Acesso à hierarquia superior.

Memórias de José Pereira Tavares - pp. 33-41

 

III

No ano seguinte (1907 - 1908), como me destinava à carreira da Medicina, matriculei-me na 6.ª classe de Ciências do Liceu de Alexandre Herculano, cujas classes mais adiantadas se achavam em funcionamento em velho e sujo casarão da Rua de Santo Ildefonso, para lá da chamada Torre da Marca, ao passo que as classes inferiores estavam instaladas em prédio da Rua do Sol, aonde nunca fui...

O ambiente político do Porto, entre a Academia, era idêntico ao que em Coimbra se manifestara, no ano anterior, contra a ditadura de João Franco, produzindo a célebre greve que, como fogo, se propagou à quase totalidade dos liceus. Aumentava o meu fervor republicano: passei a frequentar os centros republicanos, onde principalmente pontificavam o panfletário Pádua Correia e os estudantes, muito conhecidos, Jaime Cortesão, da Escola Médica, e Leonardo Coimbra, da Politécnica, e não faltei a nenhum dos comícios de propaganda, que se realizavam num descampado contíguo ao Campo de 24 de Agosto.

Em 1 de Fevereiro de 1908, dá-se a tragédia do Terreiro do Paço. A notícia do regicídio recebe-se de tarde, no Porto, e dela se obteve a confirmação à chegada do "rápido", na estação de S. Bento, aonde, cerca da meia-noite, corri com outros estudantes. A atmosfera, em face dos acontecimentos, era de geral satisfação. À parte os correligionários do chefe do governo, todos os monárquicos manifestavam maior regozijo do que os próprios inimigos do regime...

Em Novembro, D. Manuel II fez a sua viagem ao Porto, onde foi recebido com grandes manifestações. Essa visita motivou a publicação de um manifesto dos estudantes republicanos, quatrocentos e vinte ao todo, em que se protestava contra a subserviência dos académicos que, na mira de feriados, acompanhavam / 34 / para toda a parte o real visitante. Numa dessas noites, fez-se uma manifestação de desagravo à deputação que a Academia de Coimbra mandou ao Porto; mas a Guarda Municipal dissolveu-a, num abrir e fechar de olhos. Sucedeu isso à entrada da Rua do Bonjardim, em frente do antigo Café Lisbonense, que ficava pouco mais ou menos onde hoje se vê o Excelsior. Assinei o manifesto e estive na assuada. Eis o texto do panfleto, de que ainda guardo um exemplar, já bastante amarelecido pelo tempo: «Declaração ao Público. – Grande parte da imprensa do país, por insufficiencias da informação ou propósitos de má-fé, tem-se permitido anunciar que a Academia do Pôrto adherira total e incondicionalmente a todas as manifestações realengas feitas nesta cidade, desde a rasteira marche aux flambeaux até ás apotheoticas viagens – de borla. – Tal não succedeu. Muitos dos membros da Academia conservaram-se de todo alheios a essas exhibições, desconhecendo tanto o sacrifício de passear os archotes do lealismo monarchista como as commodidades das excursões gratuitas. – Não pretendemos averiguar com minúcia do valor de taes demonstrações, que nem o tempo vai para excessos de rhetorica. Poucas palavras, pois. – Queremos, tão-somente, que o nosso silêncio não seja tomado à conta da cumplicidade, sendo julgados comparsas ou espectadores benévolos de toda essa farsada.

Para nós outros – que temos as responsabilidades da instrucção – tudo que seja exaltar o Poder, devido unicamente aos favores do accaso, ou glorificar individualidades, que se não tenham imposto por um nobre esforço, constitue um péssimo ensinamento aos que apprendem com os nossos actos, uma injustiça e uma offensa para os que vivem do trabalho honesto, e um desmentido ao próprio esforço e a todo o propósito de uma conducta digna. – Quando, como em presente, as mais grandiosas aspirações humanas – esmagadas por erros e tyrannias do Passado começam de erguer-se vingadoramente, todos aqueIles que as não apregoam ou, ainda mais, as combatem não tendo a ignorância a desculpá-los, irão fundamentar o seu procedimento em deficiências de cérebro ou em falhas de caracter. – Não há portanto ilIusões possíveis sôbre os festejos / 35 / em questão. Se algum – o que é duvidoso – andou de boa-fé por um lamentável concurso de ignorância e inépcia, o mesmo se não dá com a grande maioria. Estes são indivíduos que incapazes de affirmar a sua energia, se amoldam às mais torpes exigências do meio; são consciências mercenárias do estômago, que prostituem a fome em vez de lhe respeitar os sagrados direitos; ou peor, são os que procuram uma celebridade fácil, atrelando-se a todos os carros de triumpho e enxovalhando-se progressivamente como esquinas sujas onde qualquer successo de accaso pode pregar o seu cartaz sôbre os farrapos das affirmações antigas. – E, afim de que ninguem pense que acamaradamos com semelhantes personagens, a que decerto cabem futuras responsabilidades, é que nos servimos deste meio para desmentir o que a grande parte da imprensa tem dito da Academia do Pôrto e que, sôbre ser contrário à verdade, é altamente offensivo do nosso brio.» Esta publicação, editada por Virgílio Ferreira, foi impressa na Tipografia do Pôrto Médico, de Magalhães e Figueiredo, Limitada, Praça da Batalha, 12 -A.

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No Liceu, como professor moderno, só um, e esse... provisório: o Engenheiro Taveira, de Matemática. Refiro-me, é claro, aos que pertenciam ao pessoal docente da 6.ª classe. Quanto aos outros, ouvia eu tecer elogios a Afonso Zúquete e ao Raminhos, professor de Matemática.

Durante esse 6.º ano, como não tinha de estudar muito para satisfazer plenamente, gastei largas horas na Biblioteca Municipal, a ler obras que não possuía e desejava conhecer.

De cafés, só frequentava o Lisbonense, à noite, e aos domingos, de tarde, para ouvir os esplêndidos concertos do sexteto dirigido pelo violinista Julio Caggioni, no qual brilhavam também o violoncelista Quilez, o pianista Xisto Lopes e o contrabasso Gimaria. Era também assíduo nos concertos das bandas militares, na Cordoaria ou no Largo da Aguardente, e foi nesse ano lectivo que ouvi, no Teatro de S. João, no antigo, a primeira ópera lírica – o Rigoletto –, / 36 / com a célebre cantora Ema Carelli no papel de Gilda.

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De 20 de Março a 10 de Junho de 1908, fui director de uma folha académica – “O Ideal” –, retintamente republicana, a cuja redacção pertenciam os estudantes José de Vasconcelos, Djalme de Azevedo e Júlio Moreira. Teve vida efémera: só se publicaram seis números, o último por imposição minha, para que os assinantes, aliás pouco numerosos, se não queixassem de ludíbrio. O artigo de abertura, que não sei quem redigiu, dizia: «Nós. Quem somos? Uma legião de novos, animados de esperanças libertadoras, apóstolos incendidos do princípio liberal, que odeiam a chusma cynica dos libertatiphobos, tyrannos incorrigiveis, que opprimem rancorosamente o povo que trabalha, que soffre, que é generoso, que é bom. – Uma legião de novos, plenos de vida, em toda a effervescencia da mocidade, avigorados pelo divino Verbo da Democracia, que abominam o despotismo hypocrita disfarçado com a máscara do progresso e com os trajes da liberdade. Que pretendemos? Concorrer com a mesquinha parcela do nosso esforço para a defeza dos interesses da Pátria, para o depuramento da sociedade, para a implantação da liberdade omnimoda, para a proclamação da Republica, moral luminosa da verdade, emfim.»

Bons tempos!

Este episódio da minha vida académica teve para mim a enorme vantagem de me ligar, por forte e sã amizade, a Júlio Moreira, a mais robusta inteligência que me foi dado conhecer em toda a minha carreira de estudante. Da roda dos que o conheciam e com ele privavam, Júlio Moreira era o primeiro. Atraía-nos a sua inteligência, a sua cultura, a sua vivacidade, o seu exuberante humorismo, que afastava para longe toda a tristeza. Cábula, nem por isso deixava de satisfazer às exigências essenciais dos compêndios; mas, no remanso do seu gabinete de trabalho, lia, devorava tudo quanto a sua ânsia de cultura apetecia, para o que tinha à sua disposição a bem fornecida biblioteca do pai – o célebre filólogo Júlio Moreira. / 37 /

Adiante, terei o ensejo – e bem doloroso – de tornar a falar deste superior espírito, que uma tragédia íntima arrastou à sepultura na idade de 36 anos.

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No ano imediato, matriculei-me na 7.ª classe. Professor novo para mim, tive o Dr. Matos Romão, hoje da Faculdade de Letras de Lisboa, uma das maiores negações de mestre que jamais conheci, a cujo cargo estavam as disciplinas de Matemática e de Ciências Naturais. Foi ele quem me classificou com a única nota baixa – 9 valores, em Matemática – que tive em todo o meu curso. Outros alunos, tão conceituados como eu, alguns distintos, tiveram sorte idêntica; só eu, porém, e mais outro, protestámos contra a arbitrariedade, abandonando aquele Liceu. Pedi transferência para o Liceu de D. Manuel II, sito na Rua de S. Bento, antro porventura ainda mais asqueroso do que o da Rua de Santo Ildefonso. Nas férias da Páscoa, adoeci, e essa circunstância determinou a resolução de abandonar os preparatórios de Medicina e fazer exame da 7.ª classe de Letras, para seguir, no Curso Superior de Letras, o Curso do Magistério. Desprezando sugestões de amigos, que me aconselhavam a fazer exame naquele mesmo ano, frequentei, em 1909-1910, como ouvinte, no Liceu de D. Manuel II, a 7.ª classe de Letras. Aí, tive dois bons professores – o Dr. Simões Pina (História) e o Pe João Manuel Correia – o Pe Correia –, grande latinista, cujas aulas eram sempre revestidas de pitoresco, mais ou menos pronunciado. Uma das mais curiosas particularidades deste mestre era o consentir que o aluno discutisse com ele; outra, a sua parcialidade a favor de tudo quanto fosse romano. Foram deliciosas, nesse particular, as lições do livro XXI de Tito Lívio. Era sólida a sapiência do Pe Correia. Guardo da sua ciência as melhores recordações e a ele devo bastante do pouco que sei...

Nesse ano, foi o Liceu agitado por uma parede, que veio acarretar o castigo dos principais cabeças. As coisas passaram-se como vou referir. No dia 23 de Março de 1910, realizou-se no Teatro do Príncipe Real (hoje Sá da Bandeira), por iniciativa de estudantes, uma sessão solene de homenagem à memória de / 38 / Alexandre Herculano, cujo primeiro centenário (28 de Março) então se tratava de celebrar em todo o país. Lembro-me muito bem de que presidiu o vereador Antero de Araújo, em substituição do Dr. Cândido de Pinho, presidente do município. Falaram cinco estudantes, entre eles Mendes Correia, pouco simpático entre a estudantada, por ser monárquico, e ainda os Drs. Pedro Martins e Alexandre Braga. O discurso deste último orador, notável pela eloquência e pelo ataque às instituições, originou uma das mais frenéticas ovações a que tenho assistido. Os republicanos tiraram a barriga de misérias...

No dia seguinte, os alunos das classes mais adiantadas do Liceu de D. Manuel lI, sob o pretexto de que não tinham podido estudar por causa daquela sessão, quiseram feriado; e, como o Reitor se não dispusesse a concedê-lo, resolveram não ir às aulas e vaiaram os que os não seguiam e, até, alguns professores, quando eles se dirigiam para as respectivas salas de aula. Foi o diabo! Instaurou-se processo disciplinar contra os díscolos, e choveram os castigos: 191 alunos foram condenados. Isso determinou que o panfletário Pádua Correia, director do “Pão Nosso”..., atacasse o Liceu e certos professores nos números 9 e 10 do panfleto, respectivamente de 15 e 22 de Junho, sob as epígrafes de "Os bois da disciplina académica" e "A chantage do indulto".

Bons tempos!

* * *

Em Junho, fiz exame, no qual obtive, se bem me recordo, a classificação de 13 valores. Entre a época do exame e a minha ida para Lisboa, nada de importância a historiar; mas não ficará deslocada, aqui, a narrativa de um verídico episódio relativa a D. Manuel lI, que só não foi referido por nenhum historiógrafo do último Rei de Portugal, por não ser conhecido:

Domingo, 25 de Setembro de 1910. Iam realizar-se, daí a dois dias, no Buçaco, as festas comemorativas do primeiro Centenário da derrota do General Massena, – no fim das quais, como é sabido, D. Manuel II declarou haver conquistado o exército, pois a sua inexperiência do mundo e dos homens facilmente / 39 / tomou como seguras as manifestações que nessa ocasião, e em presença do neto de Lord Wellington, que veio assistir, lhe foram feitas.

O Rei vinha do Norte. Dizia-se que estivera em Carregosa, de visita ao Bispo-Conde, e nesse domingo dirigia-se para o Buçaco, de automóvel, acompanhado de bastante numeroso séquito.

A cerca de seis quilómetros a Sul de Oliveira de Azeméis, precisamente à entrada da parte da estrada real que passa ao sopé da elevação onde, dominando vasto e admirável panorama que se estende até o mar, plácida e graciosamente se ergue a vetusta povoação da Bemposta, o automóvel régio teve uma avaria. Todos os outros automóveis pararam. Sua Majestade e os que o acompanhavam abandonaram os carros. À esquerda, um muro alto, negro do tempo, encimado por extensa ramada e, a certa altura dele, um caramanchão de glicínias.

Junta-se gente, muita gente, em irresistível curiosidade, e toda se fica embasbacada, a olhar o Rei e os "fidalgos". Vêm raparigas, muitas raparigas, com os seus fatos domingueiros, descalças, lenços na cabeça... O dono daquele muro e daquele caramanchão de glicínias logo aparece também, apressado, sorridente, de chapéu na mão, e convida os viajantes a descansar à sombra durante o tempo necessário para a reparação da avaria, oferecimento que de bom grado foi aceite, pois estava um calor ardentíssimo.

Os hóspedes transpõem o grosso portão de castanho da propriedade, e atrás deles, sem convite, seguem os curiosos. E eis que em breve as raparigas organizam na ampla eira daquela antiga habitação uma animada dança, que os viajantes complacentemente vão aplaudindo de mistura com a conversa.

Meia hora, talvez não mais, passara. O Rei e a comitiva saíram para a estrada e vagarosamente se foram dirigindo para os automóveis, seguidos dos populares, cujo número havia aumentado.

Ora nessa ocasião, de regresso da vila, chegava um lavrador, de seus cinquenta anos, em mangas de camisa, com o casaco ao ombro e um lenço vermelho à volta do pescoço, por via do calor. A maneira de andar, pouco firme, e a / 40 / voz, algum tanto arrastada e pegajosa, facilmente davam a entender que o homem entrara em muitas tabernas e nelas abundantemente sacrificara ao deus Baco...

– Como está Vossa Majestade? – disse ele dirigindo-se a D. Manuel, empertigado, com o braço direito estendido e a mão aberta, bem espalmada.

O Rei, sorrindo-se e trocando rápido olhar com o Marquês de Lavradio, correspondeu ao inopinado cumprimento, apertando a mão que se lhe oferecia.

Mas o lavrador prosseguiu, sem acanhamento:

– Faz muito bem Vossa Majestade em não se desprezar de apertar as mãos calosas dos lavradores como eu, que são tão honradas como as dos fidalgos!

– Pois é claro! – conveio o Rei, para fugir à catadupa de palavras, que via iminente.

E depressa se instalou no automóvel, cujo motor já trabalhava.

Então o campónio acercou-se do monarca, encostou-se ao carro, bateu familiarmente no ombro do Chefe do Estado e disse lhe, como em segredo:

– Tenha cautela com a República!

Todos acharam graça, o Rei mais uma vez apertou a mão do lavrador, e o automóvel arrancou, para em breve desaparecer na próxima curva da estrada, seguido pelos restantes.

Dias depois, a revolução estalava, e o secular trono dos Braganças caía em estrondosa derrocada, porque, se os reis nunca tinham pensado a sério em que era necessário ter cautela com a República, os seus serventuários e admiradores, salvas poucas excepções, antes que o monarca destronado chegasse à terra do exílio, já se declaravam perfeitamente amoldados às instituições nascentes, habilitando-nos assim a afirmar que quem fez cair o trono português e enterrou a Monarquia foram os próprios monárquicos...

Quantas vezes se não terá recordado deste episódio o último rei de Portugal! / 41 / Quantas vezes lhe não há-de ter passado pela memória a lembrança daquele lavrador – conselheiro, que, a dois passos da revolução, lhe recomendava cautela! (1).

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(1) – Este relato foi por mim publicado em o n.º 481 do jornal aveirense – “O Debate” –, a 4 de Agosto de 1932, a propósito da morte de D. Manuel lI. Reproduzido no vol. XII do Arquivo do Distrito de Aveiro, pág. 257.

 

 

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