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Memórias de José Pereira Tavares - pp. 25-31

 

II

Aveiro não me era totalmente desconhecido. Cá estivera cerca de oito dias, quando do exame de instrução primária: tomara já os primeiros contactos com a cidade. Nessa altura, terminados os exames de cada dia, eu e um rapaz de Oliveira de Azeméis, hóspede da mesma pensão, fartávamo-nos de passear: íamos ao Jardim Público e ao Canal das Pirâmides; divagávamos pelas ruas e praças. O que, porém, mais nos entretinha era o trabalho das salinas: gostávamos de ver os marnotos e moços a rer o sal e a transportá-lo para os "malhadais" próximos. Outras vezes, demorávamo-nos na Praça do Peixe ou no Cais dos Mercantéis, a observar a azáfama da venda, contagem e acondicionamento da pescaria, que em grande abundância ia chegando da Costa Nova ou de S. Jacinto. Causavam-nos prazer as discussões das mulheres, na sua voz cantada, tão característica, e as suas brigas, fulminantes, em que o tamanco e a chinela, quando não o mútuo esgatanhar de cabelos – tudo condimentado com palavras ou frases de contundente significado – desempenhavam papel decisivo.

Cheguei à capital do Distrito, acompanhado por um jornaleiro de meu Pai, no dia da "festa da Barra", última segunda-feira de Setembro. Não haviam ainda regressado da Costa Nova as minhas "patroas", mãe e filha, ainda a banhos. Por esse motivo, durante os primeiros doze ou quinze dias dormi sozinho no velho casarão e ia comer a casa de uns parentes das veraneantes.

No dia 2 de Outubro, abriram as aulas. Vigorava ainda o regime de estudos de Jaime Moniz, com Português, Latim, Geografia, História, Matemática e Ciências da 1.ªa à 7.ª classe; Desenho da 1.ª à 5.ª; Francês da 2.ª à 5.ª; Alemão da 2.ª à 7.ª, e de tão apertadas exigências de preparação, que a maior parte dos que se matriculavam na primeira classe não logravam atingir o términus do curso. Quando frequentava a 3.ª classe, foi instituída a reforma de 1905, muito mais fácil, e além disso com bifurcação de Letras e Ciências na 6.ª e 7.ª classe e faculdade de se repetir em Outubro a disciplina em que se houvesse ficado reprovado na época de Julho. / 26 /

 A barcaça dos estudos do curso geral, único que se podia tirar em Aveiro, levei-a sempre sem dificuldade em todas as disciplinas, sob qualquer dos dois regimes. No Liceu, vim encontrar no 4.º ano muitos rapazes que ainda cá ficaram quando eu, conquistado o diploma da 5.ª classe, bati as asas para a capital do Norte...

Predominava, em geral, o método do "magister dixit", que eu intimamente não aprovava, pois me parecia menos ensino do que a deturpação dele. Entre os mestres, alguns havia verdadeiramente "modernos", e não é injustiça para a memória dos restantes deixar aqui os nomes daqueles a quem a minha cultura mais ficou devendo: Ildefonso Marques Mano, de quem recebi lições de Alemão, História e Português, e Elias Fernandes Pereira, exigentíssimo e pitoresco, que foi meu professor de Ciências na 2.ª classe e de Matemática na 4.ª e 5.ª.

Nesta atmosfera liceal, em que as relações entre mestres e alunos se cifravam às estabelecidas nas aulas, respeitavam-se, em geral, os superiores; mas, então como hoje e como sempre, nós bem sabíamos quais eram os professores e quais os simples marcadores de notas... Tive sempre tempo para tudo: para o estudo, para as brincadeiras e distracções. Estudei e brinquei. Eram obrigatórios os passeios às Pirâmides, ao Jardim, às vezes à Barra, a pé; à mina, a Esgueira. Como divertimentos, tínhamos as novenas de Santa Joana, em Maio, na igreja de Jesus, a que se acorria para ver as educandas do Colégio instalado no convento, dispostas junto das grades dos dois coros, ou para ajudar a cantar a ladainha; e gastávamos muito tempo na Feira de Março, cujas barracas se estendiam, então, pela beira do cais da ria, até os Arcos.

Espectáculos teatrais... uma perdição. O primeiro a que assisti foi, na mesma noite, à representação de duas zarzuelas Enseñanza Libre e Jugar con Fuego. Embora não percebesse muito bem o castelhano, aquilo foi um deslumbramento para o primeiranista que eu então era. Criei o vício; e, sempre que o magro "orçamento" mo permitia, novo espectáculo vinha satisfazer a minha invencível curiosidade. Na época da Feira de Março, havia sempre no Rossio uma companhia portuguesa, ambulante, de mágicas e operetas, a cujos espectáculos / 27 / fui vezes sem conta. A minha decepção, quando, por qualquer circunstância – chuva, ou falta de espectadores... não havia espectáculo! Eu amava as representações em si e tinha prazer em contemplar as actrizes, principalmente as mais bonitas, desenvoltas ou ladinas.

As procissões – fraco de todo o bom aveirense que se preza, vaidoso na exibição da sua opa de seda, das suas meias brancas, dos seus calções e dos seus sapatos de fivela – chamavam-nos para a rua, principalmente para apreciarmos os forasteiros, sempre muito numerosos, ou para assistirmos ao grave desfile, quando não para seguirmos atrás, a olhar as janelas, em que predominava o elemento feminino... Eram: a procissão da Cinza, extensíssima, com treze andores, sobre os quais figurava, como ainda hoje, boa quantidade de mamarrachos, desde o S. Domingos e S. Francisco, hepáticos, da cor de açafrão, até ao Santo Ivo, o mais bem parecido, mais artístico e mais saudável de toda a colecção; as de Passos - uma em cada freguesia; a de Santa Joana, a mais rica e faustosa, e a de Corpus Christi. Esta fiava mais fino: era um luzido cortejo que, mais do que as outras, merecia as honras de colgaduras nas janelas, junco nas ruas, guarda pretoriana e descarga final no Largo do Ferreiro, a que sempre assistíamos, e no qual o S. Jorge não passava de um simples e patusco fantoche de pau e engonços, atarrachado ao selim de um cavalo branco do regimento de cavalaria; e em que o pajem do Santo, que atrás seguia, muito imponente, era nem mais nem menos do que um asqueroso brutamontes, considerado por toda a gente como o maior bêbedo da cidade, e o gigantesco arcaboiço do S. Cristóvão, feito de ripas, era transportado, com grandíssimo e por vezes escandaloso gáudio dos rapazes e dos romeiros, por um pobre homem, tartamudo e manco, que se tinha como o mais hábil de todos, naquela arte!

De volta das férias do Natal, tínhamos ainda, como entretenimento, as "entregas de ramos" de várias confrarias; mas só assistíamos à parte profana, isto é, ao cortejo nocturno, em que farto rapazio, seguido de homens com os gabões apertados na cinta por faixas de cores garridas e com carapuços vermelhos / 28 / na cabeça, empunhavam archotes, enquanto os foguetes estralejavam e a banda de música atroava os ares executando as modas mais em voga, dirigindo-se para casa dos novos mordomos, onde a esperada visita era premiada com pantagruélicas comezainas e bebezainas, que metiam pela noite dentro!...

Não menos característica era a festa de S. Gonçalinho, na Beira-Mar. O dia próprio era o 10 de Janeiro; mas, se não calhava ao domingo, transferia-se a festa para o domingo seguinte. No sábado, havia "véspera". A capela e cercanias, bem como a rua que conduz à Praça do Peixe, eram ornamentadas com bandeiras. Arcos de madeira, enfeitados a papel de seda, eram pregados nos paus, e neles se dependuravam balões, "à veneziana".

Como as noites de Janeiro são muito frias, e por vezes chuvosas e húmidas, faziam-se fogueiras, para as quais os "vizinhos" contribuíam com lenha, ou coisa que o valha – canastras das do peixe, cestos velhos e inúteis; mas as principais eram: uma, junto da Praça, outra no adro da capelinha. Em geral, tocavam duas músicas, até altas horas da noite. Nos intervalos, foguetes, muitos foguetes, de vistas e dinamite. E naquela noite de Janeiro, de frio cortante, ali acorria o bom aveirense, em especial a gente da Beira-Mar, as mulheres com os xailes puxados para a cabeça, os homens embrulhados nos gabões, em cujos capuzes enfiavam as cabeças, se a frialdade apertava. Acercavam-se dos coretos, ora de um, ora de outro, e ali, a pé quedo, iam apreciando as diferentes peças de música, quando não preferiam estacionar, estoicamente, junto do coreto da banda da sua predilecção.

No domingo, de manhã, a festa era toda "de dentro": missa e sermão. A meio da tarde, porém, havia sermão, eleição dos mordomos para o ano seguinte, música e lançamento de cavacas. A dada altura, a platibanda da capela enchia-se de gente, a sineta começava a badalar com furor, e as cavacas eram lançadas sobre a multidão, embasbacada e expectante. Os rapazes não tinham parança: precipitavam-se sobre os pontos em que ia caindo o maná daquele dia, por mais sujos e mal cheirosos que fossem; empurravam-se, agatanhavam-se, corriam para outros pontos, espojavam-se no chão à cata de alguma / 29 / cavaca perdida, enquanto o mar de gente, em pitorescos fluxos e refluxos, e no meio das gargalhadas que algum lance mais cómico provocava, lhes ia dando lugar, ou lhes tolhia propositadamente os movimentos. E era de ver, muitas vezes, o espectáculo de muita gente abrir os guarda-chuvas e os virar ao contrário, para receber no ar as cavacas, furtando-as assim à gula do rapazio sôfrego... E, no entretanto, a sineta repicava, repicava sempre, tomava a repicar, incessantemente, até que, como exausta de forças, emudecia, precisamente quando o último devedor do Santo lançava sobre o povoléu a derradeira cavaca. Depois, acabava-se a festa, e começava a debandada; mas algo faltava ainda: os mordomos cessantes iam cumprimentar a casa cada um dos que nesse dia haviam sido eleitos para "servir" no ano seguinte. E então os mordomos e uma das bandas, seguidos de longa cauda de curiosos, com predomínio de rapazio, lá marchavam ao som das mais recentes "modas" que o povo consagrara e vulgarizara, e durante todo o percurso, de rua para rua, de casa para casa, não deixavam de estralejar foguetes!

* * *

Em Aveiro, logo a partir do 10 ano, começaram a derruir e completamente foram desabando as minhas debilíssimas crenças religiosas. Para isso, mais de que a convivência com pessoas que não praticavam a religião, contribuíram as leituras e a observação da profunda discordância, em muitos crentes, mesmo padres, entre a teoria e a prática da moral, – tão grande, por vezes, que a par do fanatismo intolerante via eu existir ou a imoralidade ou a mais desbragada tartufice.

Nas férias, o que mais me custava era ter de ir à missa ao domingo. Eu ia, para não desagradar a meu Pai; mas intimamente perguntava a mim mesmo para que seriam necessários esse e outros actos, se eu podia praticar a moral cristã tão bem como os crentes sinceros, com dispensa de missas, novenas, confissões, etc. Praticava-a, até, mais desinteressadamente, pois não tinha em mira, sendo bom e justo, a conquista do céu e dos benefícios que a Igreja, ou as igrejas, julgando-se dogmaticamente infalíveis, prometem aos seus adeptos. / 30 /

O último acto de culto público em que entrei foi na Semana Santa de 1903, envergando uma opa de seda vermelha para acompanhar um "discípulo" na cerimónia do lava-pés, opa que também ostentei na procissão do Enterro e na da Páscoa da Ressurreição desse ano. Nunca mais ninguém me viu nesses cortejos.

No final do 2.º ano do Liceu, declarei a meu Pai que não queria seguir a carreira eclesiástica. Esperava e receava eu que ele me não consentisse a escolha de outro curso. Enganei-me: não fui contrariado, e ficou assente que eu tirasse o curso de Medicina. Daí por diante, a minha maior tortura era, em férias, ver-me obrigado a aparentar, na igreja, crenças que não possuía; e, sempre que me era possível, evitava tais exibições hipócritas, sujeitando-me, algumas vezes, a ásperas censuras de meu Pai. E a confissão? A confissão pela Páscoa, constituía para mim um sacrifício sem nome. Felizmente, encontrei um padre, visita infalível do Prior nas férias da Páscoa, que não ligava importância ao acto e pouco tempo me obrigava a estar de joelhos. Ainda assim, o confesso fazia-o sempre no último dia a ele destinado, ou seja, em 5.ª feira Santa, e sempre com a maior repugnância.

Não posso precisar a altura em que me comecei a interessar pela política e a ler jornais; mas já era republicano, bem consciente e convicto, quando João Franco por aqui passou, creio que em 1905, em viagem de propaganda política. Lembro-me muito bem da entusiástica manifestação que lhe foi feita em frente do palacete do Dr. Jaime de Magalhães Lima, à Rua do Carmo, a cuja varanda assomou no mais aceso da homenagem, e, à noite, no Teatro Aveirense, regorgitante de adeptos e de curiosos, na sessão pública em que o chefe dos regeneradores-liberais apresentou e defendeu, com vários correligionários, o seu elixir político. Por essa altura, já eu era anti-clerical e ateu, com os facciosismos e intolerâncias dos vinte anos... Em 1906, sendo Tesoureiro da Comissão dos Alunos do Liceu, que tomou a peito festejar, um pouco mais ruidosamente do que de costume, o 1.º de Dezembro frequentava eu então a 5.ª classe – tive ensejo de me abeirar, pela primeira vez, de um dos ídolos da propaganda / 31 / republicana, Alexandre Braga, de passagem para o Porto, onde em 2 de Dezembro devia, com outros caudilhos, falar em comício público; visitou Aveiro e hospedou-se no Hotel Cisne, que ficava onde hoje está instalada a Caixa Geral de Depósitos. Terminada a tradicional marcha luminosa desse 10 de Dezembro, na qual, através das ruas, e ao som do hino da Restauração, tocado por uma banda de música, demos largas ao nosso patriotismo com vivas à Pátria, fui com outros estudantes republicanos – Alberto Souto Ratola à frente, por ser o mais velho, culto e desembaraçado – cumprimentar o grande orador. Estou ainda a vê-lo, sentado a uma mesa, a jantar; e, ao lado direito dos pratos, a garrafa da água das Pedras... Esse homem, terror de tronos e altares, era para nós uma espécie de deus! Recebidos por ele, sentíamo-nos orgulhosos e... importantes...

Em 25 de Julho de 1907, concluí as provas do exame da 5.ª classe, a que presidiu o reitor Francisco Augusto da Fonseca Regala, e nele obtive a classificação de 16 valores. Fui mais feliz do que na inspecção militar, em Oliveira de Azeméis, à qual tive de faltar por causa do exame: aí, dado como apto, alguém tirou por mim o n.º 2, que me obrigava ao serviço militar ou à remissão da praça. Veio, afinal, a prevalecer a última das soluções – o pagamento de 150.000 reis ao Estado, depois de, perante o Comandante do Distrito de Recrutamento e reserva n.º 24, ter prestado juramento de fidelidade à Pátria e às instituições monárquicas... [.....]

 

 

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