive o Director; mas Adolfo Coelho ficava
satisfeito! E deu-se esta monstruosidade: os meus condiscípulos, com
excepção do José Saraiva, receando as
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iras do odiento e desleal magister, adoeceram. Adolfo, afinal,
não fez, naquela época, mais serviço de exame, e em Outubro... aprovou
todos os meus restantes colegas!
Em fins de Julho, voltei a CaldeIas, onde estava quando
estalou a guerra (4 de Agosto). O resto das férias passei-o, em grande
parte, em Aveiro, onde fortes amarras me prendiam. Tendo-me casado em 11
de Novembro de 1914, logo em Janeiro seguinte fui para Lisboa, com minha
mulher. Instalámo-nos numa parte de casa da Rua de S. João dos
Bemcasados. Meu irmão João cursava o 2.º ano da Escola de Guerra. Em 14
de Maio desse ano de 1915, revolução política contra a ditadura do
general Pimenta de Castro, com distúrbios sangrentos, ataque de
revolucionários civis à Escola de Guerra e prisão dos alunos para bordo
de um navio, entre eles meu irmão João, que afinal foi transferido para
o hospital da Estrela, atacado de trasorelho. O jornal “A Capital” do
dia 15 deu-o como gravemente ferido por uma bala...
No dia 11 de Agosto, em casa de sua avó materna, nasceu a
menina, e não o esperado e tão desejado rapaz! Mas em que desastrosas
circunstâncias! Dois médicos, o horrível aparato do fórceps, dos ferros,
das gazes, dos anti-sépticos, seguido de quase dois meses de ansiedades,
de noites mal dormidas e, para a querida parturiente, o apavorante
espectro da morte – tal foi a irónica réplica a nove meses de felicidade
completa.
Em princípios de Novembro, convalescença da doente no
Pinheiro e apresentação da menina – da Hermelianinha – aos Avós e aos
tios e primos.
Eu concorrera ao lugar de professor provisório do Liceu
de Rodrigues de Freitas; mas as vagas estavam todas tomadas por mestres
a quem não aproveitara a emenda de Tomás da Fonseca... Pungia-me,
horrivelmente, a minha situação de pater-familias sem emprego, a
viver à custa dos outros. Como, porém, começavam a fazer-se as nomeações
de agregados, concorri. No dia 15 de Janeiro de 1916, fui enfim nomeado
para Viseu; e, precisamente um mês depois, partíamos para a capital da
Beira Alta, onde nos esperava meu Pai, com a
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casa já posta (na rua Direita) e criada arranjada. Ao apresentar-me na
secretaria do Liceu, tive uma surpresa desagradabilíssima: eram-me
destinadas vinte e três horas de serviço semanal, entre as quais catorze
de... Inglês! Desanimei; vi seriamente comprometida a minha estreia; mas
o secretário aquietou-me, lembrando que um colega do 1.º grupo, Damião
Martins do Rio, poderia ceder-me catorze horas de Português da primeira
e segunda classes e tomar conta do Inglês, de que já tinha uma turma.
Graças à sua gentileza, fez-se a troca, e o novo professor iniciou a sua
carreira no dia 16 de Fevereiro.
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(1)
– A doença do prof. Adolfo Coelho determinou que fosse este
professor quem nos ensinasse também em Filologia Portuguesa.
Distinguiu-me em dois exames.
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