Escola Secundária José Estêvão, n.º 7, Jun.- Jul. de 1992

Agustina Bessa-Luís nasceu em Amarante, por terras de Pascoaes, e publica em 1948, aos vinte e seis anos, o primeiro romance, sob o título curioso de Mundo Fechado: título curioso na medida em que nesse mundo se integram e de certo modo se encerram o seu ruralismo e vitorianismo minhotos, as almas que os povoam, as vidas que nele se enredam e encasulam, enigmáticas umas, estranhas, exóticas, pitorescas, retorcidas quase todas. Embora tivesse chamado fugazmente a atenção em 1950 com a polémica travada com Jaime Brasil a propósito de uma recensão deste, em “O Primeiro de Janeiro”, sobre Os Super-Homens, só com A Sibila, publicada em 1954 (e neste ano Prémio Eça de Queirós) é que alcança, porém, uma notoriedade decisiva.

O romance A Sibila apresentara-se em 1953, ainda inédito e anónimo, ao Prémio Delfim Guimarães, concorrendo com, entre outros, Grades Vivas, de Celeste de Andrade, que praticamente se reduziu logo ao silêncio, mas ali se revelava uma escritora de talento e como tal foi recebida pela crítica. Pouca gente, inclusive as autoras, terá conhecido os bastidores do concurso em vertência, além dos membros do júri, pelo que, – petite histoire que seja, e porque não em desabono de uma e outra concorrentes, – virá a talho de foice o que Tomaz de Figueiredo contava a amigos íntimos e que se resume ao seguinte: a maior parte dos elementos do júri. porque tocada, – pelo menos, – de preguiça, – o que acontece, aliás, em muitos outros concursos, – preparava-se para votar Grades Vivas; Tomaz de Figueiredo apercebe-se e, como é o único, ou se revelou o único membro que havia lido todos os originais, – tece considerações, à sua maneira pormenorizada, sobre todos, concitando, – decerto no modo sardónico consabido, – a comparação, a uma listagem e dilucidação exaustiva de qualidades e defeitos. Não havia, não houve possibilidade de retorquir sem troco, A Sibila de Agustina Bessa-Luís obteve com honra o prémio, – sem desdouro para Celeste de Andrade e Grades Vivas, como será forçoso mais uma vez sublinhar, – e alcança, desde então, como atrás se regista, a tal notoriedade.

Mas que notoriedade? Onde se situa a notoriedade de Agustina? Quais são os seus leitores?

Fora de dúvida que Agustina Bessa-Luís é conhecida, ou seja, que o seu nome é tido como consagrado, que qualquer leitor médio o conhece. Mas a sua obra é igualmente conhecida? Melhor dizendo, o leitor médio é leitor de Agustina, mesmo quando lhe compra os livros?

A Biblioteca Básica Verbo tentou divulgar Agustina Bessa-Luís, publicando-lhe, sob o título de uma delas, – A Brusca, – algumas narrativas curtas. Também aí, porém, a divulgação, por meritório que haja sido o intento, não alcançou o objectivo em relação ao leitor médio, (sem prejuízo do coleccionamento e da respectiva venda e reedição), e mais uma vez se perguntará porquê.

Seria fácil dizer que Agustina Bessa-Luís é um François Mauriac português misto de Roger Martin du Gard e de Proust: Mauriac, pela temática provincial de raízes conservadoras e tradicionalistas; Martin du Gard, pelo ficheiro de humanidade, ainda que cincunscrita, em geral, ao ambiente burguês minhoto; Proust, por aquele remoer de um passado que incessante aflui e reflui, mesmo quando aponta para uma localização temporal no presente, – passado aquele que Agustina Bessa-Luís traduz em analepses, ora longas ora sincopadas, mas sempre num tom que, por vezes, lembra a tal recherche du temps perdu que leva a anteporem-lhe, com maior ou menor superficialidade, um Proust nem sempre lido. No entanto, se é fácil, e tão mais fácil quão mais perfunctório, apontar influências ou referenciar pólos de comparação ou de aproximação, nem sempre é feliz e procedente, como pouco procedente seria falar de Camilo, a propósito de Agustina, embora se manifeste a presença do torturado de Seide na narrativa portuguesa dos anos cinquenta e sessenta, passando primeiro, logo antes, por Tomaz de Figueiredo e, depois, por Agustina, ou Carlos de Oliveira, ou o Urbano de Bastardos do Sol, para se não falar de Fernanda Botelho ou ainda de certo acento narrativo de José Cardoso Pires.

Seria fácil, sem dúvida, ir buscar Proust e outros mais, para uma montagem explicativa do elitismo dos leitores de Agustina. A partir da narrativa que deu o título ao citado conjunto antológico da Biblioteca Básica Verbo, que pretendeu captar o leitor médio e/ou de colecções, tente-se, preferencialmente, no entanto, – mau grado a aparente precaridade da amostragem, – procurar as raízes de urna explicação mais objectiva.

A narrativa de Agustina Bessa-Luís, – incluída A Brusca – exerce-se mais em função do que não existe e se trata de produzir do que da representação ou expressão do que já existiria: situando-se em determinado meio, vivendo de um ficheiro de figuras, é uma narrativa em que a história se mostra mais uma consequência do que a resultante de uma concepção a priori, e é assim que A Brusca, por exemplo, sendo a história de uma casa solarenga, só o é também por ser a história de várias personagens envolvidas, e só por isso é viva. A casa (A) é a consequência das personagens, das suas vidas enredadas, das suas vidas perdidas, de um desgaste, no tempo, das pessoas e das coisas. E começa a formular-se-nos um esquema de A Brusca, – caso vertente de análise, na exemplificação de um processo.

Em Além, freguesia confinante com outra, de nome Sabadim, terras que se estendiam "pela fecunda região de Montélios" (M) e eram "muito / 54 / povoadas de solares e ricas mansões de lavoura", há um Senhor d'Além (S), com um irmão dado a orgias (O). Com vergonha, e em represália sobre o irmão, S confidencia com Camilo Timóteo (T), solteiro, no sentido de lhe vender a casa (A), mas T, comprada a casa, vem a afeiçoar-se a uma Domitília (D), que levou com ele, bem como a um filho dela (X), para A: continua D a ter filhos de vários, todos criados em A, – escândalo da terra, – e que T baptizava, por irreverência e picardia aos familiares, mista de raiva, com o nome dos seus ascendentes ilustres. S vem, certa tarde de Agosto, a passar na estrada, e surpreende-se com o aspecto de A, em estado de ignóbil abandono e sujeita a degradação moral a que T a sujeitava. S fala com o tesoureiro da fazenda, de grande nariz romano (N), que contactará com Claudino, – espécie de administrador urbano e intermediário (I), – casado com uma Isabel que “ignorava o tempo", conservando-se jovem (J) e era mãe de um Adriano, estudante (E), que vem a casar com uma Rita Mafalda (R). Combinam S e I que S venha a reaver a Brusca (A), enchendo I “de suspeita, de cálculo, de cobiça". I conquista Luís Gonzaga, um dos filhos de D, – um X, – cativando-o com uma ida ao Porto, e começa a visitar A e a insinuar/ensinar o caminho da hipoteca e do dinheiro fácil, enquanto A se vai degradando, aviltando, corroendo, desfazendo, desgastando. Monteiro, homem de bambúrrios (B), poderá comprar A, se I souber interessá-lo. Entretanto T morre e B compra A, – perante um S sem possibilidades de competir. B restaurou (?), de qualquer modo “reparou" A, que, se não retomou “as lindezas de outrora", “se enroupou de novo", sem perder “o fatídico semblante". B dotou A “de grandes melhoramentos" e talvez “a transplante um dia, pedra por pedra, para sítio mais grandioso, a Suíça ou Braga, por exemplo". B e A desenraízam-se, pois B tem pretensões cosmopolitas e A, sem perder o seu “fatídico semblante", mudou. O tempo (C) passou, também, por tudo isto.

Estamos a formular-nos, sem dúvida, o que é A Brusca e como se fez A Brusca, narrativa de Agustina Bessa-Luís.

A Brusca, – como a Brusca, casa solarenga, situada em M – faz-se de S, e das histórias e referências caracterizadoras de O, T, D, X, N, I, J, E, R e B. Se a história da Brusca acaba por se fundir, aparentemente, em A+B, numa casa “enroupada" por Monteiro, o certo é que a narrativa, (e a casa também, porque só vive na narrativa), é consequência das histórias e caracterizações que vão de M e S, O e T, e D, e X, e N, e I, e J, e E, e R, a B, que a integram e lhe dão vida. Tudo isto, é óbvio, inserido num tempo (C), – o tal tempo que é importante em Agustina Bessa-Luís e faz com que por vezes a afichem num Proust ou digam, como António Quadros: “…na arte de Agustina Bessa-Luís o tempo é dado como uma curva sem quebra de continuidade, cujas imagens não se detêm nunca. Aquela, a arte de Proust, é uma arte estatuária; esta, a de Bessa-Luís, uma arte cinemática".

Há em A Brusca (e pretender-se-á que em toda a obra de Agustina) o pendor intelectualizante de uma narrativa que é menos uma história do que uma história como consequência de histórias, naquele sentido que Valéry propõe num dos seus Cahiers. E isso é pouco ao gosto dos amadores de histórias, de romance, de intrigas fortemente desenhadas, de enredo fácil ou facilmente aliciante. Mas outro aspecto converge para essa intelectualização, uma elitização de leitores, e que não prende a Agustina o leitor médio: as personagens e as coisas, em Agustina, – e assim em A Brusca, – vivem mais de impulsos, por vezes inconscientes, e de um clima, de indícios sugestivos, do que de informações concretas, ainda que, à primeira vista, a pormenorização concreta e objectiva pareça ser um dos fortes de Bessa-Luís: assim, Camilo Timóteo era “de génio fadista mas agradável" e, na altura da proposta de compra da casa, “parecia apenas um simpático provinciano com o seu fato demasiado elegante e um embrulho de pastéis falhados, presente dilecto para uma prima mais preferida"; num altar, “um Santo Antão, com olhos vidrosos de lagartixa, tinha o ar escanhoado e prestável dum bom empregado de loja de fazendas".

Outro factor converge ainda para a tal elitização de leitores: ao longo de A Brusca, – ainda A Brusca, – são inúmeros os termos cultos e/ou eruditos; os comentários; as reflexões-apelos; as referências a autores, personagens e conceitos, (se célebres, relativamente conhecidos e/ou circunscritos a épocas e modas, ou por vezes demasiado confinados e confinantes): e é assim que aparecem as explicações-comentários do tipo “são vulgares estes negócios rápidos entre gente da província. O tédio inspira-os, o orgulho mantém-nos"; é assim que se adverte: “Se quereis viver seguro, não useis dos vossos demónios na província, ou o vosso fígado será devorado. Prometeu foi um provinciano demissionário. Podeis ser originais, mas não criadores; podeis morrer de tédio, mas não de amor". Dir-se-ia que Agustina se dirige aos leitores e se torna mais comunicativa, coloquial e acessível, mas nada mais enganador: a escritora dirige-se a certos leitores, (diga-se, de passagem, fiéis). Prometeu não é acessível à cultura geral de muita gente de hoje, que desconhece as velhas mitologias, as enjeita, não as quer conhecer, inacessíveis serão as referências a Macbeth, a Madame Rênal, aos pepinos de Gagol, ao “azul de Delft" dos azulejos, ao ventre de Vulcano, ao Mago Merlim e ao Cavaleiro da Rosa-Cruz, a Quevedo, a Victorien Sardou, nomes do dia-a-dia de certos gostos de certas pessoas cultas mas não do gosto e cultura de todas, do conhecimento do leitor em geral. E daí e por aí, talvez, Agustina ser um autor muito discutido, (muito conveniente até, por vezes, diga-se também de passagem), com seus leitores próprios, geralmente situados nos meios intelectuais, isto é, um nome dos mais divulgados, conhecidos e prestigiados da Literatura portuguesa do Século XX, mesmo entre os leitores médios, mas, que pese a todos nós e a escritora, que é o que é, de modo algum dos nossos autores mais lidos.

José de Melo
 

Aliás, Escola Secundária José Estêvão

 

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