Há muito que ameaço o Arsélio com um texto. Parece que
vai ser desta. E de que falarei?
Em tempo de saldos, usando a fraseologia economicista,
falarei da pedagogia de consumo de que estamos por demais inflacionados;
e, da pedagogia tipo mercadoria de prateleira, empoeirada, acusada de
tresandar a bafio. Boa, para despachar a qualquer preço.
Porque, em pedagogia como no resto, importa ser
"moderno", de preferência de vanguarda. Só que a modernidade, como
frequentemente é esquecido, não é coisa de hoje, nem se confunde com
aspectos puramente exteriores e superficiais.
Em pedagogia, o que será então, fazer "moderno"?
Transformar as aulas em sessões de debate? É um dos
recursos favoritos dos sacerdotes e sacerdotisas do novo culto. E, vá de
terapias de choque: debates e mais debates sobre os últimos modismos, as
questões mais badaladas, le dernier cri. Ignoram, ou já
esqueceram, que os escolásticos medievais sabiam fazê-los muito melhor.
O debate, como ponto de partida, dizem, é altamente
motivador. De quê?
Debater significa argumentos solidamente fundamentados,
com coerência, no domínio do instrumento básico que é a linguagem, na
obediência a um mínimo de regras de civilidade e convivência social
(respeito pela opinião dos outros, tolerância, saber ouvir, dar
oportunidade a cada um de emitir a sua opinião...), na posse de
conteúdos mínimos a que o debate diz respeito.
Como partir então do debate, onde tudo isto ou quase,
falha?
O debate dificilmente poderá ser um ponto de partida.
Digamos que ele poderá, quando muito, ajudar os intervenientes a tomar
consciência do que sabem e do que está por adquirir, a fazer o ponto da
sua situação. Não é, não deve ser como uma estação dos caminhos de
ferro, de onde se parte ou onde se desembarca. É, talvez, um apeadeiro.
Moderno, o debate? Assim o pensaram, com certeza, os
mestres escolásticos. Assim o pensam ter descoberto, qual poção mágica,
os escolásticos contemporâneos. Mobiliza a criatividade e o espírito
crítico? A expressão oral sai melhorada? Pode ser, às vezes até é
verdade. Mas, a maior parte das vezes, em termos de comunicação efectiva
entre pessoas, surge como puro ruído, em que ninguém ouve ninguém,
raramente se dizem coisas realmente significativas, as relações e o
clima pouco ou nada beneficiam e, no entanto, satisfaz todas as partes,
pelo que aparenta ser: parece desencadear torrentes de actividade, o
diálogo "horizontaliza-se", dizem. Actividade mental ou física? Diálogo
"horizontalizado" ou diálogo de surdos?
E o diálogo? Era a metodologia de Sócrates, que já sabia
tudo e que punha o que lhe convinha na boca dos discípulos.
Debate e diálogo, dois eficazes instrumentos de
manipulação, se "bem" usados. Ontem, como hoje.
E o audiovisual ? As aulas mais clássicas não o
dispensam, sobra-lhes o áudio e o visual e ainda dá para pôr uns
pozinhos de alguns outros sentidos. E, acresce ainda a vantagem de o seu
uso ser muito menos serializado, o modelo menos estereotipado, menos
científico.
Visual – eram as pessoas (mestres e alunos
compreendidos), os gestos, a expressão, a postura, a sala, o mobiliário,
o quadro negro, a mão correndo nele. As vozes eram áudio, e o arrastar
das cadeiras e outros ruídos vários.
Exigia ainda, ou pelo menos permitia, o concurso de
outros sentidos que, com o culto dos novos meios técnicos, podem ser
perfeitamente dispensados, como dispensar se pode a imagem mental ou o
apelo à inteligência e ao coração. É possível, à boa maneira da ficção
científica, anteciparmos já o que irá acontecer aos demais aparelhos
sensoriais, o que aconteceu outrora à cauda dos nossos antepassados
primatas: atrofiar-se-ão pouco a pouco e, no futuro, as pessoas vão
interrogar-se sobre a sua
/
23 / possível utilidade. Tornar-se-ão um
outro apêndice, perfeitamente inútil.
Nas aulas, ditas audiovisuais, segundo a vulgata
pedagógica mais corrente, o homem permite-se dispensar o homem,
inaugurando o reinado da máquina: o mestre vivo, os alunos vivos, de
corpo e mente por inteiro, tornam-se uma excrescência anacrónica;
indispensáveis são, e estão lá, uma sala obscurecida, um ecrã iluminado,
uns tantos olhos e ouvidos e apenas...
E o discurso do professor, no meio de tudo isto, perdeu o
direito de cidade. É um apátrida, a que ninguém confessa dar
acolhimento, mesmo que dê.
O que é, afinal, o discurso do professor?
Não é, com certeza, uma fotocópia deste ou daquele
manual, nem uma fotomontagem do texto A + do texto B + do texto C, com
cortes como é óbvio.
É, deve ser, um texto amadurecido, estruturado, que
reflecte não apenas as conquistas da ciência numa determinada área, mas
também o posicionamento reflectido do professor, em relação às mesmas. É
o discurso do professor, não porque ele funciona como médium, mas
porque, de facto, é obra sua, na qual ele se reconhece e pode ser
reconhecido.
Porquê, então, o ostracismo a que foi votado e por que
temos vindo a assistir à sua progressiva desvalorização?
Desvalorizado porque já não serve, porque não faz
crescer, porque não ajuda a desenvolver capacidades consideradas
desejáveis... ou porque ... se lhe ignoram as virtualidades, porque não
é fácil para quem o constrói e o diz e para quem o ouve, porque se
desaprendeu ou nunca se aprendeu...? Tantas perguntas para tão poucas
respostas.
É também em nome do ensino activo que tem sido
extraditado para lugar nenhum.
Ensino activo. Mais um chavão, que tem tido Piaget como
inocente álibi. Que actividade? Quase sempre, o que se deixa ver é
actividade física, que põe em jogo, preferencialmente, os músculos dos
membros superiores (e às vezes dos inferiores), dos órgãos fonadores e
sensoriais em geral. E, tudo isto, com algumas pinceladas q.b., de
Piaget, lido primariamente, esquecendo que a finalidade última de todo o
processo de maturação é o crescimento mental, o acesso à capacidade de
conceptualizar; e que a actividade física, se é condição inicial ligada
ao domínio do concreto, nas fases mais avançadas está longe de
constituir a essência profunda do que no homem é humano, sendo antes um
mero reflexo desta.
Confunde-se actividade com exteriorização, mesmo com
certo espalhafato e estende-se, com alguma ligeireza, este modo de
entender a actividade-aula, a todos os níveis do ensino, a todas as
áreas disciplinares, a todos os conteúdos.
É esta a inefável leveza da pedagogia de consumo.
E, em nome dela, decreta-se que a aula expositiva (como,
depreciativamente é nomeada a aula que tem como pilar o discurso do
professor) anula a actividade mental.
Não deveríamos, então, nós, os da idade madura, ser
colocados na prateleira, vendidos a retalho na respectiva época, já que
somos o produto consumado de uma pedagogia condenada? Será que somos
inaptos e ineptos, em termos de instrumentos linguísticos, lógicos, de
capacidade criativa, de espírito crítico, capacidade de entrega?
Paralíticos mentais? Terão os mestres do passado sido
mestres-castradores?
Recordo... recordo-me do professor Miguel Baptista
Pereira, um verdadeiro mestre, e da vivacidade e força da sua exposição.
Nela, como noutros, a palavra falada, ainda que mais efémera, não é
menos importante que a escrita. E, às vezes, é bem menos efémera do que
parece. Fica gravada, para sempre, na mente daqueles que a ouviram.
Será que ficaram diminuídos, intelectual e afectivamente,
os que tiveram o prazer de algum dia ouvir, ao menos na TV, o prof.
Vitorino Nemésio? No seu discurso, a palavra e a inteligência – a
palavra-inteligente – eram tudo (apesar de se servir de um médium dito
audiovisual); tinha bem mais impacto e consequências duradoiras do que
muitos outros, com enormes recursos audiovisuais que neles são tudo,
enquanto o discurso estruturado é nada ou quase nada.
/
24 /
E, olhando por aqui mais perto lembro os Drs. Assis Maia
e José Teixeira. Ter-nos-ão eles circuitado processos mentais, diminuído
irremediavelmente as nossas ligações neurónicas ? Será?
Terão sido, todos eles e tantos outros, verdadeiros
mestres-castradores e serão os mestres da pedagogia de consumo os
"verdadeiros mestres-pensadores"?
Será que sou daqueles que, em surdina, cantam ainda o "ó
tempo volta p'ra trás..." e gostaria de ver repostos velhos processos?
O que, de facto, está em causa não são os instrumentos,
as estratégias, a metodologia, os recursos e outros conhecidos
jargões do ofício. Em si mesmos, não são bons nem maus. Mas é mau,
mesmo muito mau, todo o exorbitar que faça pender o prato da balança só
para um lado, o não fazer a destrinça entre a escolaridade obrigatória e
os cursos pré-universitários, continuando a dar um tratamento
infantilizante a alunos já adolescentes.
É o que se pode chamar um verdadeiro infanticídio:
recusar-lhes a oportunidade de crescer, de conceptualizar, de produzir
pelo seu próprio esforço imagens mentais outras, de exercitar a atenção
selectiva, discriminando (naquilo que ouvem) o essencial das roupagens
acessórias no plano intelectual, mas esteticamente enriquecedores (e
sabendo reconhecê-lo e amá-las), de construir eles mesmos um discurso
com sentido. Quanto mais de elaborar uma dissertação à maneira do
terminal francês!
A exposição-dissertação não só é um instrumento de
comunicação indispensável nos escalões académicos mais elevados,
propedêuticos ao ensino superior (e nele mesmo); também fornece ao aluno
os modelos que o inspirarão a estruturar o seu discurso próprio.
E, estruturar um discurso é, de alguma maneira,
estruturar a própria personalidade.
O que está em causa é, também, a recusa do vanguardismo
pelo vanguardismo, pela facilidade, pelo uso indiscriminado e acrítico,
sem tomar em consideração os níveis académico e etário, os conteúdos, o
momento e as idiossincrasias dos alunos e do professor. E, pelo que
representa de preconceito.
É bom lembrar que a chamada pedagogia moderna (ou será
pós-moderna?) tem umas boas décadas. Em tempos li, com grande prazer,
alguma surpresa e muito gozo, páginas de pedagogia, há muito esquecidas,
dos finais do século passado, princípios deste. Escritas vigorosamente,
nelas se discutiam questões que conservam a mesma pertinência, com
grande abertura e em perspectivas que deixariam boquiaberta muita boa
gente, que se julga na "crista da onda", e que teria de aceitar que há
muito pouco de novo à face da terra e nesta matéria, e que talvez
tenhamos mesmo recuado alguns passos, sob certos aspectos.
Convenhamos, é claro, que já não vivemos na galáxia
Guttemberg e não há que lamentá-lo. Trata-se apenas de um juízo de
realidade, ponto final. A palavra falada circula hoje incomparavelmente
mais, mas não basta à palavra circular; deverá veicular ideias, não
poderá confundir-se com o palrar de qualquer arara ou catatua bem
treinadas. E, se esta aprendizagem de dar sentido não tiver sido feita
com a palavra, em tempo devido, como fazê-lo com a imagem, num mundo em
que esta assume um papel cada vez mais dominante? E, mais difícil ainda,
como fazê-lo com a imagem em movimento ou os sons que fluem em vagas que
parecem submergir-nos, materiais ainda mais frágeis e perecíveis ainda
que de acesso aparentemente mais fácil?
Arrastados por esta (i)lógica, professores e alunos cedem
à tentação da passividade e da recusa inconsciente da profundidade,
preferem os caminhos fáceis dos sons, formas, cores, imagens sensíveis
que, enquanto desprovidas de sentido (que em sim mesmas não possuem)
enchem, mas não preenchem ou parecem preencher, enquanto esvaziam.
Foi talvez esta uma reflexão despropositada, fastidiosa e
incómoda com certeza, mas para mim necessária, no estado actual de
coisas, neste inverno do meu descontentamento...
E, evidentemente, cabe-me confessar que o discurso e o
audiovisual, o debate, o trabalho em grupos e a "investigação", etc.,
etc., podem ter coisas boas.
Fica esta outra ameaça no ar... ■
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* Professora do Quadro de Nomeação Definitiva do 10º B da
ESJE. |