II
Aveiro não me era totalmente desconhecido. Cá estivera
cerca de oito dias, quando do exame de instrução primária: tomara já os
primeiros contactos com a cidade. Nessa altura, terminados os exames de
cada dia, eu e um rapaz de Oliveira de Azeméis, hóspede da mesma pensão,
fartávamo-nos de passear: íamos ao Jardim Público e ao Canal das
Pirâmides; divagávamos pelas ruas e praças. O que, porém, mais nos
entretinha era o trabalho das salinas: gostávamos de ver os marnotos e
moços a rer o sal e a transportá-lo para os "malhadais" próximos. Outras
vezes, demorávamo-nos na Praça do Peixe ou no Cais dos Mercantéis, a
observar a azáfama da venda, contagem e acondicionamento da pescaria,
que em grande abundância ia chegando da Costa Nova ou de S. Jacinto.
Causavam-nos prazer as discussões das mulheres, na sua voz cantada, tão
característica, e as suas brigas, fulminantes, em que o tamanco e a
chinela, quando não o mútuo esgatanhar de cabelos – tudo condimentado
com palavras ou frases de contundente significado – desempenhavam papel
decisivo.
Cheguei à capital do Distrito, acompanhado por um
jornaleiro de meu Pai, no dia da "festa da Barra", última segunda-feira
de Setembro. Não haviam ainda regressado da Costa Nova as minhas
"patroas", mãe e filha, ainda a banhos. Por esse motivo, durante os
primeiros doze ou quinze dias dormi sozinho no velho casarão e ia comer
a casa de uns parentes das veraneantes.
No dia 2 de Outubro, abriram as aulas. Vigorava ainda o
regime de estudos de Jaime Moniz, com Português, Latim, Geografia,
História, Matemática e Ciências da 1.ªa à 7.ª classe; Desenho da 1.ª à
5.ª; Francês da 2.ª à 5.ª; Alemão da 2.ª à 7.ª, e de tão apertadas
exigências de preparação, que a maior parte dos que se matriculavam na
primeira classe não logravam atingir o términus do curso. Quando
frequentava a 3.ª classe, foi instituída a reforma de 1905, muito mais
fácil, e além disso com bifurcação de Letras e Ciências na 6.ª e 7.ª
classe e faculdade de se repetir em Outubro a disciplina em que se
houvesse ficado reprovado na época de Julho.
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A barcaça dos estudos do curso geral, único que se podia
tirar em Aveiro, levei-a sempre sem dificuldade em todas as disciplinas,
sob qualquer dos dois regimes. No Liceu, vim encontrar no 4.º ano muitos
rapazes que ainda cá ficaram quando eu, conquistado o diploma da 5.ª
classe, bati as asas para a capital do Norte...
Predominava, em geral, o método do "magister dixit", que
eu intimamente não aprovava, pois me parecia menos ensino do que a
deturpação dele. Entre os mestres, alguns havia verdadeiramente
"modernos", e não é injustiça para a memória dos restantes deixar aqui
os nomes daqueles a quem a minha cultura mais ficou devendo:
Ildefonso Marques Mano, de quem recebi lições de Alemão, História e
Português, e Elias Fernandes Pereira, exigentíssimo e pitoresco,
que foi meu professor de Ciências na 2.ª classe e de Matemática na 4.ª e
5.ª.
Nesta atmosfera liceal, em que as relações entre mestres
e alunos se cifravam às estabelecidas nas aulas, respeitavam-se, em
geral, os superiores; mas, então como hoje e como sempre, nós bem
sabíamos quais eram os professores e quais os simples
marcadores de notas... Tive sempre tempo para tudo: para o estudo,
para as brincadeiras e distracções. Estudei e brinquei. Eram
obrigatórios os passeios às Pirâmides, ao Jardim, às vezes à Barra, a
pé; à mina, a Esgueira. Como divertimentos, tínhamos as novenas de Santa
Joana, em Maio, na igreja de Jesus, a que se acorria para ver as
educandas do Colégio instalado no convento, dispostas junto das grades
dos dois coros, ou para ajudar a cantar a ladainha; e gastávamos muito
tempo na Feira de Março, cujas barracas se estendiam, então, pela beira
do cais da ria, até os Arcos.
Espectáculos teatrais... uma perdição. O primeiro a que
assisti foi, na mesma noite, à representação de duas zarzuelas
Enseñanza Libre e Jugar con Fuego. Embora não percebesse
muito bem o castelhano, aquilo foi um deslumbramento para o
primeiranista que eu então era. Criei o vício; e, sempre que o magro
"orçamento" mo permitia, novo espectáculo vinha satisfazer a minha
invencível curiosidade. Na época da Feira de Março, havia sempre no
Rossio uma companhia portuguesa, ambulante, de mágicas e operetas, a
cujos espectáculos
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fui vezes sem conta. A minha decepção, quando, por qualquer
circunstância – chuva, ou falta de espectadores... não havia
espectáculo! Eu amava as representações em si e tinha prazer em
contemplar as actrizes, principalmente as mais bonitas, desenvoltas ou
ladinas.
As procissões – fraco de todo o bom aveirense que se
preza, vaidoso na exibição da sua opa de seda, das suas meias brancas,
dos seus calções e dos seus sapatos de fivela – chamavam-nos para a rua,
principalmente para apreciarmos os forasteiros, sempre muito numerosos,
ou para assistirmos ao grave desfile, quando não para seguirmos atrás, a
olhar as janelas, em que predominava o elemento feminino... Eram: a
procissão da Cinza, extensíssima, com treze andores, sobre os quais
figurava, como ainda hoje, boa quantidade de mamarrachos, desde o S.
Domingos e S. Francisco, hepáticos, da cor de açafrão, até ao Santo Ivo,
o mais bem parecido, mais artístico e mais saudável de toda a colecção;
as de Passos - uma em cada freguesia; a de Santa Joana, a mais rica e
faustosa, e a de Corpus Christi. Esta fiava mais fino: era um luzido
cortejo que, mais do que as outras, merecia as honras de colgaduras nas
janelas, junco nas ruas, guarda pretoriana e descarga final no Largo do
Ferreiro, a que sempre assistíamos, e no qual o S. Jorge não passava de
um simples e patusco fantoche de pau e engonços, atarrachado ao selim de
um cavalo branco do regimento de cavalaria; e em que o pajem do Santo,
que atrás seguia, muito imponente, era nem mais nem menos do que um
asqueroso brutamontes, considerado por toda a gente como o maior bêbedo
da cidade, e o gigantesco arcaboiço do S. Cristóvão, feito de ripas, era
transportado, com grandíssimo e por vezes escandaloso gáudio dos rapazes
e dos romeiros, por um pobre homem, tartamudo e manco, que se tinha como
o mais hábil de todos, naquela arte!
De volta das férias do Natal, tínhamos ainda, como
entretenimento, as "entregas de ramos" de várias confrarias; mas só
assistíamos à parte profana, isto é, ao cortejo nocturno, em que farto
rapazio, seguido de homens com os gabões apertados na cinta por faixas
de cores garridas e com carapuços vermelhos
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na cabeça, empunhavam archotes, enquanto os foguetes estralejavam e a
banda de música atroava os ares executando as modas mais em voga,
dirigindo-se para casa dos novos mordomos, onde a esperada visita era
premiada com pantagruélicas comezainas e bebezainas, que metiam pela
noite dentro!...
Não menos característica era a festa de S. Gonçalinho, na
Beira-Mar. O dia próprio era o 10 de Janeiro; mas, se não calhava ao
domingo, transferia-se a festa para o domingo seguinte. No sábado, havia
"véspera". A capela e cercanias, bem como a rua que conduz à Praça do
Peixe, eram ornamentadas com bandeiras. Arcos de madeira, enfeitados a
papel de seda, eram pregados nos paus, e neles se dependuravam balões,
"à veneziana".
Como as noites de Janeiro são muito frias, e por vezes
chuvosas e húmidas, faziam-se fogueiras, para as quais os "vizinhos"
contribuíam com lenha, ou coisa que o valha – canastras das do peixe,
cestos velhos e inúteis; mas as principais eram: uma, junto da Praça,
outra no adro da capelinha. Em geral, tocavam duas músicas, até altas
horas da noite. Nos intervalos, foguetes, muitos foguetes, de vistas e
dinamite. E naquela noite de Janeiro, de frio cortante, ali acorria o
bom aveirense, em especial a gente da Beira-Mar, as mulheres com os
xailes puxados para a cabeça, os homens embrulhados nos gabões, em cujos
capuzes enfiavam as cabeças, se a frialdade apertava. Acercavam-se dos
coretos, ora de um, ora de outro, e ali, a pé quedo, iam apreciando as
diferentes peças de música, quando não preferiam estacionar,
estoicamente, junto do coreto da banda da sua predilecção.
No domingo, de manhã, a festa era toda "de dentro": missa
e sermão. A meio da tarde, porém, havia sermão, eleição dos mordomos
para o ano seguinte, música e lançamento de cavacas. A dada altura, a
platibanda da capela enchia-se de gente, a sineta começava a badalar com
furor, e as cavacas eram lançadas sobre a multidão, embasbacada e
expectante. Os rapazes não tinham parança: precipitavam-se sobre os
pontos em que ia caindo o maná daquele dia, por mais sujos e mal
cheirosos que fossem; empurravam-se, agatanhavam-se, corriam para outros
pontos, espojavam-se no chão à cata de alguma
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cavaca perdida, enquanto o mar de gente, em pitorescos fluxos e
refluxos, e no meio das gargalhadas que algum lance mais cómico
provocava, lhes ia dando lugar, ou lhes tolhia propositadamente os
movimentos. E era de ver, muitas vezes, o espectáculo de muita gente
abrir os guarda-chuvas e os virar ao contrário, para receber no ar as
cavacas, furtando-as assim à gula do rapazio sôfrego... E, no
entretanto, a sineta repicava, repicava sempre, tomava a repicar,
incessantemente, até que, como exausta de forças, emudecia, precisamente
quando o último devedor do Santo lançava sobre o povoléu a derradeira
cavaca. Depois, acabava-se a festa, e começava a debandada; mas algo
faltava ainda: os mordomos cessantes iam cumprimentar a casa cada um dos
que nesse dia haviam sido eleitos para "servir" no ano seguinte. E então
os mordomos e uma das bandas, seguidos de longa cauda de curiosos, com
predomínio de rapazio, lá marchavam ao som das mais recentes "modas" que
o povo consagrara e vulgarizara, e durante todo o percurso, de rua para
rua, de casa para casa, não deixavam de estralejar foguetes!
* * *
Em Aveiro, logo a partir do 10 ano, começaram a derruir e
completamente foram desabando as minhas debilíssimas crenças religiosas.
Para isso, mais de que a convivência com pessoas que não praticavam a
religião, contribuíram as leituras e a observação da profunda
discordância, em muitos crentes, mesmo padres, entre a teoria e a
prática da moral, – tão grande, por vezes, que a par do fanatismo
intolerante via eu existir ou a imoralidade ou a mais desbragada
tartufice.
Nas férias, o que mais me custava era ter de ir à missa
ao domingo. Eu ia, para não desagradar a meu Pai; mas intimamente
perguntava a mim mesmo para que seriam necessários esse e outros actos,
se eu podia praticar a moral cristã tão bem como os crentes sinceros,
com dispensa de missas, novenas, confissões, etc. Praticava-a, até, mais
desinteressadamente, pois não tinha em mira, sendo bom e justo, a
conquista do céu e dos benefícios que a Igreja, ou as igrejas,
julgando-se dogmaticamente infalíveis, prometem aos seus adeptos.
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O último acto de culto público em que entrei foi na
Semana Santa de 1903, envergando uma opa de seda vermelha para
acompanhar um "discípulo" na cerimónia do lava-pés, opa que também
ostentei na procissão do Enterro e na da Páscoa da Ressurreição desse
ano. Nunca mais ninguém me viu nesses cortejos.
No final do 2.º ano do Liceu, declarei a meu Pai que não
queria seguir a carreira eclesiástica. Esperava e receava eu que ele me
não consentisse a escolha de outro curso. Enganei-me: não fui
contrariado, e ficou assente que eu tirasse o curso de Medicina. Daí por
diante, a minha maior tortura era, em férias, ver-me obrigado a
aparentar, na igreja, crenças que não possuía; e, sempre que me era
possível, evitava tais exibições hipócritas, sujeitando-me, algumas
vezes, a ásperas censuras de meu Pai. E a confissão? A confissão pela
Páscoa, constituía para mim um sacrifício sem nome. Felizmente,
encontrei um padre, visita infalível do Prior nas férias da Páscoa, que
não ligava importância ao acto e pouco tempo me obrigava a estar de
joelhos. Ainda assim, o confesso fazia-o sempre no último dia a ele
destinado, ou seja, em 5.ª feira Santa, e sempre com a maior
repugnância.
Não posso precisar a altura em que me comecei a
interessar pela política e a ler jornais; mas já era republicano, bem
consciente e convicto, quando João Franco por aqui passou, creio que em
1905, em viagem de propaganda política. Lembro-me muito bem da
entusiástica manifestação que lhe foi feita em frente do palacete do Dr.
Jaime de Magalhães Lima, à Rua do Carmo, a cuja varanda assomou no mais
aceso da homenagem, e, à noite, no Teatro Aveirense, regorgitante de
adeptos e de curiosos, na sessão pública em que o chefe dos
regeneradores-liberais apresentou e defendeu, com vários
correligionários, o seu elixir político. Por essa altura, já eu era
anti-clerical e ateu, com os facciosismos e intolerâncias dos vinte
anos... Em 1906, sendo Tesoureiro da Comissão dos Alunos do Liceu, que
tomou a peito festejar, um pouco mais ruidosamente do que de costume, o
1.º de Dezembro frequentava eu então a 5.ª classe – tive ensejo de me
abeirar, pela primeira vez, de um dos ídolos da propaganda
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republicana, Alexandre Braga, de passagem para o Porto, onde em 2 de
Dezembro devia, com outros caudilhos, falar em comício público; visitou
Aveiro e hospedou-se no Hotel Cisne, que ficava onde hoje está instalada
a Caixa Geral de Depósitos. Terminada a tradicional marcha luminosa
desse 10 de Dezembro, na qual, através das ruas, e ao som do hino da
Restauração, tocado por uma banda de música, demos largas ao nosso
patriotismo com vivas à Pátria, fui com outros estudantes republicanos –
Alberto Souto Ratola à frente, por ser o mais velho, culto e
desembaraçado – cumprimentar o grande orador. Estou ainda a vê-lo,
sentado a uma mesa, a jantar; e, ao lado direito dos pratos, a garrafa
da água das Pedras... Esse homem, terror de tronos e altares, era para
nós uma espécie de deus! Recebidos por ele, sentíamo-nos orgulhosos e...
importantes...
Em 25 de Julho de 1907, concluí as provas do exame da 5.ª
classe, a que presidiu o reitor Francisco Augusto da Fonseca Regala, e
nele obtive a classificação de 16 valores. Fui mais feliz do que na
inspecção militar, em Oliveira de Azeméis, à qual tive de faltar por
causa do exame: aí, dado como apto, alguém tirou por mim o n.º 2, que me
obrigava ao serviço militar ou à remissão da praça. Veio, afinal, a
prevalecer a última das soluções – o pagamento de 150.000 reis ao
Estado, depois de, perante o Comandante do Distrito de Recrutamento e
reserva n.º 24, ter prestado juramento de fidelidade à Pátria e às
instituições monárquicas... [.....]
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