"Não me surpreenderia, com efeito,
se fosse verdade o que disse Eurípedes:
Quem sabe, a vida é uma morte,
e a morte uma vida?"
Platão, "Górgias"
É com esta citação que João Guimarães Rosa abre a sua "estória",
Páramo, onde romanceia o sofrimento que é viver nos tectos do mundo,
lugar onde impera a dispneia e onde o sentimento de morte se apodera do
homem.
Vem isto a propósito da leitura do XVI Diário de Miguel
Torga, o último, diz-nos ele. A linha condutora deste confessionário de
201 páginas é a interrogação obsessiva do sentido da vida do homem na
terra.
Dizem-nos alguns críticos tratar-se de uma obra menor no
universo literário deste autor, uma obra marcada pelo pessimismo e pelo
mero relato de alguns acontecimentos que marcaram os últimos 3 anos,
vistos pelas lentes ofuscadas de um homem doente e triste. Não o creio.
Se compararmos algumas passagens da prosa roseana –
mormente o seu discurso de tomada de posse na Academia Brasileira de
Letras, em 16 de Novembro de 1967, três dias antes de falecer – com
este XVI Diário, vemos alguns pontos de contacto entre estes dois
gigantes da literatura de expressão portuguesa. Ambos são médicos, ambos
são cultores exímios da nossa língua – Torga usa-a com propriedade e
sobriedade; Guimarães Rosa foi um dos maiores "inventores" da língua
portuguesa, deixando cerca de 750 neologismos, afirmando que «Somente
renovando a língua é que se pode renovar o mundo». A medicina aproxima
estes dois homens, embora de forma mui diversa – «Sim, fui médico,
rebelde, soldado. Foram etapas importantes da minha vida, e, a rigor,
esta sucessão constitui um paradoxo. Como médico conheci o valor místico
do sofrimento; como rebelde, o valor da consciência; como soldado, o
valor da proximidade da morte.», Guimarães Rosa. "E aqui estou na vala
comum de uma enfermaria a ver agonizar outros infelizes à minha volta.
Passei a vida a tratar doentes, e fi-lo com todas as varas da alma. Não
fiquei a dever humanidade a nenhum. Mas faltava-me a prova suprema de
sofrer sem esperança numa cama ao lado deles.", Miguel Torga. – muito
embora Guimarães Rosa tenha exercido pouco tempo, já que enveredou pela
carreira diplomática. Pelo contrário, Torga foi, antes de mais o médico,
e não podemos deixar de sentir um choque de emoção quando o senhorio do
seu consultório, no dia 20 de Maio de 1992, lhe pede que vague o local,
pois deseja efectuar obras de melhoramento, instalando nesse edifício um
banco novo. Diz (chora) o escritor: «No fim da entrevista, em que
levaram a melhor, apetece-me chorar de desespero. Naquele velho refúgio
que vai ser demolido e remodelado, estão muradas a minha e outras vidas.
Das duas janelas que lhe davam luz, perspectivei durante meio século o
mundo e as tragédias dele. Ali enxuguei
/
32 / muitas lágrimas, resisti a muitas
tentações, remediei até onde pude erros da natureza, ouvi as mais
íntimas confidências, sonhei, acudi a muitas aflições, dei o melhor de
mim.»
Quer o discurso de tomada de posse de Rosa, quer o Diário
de Torga, são ambos testamentos espirituais de dois grandes vultos da
literatura universal. Nas obras literárias entrever o homem que está por
detrás do escritor e podemos ouvir as várias vozes daqueles que com ele
se sentam a escrever. Nestes dois documentos, embora constituam obras de
arte buriladas pela pena do artista, temos o homem sem máscara, apenas
uma voz, a verdadeira, a sofrida, aquela que se ergue bem alto.
Torga e Rosa. Nos nomes de ambos temos apenas
afastamento: Torga, apelido tomado e escolhido, significando dureza,
agrura, resistência às intempéries; Rosa, apelido de baptismo assumido,
doce, carinhoso, sofrido. Torga que se levanta quando a morte o tenta
derrubar; Rosa que demora 4 anos a tomar posse de uma cátedra
conquistada a pulso, para morrer três dias depois, avisando todos os
amigos de que não duraria muito mais tempo.
"É quando o homem vem inteiro, pronto de suas próprias
profundezas." É assim que Guimarães Rosa define a morte no seu discurso
de tomada de posse na Academia Brasileira de Letras. Poucos terão sido
os teólogos que definiram tão profundamente e tão completamente este
mistério insondável que vem coabitando com o homem desde a noite dos
tempos.
O problema da morte é um tema recorrente no autor de
Grande Sertão: Veredas. Diz-nos ele que «as pessoas não morrem, ficam
encantadas», pois para Rosa o mundo é mágico e nós nada sabemos, mas
desconfiamos de muita coisa… Para Torga a ideia da morte – da sua morte
– torna-se-lhe uma obsessão, não tanto pelo medo da dor física, – essa
ele já a sofre há alguns anos – mas muito mais pelo sentimento de
interrupção de um labor que ainda não chegou ao seu términus. Esse grito
de insatisfação perpassa ao longo de todo o Diário XVI e atinge o seu
auge no dia 20 de Setembro de 1990, quando Torga confidencia – «Já não
tenho tempo, nem forças, para escrever mais nenhum livro. Levo o sétimo
Dia da Criação atravessado no pensamento. Era o meu lavar dos cestos. O
meu de profundis.»
Rosa foi um transformador da língua portuguesa. Neste
contexto, compreendemos sem dificuldade que, na prosa de ficção roseana,
as palavras mortas sejam ressuscitadas, e as outras, vivas, sejam
submetidas a transformações violentas; que palavras novas surjam, a
revelar falhas até então despercebidas da língua. Porque, na realidade e
na perspectiva de João Guimarães Rosa, o importante, o absolutamente
decisório é a comunicação expressiva do ser humano com o seu semelhante.
Primeiro, descobrir em si os novos territórios do sentir e do pensar e,
depois, comunicá-los em total coerência expressiva. E se para tanto é
necessário recriar o próprio instrumento de expressão, haja segurança
científica e não faltem "cristãos atrevidos". Diz ele que a língua
portuguesa se torna "uma língua in opere, fabulosamente em movimento,
fabril, incoaguIável, velozmente evolutiva, todas possibilidades, como
se estivesse sempre em estado nascente, apta avante, revoltosa. Sem
desfigurar-se, como um prestante e moderno mecanismo, todo tratável, ela
aceita quaisquer aperfeiçoamentos estruturais e instrumentais, nas
exaltadas arremetidas criadoras de uma experimentação contínua."
Torga e Rosa. Dois nomes, dois homens, dois filigranistas
do português. Acordos ortográficos, para quê? Quando dois países têm
dois escritores modernos como estes, que usam a mesma língua e que são
lidos e traduzidos numa multiplicidade de idiomas, a língua não pede
acordos. Pois, como diz Torga:
– Não sei se sabe que descrever é fácil. Escrever é que é
difícil. ■
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