I
Nasci "entre faixas de pobreza", como o Tolentino. Da
minha ascendência conhecida, reza o assento de baptismo, redigido pelo
pároco de S. Paio do Pinheiro da Bemposta – ridentíssima e muito antiga
freguesia, situada a uns sete quilómetros ao sul de Oliveira de Azeméis
e no termo desse concelho, sobre a estrada nacional n.º 10, que liga as
duas cidades de Coimbra e Porto. Lá está: «filho de António de Oliveira
Tavares, carpinteiro, e de Antónia Pereira Murça, costureira; neto
paterno de João Tavares de Oliveira Bastos, ferreiro, e neto materno de
João Pereira, mineiro». Não poderia ser mais humilde a minha estirpe;
mas, com certeza, não poderia também ostentar melhores pergaminhos de
honra e probidade: todos os meus ascendentes mais chegados eram, de sua
natureza, sérios e honestos; amaram sempre ao próximo como a si mesmos,
nunca quiseram para os outros o que para si não desejariam, e com
certeza para isso pouco terão contribuído os preceitos da religião em
que foram nados e educados. Os sentimentos religiosos eram, porém, mais
intensos do lado de meus ascendentes paternos: ao meu avô materno, algo
irreverente e muito cáustico, ouvi eu algumas vezes discordar dos dogmas
e discuti-los, sem embargo de quase nunca faltar à missa e de jamais
deixar passar uma época de "desobriga" sem cumprir esse dever de
católico. Como consequência, eu e meus irmãos fomos educados
religiosamente: missinha aos domingos e dias santificados; comunhão à
volta dos dez anos; confesso anual; novenas do Menino, em Dezembro,
ainda com o sol ausente; novenas de Maria, em Maio; etc. No entanto,
essas práticas, absolutamente automáticas, não se vincaram tanto em
nosso espírito, que qualquer de nós se aterrorizasse ao deixar de
cumprir uma ou outra - com medo das penas infernais, de que nos falavam
em casa, minha avó paterna especialmente, ou, a propósito de tudo, na
igreja.
Chegado à idade de oito anos – talvez menos; não me
recordo – meu Pai, homem inteligentíssimo e honrado, protótipo do homem
de bem e um dos "homens bons" da freguesia, mandou-me para a escola,
pela mão de um rapaz,
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já espigado, que lhe merecia essa honra. Não foi de bom augúrio a minha
iniciação: ao aproximar-me do professor, que já o fora de meu pai, a
minha falta de prática, o acanhamento e o desconhecimento da topografia
da sala de aula, que ficava no primeiro andar do prédio, fizeram que eu
metesse a perna direita por um dos numerosos buracos que salpicavam o
soalho! É claro que o solene acto foi interrompido: tudo se reduziu a eu
ter de voltar para casa, choroso, com a perna toda esfarrapada... Tempos
melhores vieram. Regressando, dias depois, à presença do professor, a
ele fui definitivamente apresentado e dele recebi o nome completo que
passei a usar: por decreto seu tive, de minha Mãe, o apelido de Pereira
e herdei de meu Pai o Tavares.
Esse mestre, já avançado em anos, ensinava pelo método de
Castilho, o que o não impedia de totalmente abandonar os conselhos do
generoso pedagogista, pois desde que os alunos entravam na sala de aula
até que dela saíam, a vara e a palmatória não deixavam, talvez meia
hora, de cumprir e bem, a sua detestada obrigação! Era ríspido e
exigentíssimo. A disciplina mantinha-se a poder de varadas e palmatoadas
tremendas, infligidas umas vezes pelo encarregado da manutenção da
ordem, sempre muito odiado dos companheiros, outras vezes pelo próprio
professor. Quando ele, de todo cego e colérico, quase apoplético, se
erguia da cadeira, arrancando a vara ao seu delegado daquele dia, o
terror desabava sobre os rapazes, e ei-los que se escondiam, num
"salve-se quem puder" desordenado, por debaixo das carunchosas e
desengonçadas carteiras, para evitar que a trovoada temerosa os
atingisse. O velho, porém, sem querer averiguar quem eram os
delinquentes, "varejava castanhas", e ia deixando na cabeça dos menos
expeditos abundantíssima sementeira de galos e vergões. A ciência era
transmitida pelo mesmo processo. Havia "bolos" para tudo: para os erros
ortográficos, para a má caligrafia, para a conta errada, para a leitura
titubeante. Nos dias destinados a sistema métrico na pedra e a tabuada,
uma terça parte dos rapazes "ficava pelo caminho", brincando, ou
procurando e destruindo ninhos, – só para fugir à sanha do professor. É
que algumas vezes as vítimas chegavam a cair no soalho, sob os golpes do
feroz educador, ou ficavam com a cara marcada pelos seus dedos de aço,
ou com as mãos a arder sob a férula – a
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"menina de cinco olhos" – que zunia.
O interrogatório, em conjunto, era menos de temer.
– "O que é o metro com relação à natureza?", – começava
ele.
E o interrogado devia responder:
– "É a décima milionésima parte da quarta parte do
meridiano terrestre".
– "Que é o meridiano terrestre?"
– "É uma medida que se toma em volta do globo".
– "E quanto tem essa medida?"
– "Quarenta milhões de metros".
– "E a quarta parte?"
– "Dez milhões de metros".
– "Que medidas se derivam do metro, Fulano?"
– "Medidas lineares, ou de comprimento; quadradas, ou de
superfície; cúbicas, ou de volume, e de peso".
– "Qual é a unidade das medidas lineares?"
– "É o metro linear".
– Qual é a unidade das medidas agrárias?"...
Um dia, a esta pergunta, o aluno interrogado, que era dos
mais músicos e não admitia complicações de nomenclatura, respondeu,
pronto:
– "É o metro agrário".
Caiu o Carmo e a Trindade, houve estrondoso gáudio da
parte dos entendidos na matéria, e o herói ficou com a alcunha de Metro
Agrário.
Ainda me lembro da carreirada, de que tanto gostava: "A
tonelada tem 13 quintais e meio; o quintal, quatro arrobas; a arroba 32
arráteis; o arrátel 16 onças;
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a onça, 8 oitavas; a oitava, 3 escrópulos; o escrópulo, 24 grãos...".
Aos sábados, destinados especialmente a História Sagrada,
ninguém faltava. Não havia, em geral, castigos: a atenção era completa e
absoluto o silêncio. Só o professor falava. Os rapazes, sempre atentos,
ouviam-no dissertar, às vezes pormenorizadamente, acerca de muitas das
lendas bíblicas, e tanto se deleitavam com o sacrifício de Abraão, com a
descrição do dilúvio universal, criação do mundo e formação do primeiro
homem e da primeira mulher, como com as histórias de Noé e sua arca
fantástica, de Judite e Holofernes, de Jacó e Raquel, dos irmãos
Macabeus e de Salomé e S. João Baptista... Os dias mais felizes eram,
porém, os de 30 de Abril e 1 de Maio de cada ano. Na tarde do primeiro e
na manhã do segundo, não havia aula, a fim de se tratar da decoração da
sala. Dias de indizível alegria, em que até o professor abandonava o seu
ar de carrasco, para falar e rir com os alunos! Mal batiam na torre da
igreja as "trindades" do meio-dia, de trinta de Abril, toda aquela turba
de demónios, semelhante a bando de pássaros a que de repente se abrisse
a porta da gaiola, abalavam em tropel, de saquitéis a tiracolo e batendo
com os tamancos, mal se despedindo do "senhor professor", e iam à presa
engolir o seu jantar. Ainda não era decorrida meia hora, e eles aí
voltavam, solícitos, num afã de gente grande, e cada um se entregava à
deliciosa faina de colher, pelos campos, pelos montes, pelas margens dos
regatos, toda a casta de flores e verdura – franças de carvalho,
giestas, fetos, "fritanas", rosmaninho, alfazema, erva doce, erva
cidreira enquanto os veteranos iam enfeitando, com buxo e rosas, as
cordas que depois se dependurariam artisticamente do tecto, em festões
que partiam
do centro para numerosos pontos da parte superior das
paredes. Quando escurecia, terminavam as canseiras, mas a ornamentação
ainda não era dada por finda. O mais velho dos rapazes tinha nesse dia a
liberdade de guardar a chave da escola, porque o professor só devia
apreciar os trabalhos quando eles estivessem concluídos. Ordinariamente,
sucedia isso um pouco antes do meio-dia do primeiro de Maio. Quando tudo
estava pronto, varria-se a casa, todos tomavam os seus lugares, e aí, de
pé e quietos, esperavam a entrada do mestre. Logo que ele assomava à
porta, sorridente, chupando o minúsculo cigarro, feito
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de "charuto de picar", um coro de vozes de vários timbres entoava o
cumprimento habitual:
– Senhor professor, como passou?
– Bem, obrigado! - -respondia ele. E logo em seguida:
– Sentem-se, meninos!
Eles obedeciam, todos satisfeitos, com ar de vitória; e
então o professor punha-se a observar a originalidade das ornamentações
daquele ano, inteirava-se sobre quem as dirigira e mais esforços tinha
feito para elas, dava palmadinhas amigas nos cachaços dos dirigentes que
dele se acercavam e terminava sempre por estas palavras, ou
equivalentes:
– Sim, senhor! Muito bem! Podem sair!
Não chegava a sentar-se. Os alunos então, saíam devagar,
observando demoradamente aquela obra, que era de todos, e naquele dia –
único de todo o ano! – desejariam ficar na escola até à noite, porque
não havia leitura, nem contas, nem ditado, nem sistema métrico, nem,
sobretudo, palmatoadas...
Nesta escola de terror, de oblação e de injustiça, passei
os anos suficientes para ser declarado pronto. O professor não tinha
mais que me ensinar, nem eu mais que aprender. Apesar da atmosfera
pesada e abafadiça em que quase sempre decorriam as lições, nunca faltei
por iniciativa minha; pelo contrário, quando o meu Pai determinava que
eu não comparecesse, já por doença ligeira, já por ser necessário aos
trabalhos agrícolas, para mim sempre extremamente penosos, era sempre
chorando que eu obedecia.
Amava aquela escola, simplesmente porque o era! Em casa,
o meu gosto era folhear livros, ler. A minha ambição era possuir livros,
muitos livros. Quando passava por casa de um antigo cônsul de Portugal
no Rio de Janeiro, que então gozava, na sua e minha terra, os prazeres
da reforma, punha-me a espreitar pelas janelas do escritório, situado no
rés-do-chão, as estantes pejadas de volumes
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de todos os tamanhos, e a criança que eu era desejaria poder chamar seus
a esses livros...
Ninguém teve menos liberdades que eu e meus irmãos: não
podíamos brincar por muito longe da casa, como os outros rapazes. Nem
aos domingos isso nos era lícito, a não ser no dia de Carnaval, em que
podíamos seguir os "entrudeiros" até a Bemposta, termo das suas folias,
situada a pouco mais de um quilómetro de nossa casa. No entanto, ninguém
brincou mais do que nós, porque, se não podíamos afastar-nos de casa, os
companheiros da escola, mais livres e com pais menos austeros, ali
vinham juntar-se-nos para as variadíssimas brincadeiras em que, por
instinto, nos íamos adestrando para as futuras lutas da vida. Jogámos
largamente às guerras, a propósito das leituras que ouvíamos a meu Pai,
feitas à noite no "Janeiro", dos dissídios entre os Estados Unidos e a
Espanha e entre Ingleses e Boers. Travavam-se pugnas tremendas, cujas
armas eram torrões ou cascas de pinheiro, e nisso andávamos entretidos
até que, de qualquer dos lados, começasse a correr sangue de algum nariz
ou houvesse "galo" em alguma cabeça! Também se organizavam corridas de
carros, ao domingo, num percurso de uns trezentos metros, o máximo, as
quais terminavam com o pôr do solou quando a maioria dos veículos se
inutilizava por avarias nos eixos ou nas rodas. Servindo-me das
ferramentas da oficina de meu Pai, fiz muitas dezenas de carros.
Num ou noutro domingo, sempre que podia, era com
indizível prazer que eu ia assistir aos ensaios da filarmónica da terra,
de que meu Pai fora sócio fundador e à qual então pertenciam um tio
materno e um primo meu, filho dele. Sabia, na ponta da língua, trechos
da "Lucrécia Bórgia", da "Norma", do "Trovador", do "Ernani", da "Aida",
da "Sonambola" e de outras óperas então em voga. A minha paixão pela
música aí teve as suas mais fundas raízes.
Sempre em questões com os meus irmãos, nunca ninguém viu
irmandade mais unida. Podíamos andar zangados um dia inteiro, que, à
noite, ao deitar, nenhum de nós adormecia sem que estivessem feitas as
pazes. Exemplo de meu Pai, que, passadas as borrascas ou tempestades
motivadas pelas nossas
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garotices, não deixava de nos falar amigavelmente, como se nada de
anormal se houvesse passado.
* * *
Em 1899, com 12 anos, era já um homenzinho. Meu Pai
queria industriar-me no negócio de madeiras, de que tinha armazém no
Monte da Murtosa, aonde ia todas as semanas. Aí o acompanhei inúmeras
vezes, parte do percurso a pé, parte a cavalo, como vezes sem conta o
acompanhei aos pinhais, onde turmas de serradores trabalhavam por sua
conta. Era assim iniciado no árduo trabalho da conquista do pão, que
pesava sobre mim como se fosse chumbo. Por essa altura, foi nomeada para
a minha terra uma nova professora, recém-saída da Escola Normal do
Porto, que as circunstâncias traziam para junto de nós, pois foi habitar
uma casa de meu Pai, contígua àquela que fora o meu berço e o de meus
irmãos, em que minha Mãe falecera, e onde vivíamos. Em sala dessa casa,
devidamente adaptada, é que se instalou a nova escola do sexo feminino.
Quero aqui deixar o nome dessa professora, a quem enalteciam os
predicados da inteligência e da bondade, aliados a uma cultura e tacto
pedagógico fora do vulgar. Chamava-se Maria dos Remédios Xavier Proença.
Logo se estabeleceu entre nós e ela a maior das intimidades, e foi essa
professora, apenas mais velha do que eu uns oito anos, quem me habilitou
para o exame de instrução primária. Eu e duas sobrinhas dela, que
resolvera amparar na sua recente orfandade, constituímos o primeiro
curso, extra-oficial, dessa pobre figura de mulher, vinda ao mundo para
esclarecer e moldar inteligências e caracteres e para praticar o bem.
Começaram as lições em 1900, memorável ano de passagem de século e de
eclipse total do Sol.
Com que afinco estudei! A minha alegria! A minha
satisfação! Não é vaidade afirmar que aprendia tudo quanto me ensinava a
sábia mestra que o destino trouxera à minha terra como que para me abrir
o caminho do futuro.
Em 1901, com 14 anos, vim fazer o exame ao Liceu de
Aveiro, em Agosto, e o júri resolveu atribuir-me classificação
condizente com a minha idade: 14 anos, catorze valores…
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Durante o ano seguinte, recebi lições de Francês do nosso
professor da escola do sexo masculino – Ângelo Henriques da Silva que
havia pouco começara a exercer o ensino na minha freguesia. Foi ele quem
insinuou a meu Pai quanto era lamentável que eu não tirasse qualquer
curso. E aí faz o meu Pai o papel de José das Domas junto do Prior.
Determinou-se que o rapaz fosse para padre; mas o conselheiro,
cauteloso, e apontando abertamente, mesmo na minha presença, o caso do
Daniel das Dornas, opinou que eu, em vez de entrar no Seminário, fosse
frequentar o Liceu.
Eu aceitava tudo: o que queria era estudar. Se bem que já
tivesse lido as "Pupilas", o Daniel ainda se não revoltava contra a
ordenação que queriam impor-me. A sorte estava lançada: alea jacta
erat!
Chegara a crise da puberdade, com os seus sobressaltos,
surpresas, torturas e doidices; mas a mulher havia de ser para mim,
durante muito tempo, a despeito de quanto ouvia a rapazes mais velhos,
um ser completamente desconhecido. No entanto, ao deixar a casa paterna,
em fins de Setembro daquele ano de 1902, as maiores saudades motivou-as
uma criada nossa, raparigaça forte e
simpática, exuberante de alegria, para quem eu gostava de
olhar. E não foi sem comoção, aliás não exteriorizada, que eu a vi
chorar na hora da despedida.
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