Vê-se o mar, são os búzios, as conchas, as areias, as
gaivinas e gaivotas, os araus, ondas e salsugem. Nasce no Porto mas
passa na Granja grandes, longos momentos da infância; ali se inscrevem
momentos da sua juventude. "Eu sou uma menina do mar. Posso respirar
dentro de água como os peixes e posso respirar fora de água como os
homens. E posso passar pelo mar todo e fazer tudo quanto eu quero e
ninguém me faz mal, porque eu sou a bailarina da Grande Raia. E a Grande
Raia é a dona destes mares. "Há por ali Porto, Granja, há Leça, Boa
Nova, Moledo e Afife, painéis de Resende, "ímpetos de veIos, surdo rumor
de búzios," e na sua Pátria lhe "dói a lua, lhe soluça o mar. "Porque
tudo é perto do mar, em Portugal e na Dinamarca, essa Dinamarca que
perpassa num murmúrio de genes e onde "há muitos, muitos anos, havia um
certo lugar [...] no extremo Norte […] perto do mar," um certo Cavaleiro
com que sonharão crianças e se deliciarão adultos. Haverá aquela "casa
construída na duna [...] O rumor das ondas, o perfume do sal [...] o ar
varrido de brisas e vento [...] o arfar ressoante do mar. "Há o eco de
Navegadores, que "habitam entre um mastro e o vento [...] No oceano
infinito / estão detidos num barco […] o barco tem um destino / que os
astros indicam. "A Cidade? A cidade, essa, "é rumor e vaivém sem paz das
ruas [...] vida suja, inutilmente gasta", quando se sabe que existe o
mar e as praias nuas e ela está fechada na cidade e não vê nem o crescer
do mar nem o mudar das horas. Vontade de ser pirata, gostar de uivar no
vento com os mastros e de se abrir na brisa com as velas. A grande
paisagem, – a Paisagem – é ao longe as cavalgadas do mar largo ou a
verdade e a força do mar largo ou o regresso sem fim e a claridade / das
praias onde a direito o vento corre. O mar, esse jardim, o Jardim do
Mar, é toda a sua vida, a última esperança, mesmo que no desespero das
Grades, mesmo que só evocação / desespero no Exílio, em que até a voz do
mar se tomou, quando a pátria que temos não a temos / perdida por
silêncio e por renúncia. Na sua infância, antes de saber ler, ouviu
recitar e aprendeu de cor um antigo poema tradicional português, – a Nau
Catrineta.
"Eu era de facto tão nova
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escritos por pessoas, mas julgava que eram consubstanciais ao universo,
que eram a respiração das coisas, o nome deste mundo dito por ele
próprio."
Assim, toda a vida tentou escrever esse poema imanente.
Esse poema que a acompanha pelo velho claustro da Faculdade de Letras da
Universidade Clássica de Lisboa, – à Academia das Ciências, – que se
projectará nos Cadernos de Poesia, em Távola Redonda, Unicórnio, Árvore,
que está em Jardim do Mar, em Dia do Mar, em Coral, em Tempo Dividido,
em Mar Novo, Livro Sexto, Geografia, a Nome das Coisas, Navegações, ou
em Ilhas. É mesmo um poeta da Távola Redonda, David Mourão-Ferreira, que
a diz uma voz única, não só pela difusa sedução dos temas ou pelos
rigores da expressão, mas sobretudo por qualquer coisa anterior a tudo
isso e que em tudo isso se reflecte uma rara existência de
essencialidade. Nos seus poemas como na obra dita de literatura
infantil, em O Rapaz de Bronze, Menina do Mar, a Fada Oriana, Noite de
Natal, o Cavaleiro da Dinamarca, A Floresta, ou ainda os Contos
Exemplares e em Histórias da Terra e do Mar. Para trás de si fica o
murmúrio / das ondas enroladas como búzios, mas não se perdeu nenhuma
coisa em si, Eurídice que procura Orfeu, bebendo manhãs de nevoeiro, só
vendo o rosto liso e puro da paisagem, ou ressurgindo sob os muros de
Cnossos e em Delfos, ou ainda a dura luz de Creta.
Um dia alguém perguntava a Miguel Torga o que pensava da
poesia de Sophia de Mello Breyer Andrsen. O que pensava de Sophia.
Miguel Torga não responde logo. Parece alheio ou procura
distrair o perguntador, evitar o veredictum esperado por quem inquire.
Mas este insiste. Insiste, recorrendo a um e outro assunto, voltando
várias vezes. E é então que, a dada altura, Torga responde: – É uma
corda molhada.
Os búzios, as conchas, as areias, as ilhas, as naus, o
navio naufragado. (Vinha dum mundo / Sonoro, nítido e denso. / E agora o
mar o guarda no seu fundo / Silencioso e suspenso. // É um esqueleto
branco o capitão, / Branco como as areias. / Tem duas conchas na mão. /
Tem algas em vez de veias / E uma medusa em vez de coração. // E em seu
redor as grutas de mil cores / Tomam formas incertas quase ausentes / E
a cor das águas toma a cor das flores / E os animais são mudos,
transparentes // E os corpos espalhados nas areias / Tremem à passagem
das sereias / – das sereias leves de cabelos roxos / Que têm olhos vagos
e ausentes / E verdes como os olhos dos videntes.)
Os búzios, as conchas, as areias, as ilhas, as naus, o
navio naufragado, as sereias, as gaivinas e gaivotas, os araus, as dunas
e as ondas, o nevoeiro e a salsugem, o vento e os mastros e as velas,
Cnossos, Delfos, Nau Catrineta, Creta e os piratas. Com o Porto (onde
Portugal busca o nome), com a Granja, com a Praia da Boa Nova (onde um
dia Nobre edificou o seu castelo), com Moledo, saudades do Ruben
familiar, a maresia, ressonâncias helénicas, e, mais mar ainda, a Grande
Raia, a dona dos mares, a menina do mar.
Torga apanhara, e dera, ao seu jeito, a definição
lapidar. Como perante o oráculo, ao inquiridor competira adivinhar,
completar o sentido, ao regressar de Delfos.
A tal corda molhada de Sophia. Sophia de Mello Breyner
Andresen, sem dúvida. ■
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