Agustina Bessa-Luís nasceu em Amarante, por terras de
Pascoaes, e publica em 1948, aos vinte e seis anos, o primeiro romance,
sob o título curioso de Mundo Fechado: título curioso na medida
em que nesse mundo se integram e de certo modo se encerram o seu
ruralismo e vitorianismo minhotos, as almas que os povoam, as vidas que
nele se enredam e encasulam, enigmáticas umas, estranhas, exóticas,
pitorescas, retorcidas quase todas. Embora tivesse chamado fugazmente a
atenção em 1950 com a polémica travada com Jaime Brasil a propósito de
uma recensão deste, em “O Primeiro de Janeiro”, sobre Os Super-Homens,
só com A Sibila, publicada em 1954 (e neste ano Prémio Eça de
Queirós) é que alcança, porém, uma notoriedade decisiva.
O romance A Sibila apresentara-se em 1953, ainda
inédito e anónimo, ao Prémio Delfim Guimarães, concorrendo com, entre
outros, Grades Vivas, de Celeste de Andrade, que praticamente se
reduziu logo ao silêncio, mas ali se revelava uma escritora de talento e
como tal foi recebida pela crítica. Pouca gente, inclusive as autoras,
terá conhecido os bastidores do concurso em vertência, além dos membros
do júri, pelo que, – petite histoire que seja, e porque não em
desabono de uma e outra concorrentes, – virá a talho de foice o que
Tomaz de Figueiredo contava a amigos íntimos e que se resume ao
seguinte: a maior parte dos elementos do júri. porque tocada, – pelo
menos, – de preguiça, – o que acontece, aliás, em muitos outros
concursos, – preparava-se para votar Grades Vivas; Tomaz de
Figueiredo apercebe-se e, como é o único, ou se revelou o único membro
que havia lido todos os originais, – tece considerações, à sua maneira
pormenorizada, sobre todos, concitando, – decerto no modo sardónico
consabido, – a comparação, a uma listagem e dilucidação exaustiva de
qualidades e defeitos. Não havia, não houve possibilidade de retorquir
sem troco, A Sibila de Agustina Bessa-Luís obteve com honra o
prémio, – sem desdouro para Celeste de Andrade e Grades Vivas, como será
forçoso mais uma vez sublinhar, – e alcança, desde então, como atrás se
regista, a tal notoriedade.
Mas que notoriedade? Onde se situa a notoriedade de
Agustina? Quais são os seus leitores?
Fora de dúvida que Agustina Bessa-Luís é conhecida, ou
seja, que o seu nome é tido como consagrado, que qualquer leitor médio o
conhece. Mas a sua obra é igualmente conhecida? Melhor dizendo, o leitor
médio é leitor de Agustina, mesmo quando lhe compra os livros?
A Biblioteca Básica Verbo tentou divulgar Agustina
Bessa-Luís, publicando-lhe, sob o título de uma delas, – A Brusca,
– algumas narrativas curtas. Também aí, porém, a divulgação, por
meritório que haja sido o intento, não alcançou o objectivo em relação
ao leitor médio, (sem prejuízo do coleccionamento e da respectiva venda
e reedição), e mais uma vez se perguntará porquê.
Seria fácil dizer que Agustina Bessa-Luís é um François
Mauriac português misto de Roger Martin du Gard e de Proust: Mauriac,
pela temática provincial de raízes conservadoras e tradicionalistas;
Martin du Gard, pelo ficheiro de humanidade, ainda que cincunscrita, em
geral, ao ambiente burguês minhoto; Proust, por aquele remoer de um
passado que incessante aflui e reflui, mesmo quando aponta para uma
localização temporal no presente, – passado aquele que Agustina
Bessa-Luís traduz em analepses, ora longas ora sincopadas, mas sempre
num tom que, por vezes, lembra a tal recherche du temps perdu que
leva a anteporem-lhe, com maior ou menor superficialidade, um Proust nem
sempre lido. No entanto, se é fácil, e tão mais fácil quão mais
perfunctório, apontar influências ou referenciar pólos de comparação ou
de aproximação, nem sempre é feliz e procedente, como pouco procedente
seria falar de Camilo, a propósito de Agustina, embora se manifeste a
presença do torturado de Seide na narrativa portuguesa dos anos
cinquenta e sessenta, passando primeiro, logo antes, por Tomaz de
Figueiredo e, depois, por Agustina, ou Carlos de Oliveira, ou o Urbano
de Bastardos do Sol, para se não falar de Fernanda Botelho ou
ainda de certo acento narrativo de José Cardoso Pires.
Seria fácil, sem dúvida, ir buscar Proust e outros mais,
para uma montagem explicativa do elitismo dos leitores de Agustina. A
partir da narrativa que deu o título ao citado conjunto antológico da
Biblioteca Básica Verbo, que pretendeu captar o leitor médio e/ou de
colecções, tente-se, preferencialmente, no entanto, – mau grado a
aparente precaridade da amostragem, – procurar as raízes de urna
explicação mais objectiva.
A narrativa de Agustina Bessa-Luís, – incluída A
Brusca – exerce-se mais em função do que não existe e se trata de
produzir do que da representação ou expressão do que já existiria:
situando-se em determinado meio, vivendo de um ficheiro de figuras, é
uma narrativa em que a história se mostra mais uma consequência do que a
resultante de uma concepção a priori, e é assim que A Brusca, por
exemplo, sendo a história de uma casa solarenga, só o é também por ser a
história de várias personagens envolvidas, e só por isso é viva. A casa
(A) é a consequência das personagens, das suas vidas enredadas, das suas
vidas perdidas, de um desgaste, no tempo, das pessoas e das coisas. E
começa a formular-se-nos um esquema de A Brusca, – caso vertente
de análise, na exemplificação de um processo.
Em
Além, freguesia confinante com outra, de nome Sabadim, terras que se
estendiam "pela fecunda região de Montélios" (M) e eram "muito
/
54 / povoadas de solares e ricas mansões de
lavoura", há um Senhor d'Além (S), com um irmão dado a orgias (O). Com
vergonha, e em represália sobre o irmão, S confidencia com Camilo
Timóteo (T), solteiro, no sentido de lhe vender a casa (A), mas T,
comprada a casa, vem a afeiçoar-se a uma Domitília (D), que levou com
ele, bem como a um filho dela (X), para A: continua D a ter filhos de
vários, todos criados em A, – escândalo da terra, – e que T baptizava,
por irreverência e picardia aos familiares, mista de raiva, com o nome
dos seus ascendentes ilustres. S vem, certa tarde de Agosto, a passar na
estrada, e surpreende-se com o aspecto de A, em estado de ignóbil
abandono e sujeita a degradação moral a que T a sujeitava. S fala com o
tesoureiro da fazenda, de grande nariz romano (N), que contactará com
Claudino, – espécie de administrador urbano e intermediário (I), –
casado com uma Isabel que “ignorava o tempo", conservando-se jovem (J) e
era mãe de um Adriano, estudante (E), que vem a casar com uma Rita
Mafalda (R). Combinam S e I que S venha a reaver a Brusca (A), enchendo
I “de suspeita, de cálculo, de cobiça". I conquista Luís Gonzaga, um dos
filhos de D, – um X, – cativando-o com uma ida ao Porto, e começa a
visitar A e a insinuar/ensinar o caminho da hipoteca e do dinheiro
fácil, enquanto A se vai degradando, aviltando, corroendo, desfazendo,
desgastando. Monteiro, homem de bambúrrios (B), poderá comprar A, se I
souber interessá-lo. Entretanto T morre e B compra A, – perante um S sem
possibilidades de competir. B restaurou (?), de qualquer modo “reparou"
A, que, se não retomou “as lindezas de outrora", “se enroupou de novo",
sem perder “o fatídico semblante". B dotou A “de grandes melhoramentos"
e talvez “a transplante um dia, pedra por pedra, para sítio mais
grandioso, a Suíça ou Braga, por exemplo". B e A desenraízam-se, pois B
tem pretensões cosmopolitas e A, sem perder o seu “fatídico semblante",
mudou. O tempo (C) passou, também, por tudo isto.
Estamos a formular-nos, sem dúvida, o que é A Brusca e
como se fez A Brusca, narrativa de Agustina Bessa-Luís.
A Brusca, – como a Brusca, casa solarenga, situada em M –
faz-se de S, e das histórias e referências caracterizadoras de O, T, D,
X, N, I, J, E, R e B. Se a história da Brusca acaba por se fundir,
aparentemente, em A+B, numa casa “enroupada" por Monteiro, o certo é que
a narrativa, (e a casa também, porque só vive na narrativa), é
consequência das histórias e caracterizações que vão de M e S, O e T, e
D, e X, e N, e I, e J, e E, e R, a B, que a integram e lhe dão vida.
Tudo isto, é óbvio, inserido num tempo (C), – o tal tempo que é
importante em Agustina Bessa-Luís e faz com que por vezes a afichem num
Proust ou digam, como António Quadros: “…na arte de Agustina Bessa-Luís
o tempo é dado como uma curva sem quebra de continuidade, cujas imagens
não se detêm nunca. Aquela, a arte de Proust, é uma arte estatuária;
esta, a de Bessa-Luís, uma arte cinemática".
Há em A Brusca (e pretender-se-á que em toda a
obra de Agustina) o pendor intelectualizante de uma narrativa que é
menos uma história do que uma história como consequência de histórias,
naquele sentido que Valéry propõe num dos seus Cahiers. E isso é
pouco ao gosto dos amadores de histórias, de romance, de intrigas
fortemente desenhadas, de enredo fácil ou facilmente aliciante. Mas
outro aspecto converge para essa intelectualização, uma elitização de
leitores, e que não prende a Agustina o leitor médio: as personagens e
as coisas, em Agustina, – e assim em A Brusca, – vivem mais de
impulsos, por vezes inconscientes, e de um clima, de indícios
sugestivos, do que de informações concretas, ainda que, à primeira
vista, a pormenorização concreta e objectiva pareça ser um dos fortes de
Bessa-Luís: assim, Camilo Timóteo era “de génio fadista mas agradável"
e, na altura da proposta de compra da casa, “parecia apenas um simpático
provinciano com o seu fato demasiado elegante e um embrulho de pastéis
falhados, presente dilecto para uma prima mais preferida"; num altar,
“um Santo Antão, com olhos vidrosos de lagartixa, tinha o ar escanhoado
e prestável dum bom empregado de loja de fazendas".
Outro factor converge ainda para a tal elitização de
leitores: ao longo de A Brusca, – ainda A Brusca, – são inúmeros
os termos cultos e/ou eruditos; os comentários; as reflexões-apelos; as
referências a autores, personagens e conceitos, (se célebres,
relativamente conhecidos e/ou circunscritos a épocas e modas, ou por
vezes demasiado confinados e confinantes): e é assim que aparecem as explicações-comentários do tipo “são vulgares estes negócios rápidos
entre gente da província. O tédio inspira-os, o orgulho mantém-nos"; é
assim que se adverte: “Se quereis viver seguro, não useis dos vossos
demónios na província, ou o vosso fígado será devorado. Prometeu foi um
provinciano demissionário. Podeis ser originais, mas não criadores;
podeis morrer de tédio, mas não de amor". Dir-se-ia que Agustina se
dirige aos leitores e se torna mais comunicativa, coloquial e acessível,
mas nada mais enganador: a escritora dirige-se a certos leitores,
(diga-se, de passagem, fiéis). Prometeu não é acessível à cultura geral
de muita gente de hoje, que desconhece as velhas mitologias, as enjeita,
não as quer conhecer, inacessíveis serão as referências a Macbeth, a
Madame Rênal, aos pepinos de Gagol, ao “azul de Delft" dos azulejos, ao
ventre de Vulcano, ao Mago Merlim e ao Cavaleiro da Rosa-Cruz, a
Quevedo, a Victorien Sardou, nomes do dia-a-dia de certos gostos de
certas pessoas cultas mas não do gosto e cultura de todas, do
conhecimento do leitor em geral. E daí e por aí, talvez, Agustina ser um
autor muito discutido, (muito conveniente até, por vezes, diga-se também
de passagem), com seus leitores próprios, geralmente situados nos meios
intelectuais, isto é, um nome dos mais divulgados, conhecidos e
prestigiados da Literatura portuguesa do Século XX, mesmo entre os
leitores médios, mas, que pese a todos nós e a escritora, que é o que é,
de modo algum dos nossos autores mais lidos.
José de Melo
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