Foi para isto que foi feito o Homem?
ou Pequeno Ensaio sobre a Integração
ou Da Necessidade de te olhar nos Olhos
■ João Pedro Martins
A
confusão que se estabeleceu, com a ideia de que a crise de valores
do fim do milénio, mais a queda do muro de Berlim e o fim da Guerra
Fria, transformavam um mundo a preto e branco num mundo tipo
demonstração de sala de cinema, com cores, tons, sons e luzes por
todo o lado, a confundir as cabecinhas e a transformar metade das
coisas que existem numas outras muito parecidas com a outra metade,
plantou em algumas cabeças a ideia de que a verdade e a mentira não
existem, a História é aquilo que nós quisermos que seja e as ideias
valem menos que um pires de tremoços num café de intelectuais.
Eu permito-me discordar, e à boa moda do velho do
Restelo, tenho andado por aí a acenar com um indicador torto e
tremebundo à rapaziada desnorteada que se passeia por aí alegremente
– com um grau de consciência semelhante ao daquela família que ia à
pesca do esturjão, para depois comer o pescador, sentados à mesa com
o peixe à cabeceira – e vou-lhes dizendo: olhem que isto não é bem
como vocês acham... Continuo quase sempre com discursos de uma horas
– como qualquer castrista que se preze – falando e gesticulando para
o espaço livre que as multidões em fuga deixam à minha frente. Os
observadores mais atentos diriam que isto é assim, porque o meu
discurso não interessa ao menino Jesus, ou na versão neo-liberal,
não vende!
Então vá de pôr algumas palavras no papel e esperar
que alguns olhos não escorreguem por estas páginas, para ver se
alguém ganha algum tino numa certa discussão que para aí anda sobre
os novos tribalismos – ou como se diz habitualmente, a praxe e as
tradições académicas. (Quem diria que depois deste intróito tamanho
imbroglio se desenrolava?!)
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Pois é precisamente nesta sensível questão das praxes
e das tradições académicas, que cada vez mais parece que "o que as
coisas são” tem muito menos importância do que “o que nós dizemos
delas"; e nos dizeres da moda, a ignorância abunda, como poucas
coisas neste país. Senão, vejamos este pequeno teste: quantos dos
"foliões" – leia-se bêbedos desgraçados – sabem o que estão a dizer
quando gritam a plenos pulmões EFE ERRE A!? O que é que isso
interessa, não é? Bebemos uns copos, damos uns berros, somos
estudantes universitários, doutores do vandalismo, descarregamos as
nossa frustrações nos caloiros, abraçamo-nos uns aos outros e
gritamos EFE ERRE A! Mas porquê EFE ERRE A? Um desses senhores que
me explicasse o que é que os espectáculos da vossa degradação têm a
ver com a F R A. Frente Revolucionária Académica e eu ficava calado
que nem um rato no meu canto, convencido de que afinal estava
enganado; e por muito que me custe, alguém sabe o que anda a fazer
no meio dessa esterqueira toda. Pois! Porque dizer que PRAXE quer
dizer PRAXIS, prática, tradição, 'maneira de fazer as coisas",
protocolo, e que no âmbito da tradição académica o termo está ligado
ao Código da Praxe de Coimbra (única Universidade aliás com uma
idade que lhe permite falar de tradição, com vergonha gostava eu),
que não passa dum código hierárquico de contornos medievais, com um
cheirinho a iniciações tribais, rituais violentos de admissão a uma
casta restrita (e era restrita a casta, antes da democratização do
ensino)... Sim, dizer isto da praxe e da tradição académica é uma
luta antiga e parece que ninguém liga, ninguém quer saber. Todos
preferem o ridículo de ver Universidades Privadas a criarem
tradições académicas e Comissões de Praxe do dia para a noite,
Universidades que inventam trajes, tunas e costumes e depois
defendem-se do ridículo com o ridículo maior da tradição – MENINOS!
FAZER UMA COISA PELA PRIMEIRA VEZ NÃO CRIA UMA TRADIÇÃO! E que raio
de merda é esta de defender a tradição? Sim! Quem manda os jovens
deste país (as pretensas vanguardas intelectuais, o futuro da
governação e essas tretas) serem tradicionalistas?
O terror instilado em gerações amorfas, inócuas! Essa
é a única resposta e outra qualquer é falaciosa. Quando o mundo era
a preto e branco, usando essa terminologia bacoca tão em voga, e
todos tinham que escolher um lado da barricada, a maior parte e a
mais activa parte dos estudantes do ensino superior estava do lado
certo da barricada. Do outro estavam os pides e com eles uns
cachopos de capas pretas – sempre discretos no Porto, em Lisboa e
por esse pais fora (Coimbra foi sempre excepção). Porque as lutas
eram duras e os pides tinham mais que fazer do que andar a tomar
conta dos morcegos cobardes, os seus rituais medievais e
fascizantes, foram sempre a expressão escondida duma minoria que
assumia de forma violenta mas endógena a sua insignificância.
E depois da explosão da liberdade, depois dos ideais
à solta pelas ruas, das grandes bebedeiras de democracia?
Depois, bastante depois, quando não passava pela
cabeça de ninguém que os “filhos de Abril" estavam desamparados e
não faziam a mínima ideia do que era a liberdade ou a democracia,
quando as Universidades abriam as portas para mudar a face de
Portugal e ser universitário era cada vez menos ser especial, uns
senhores (que de certeza foram cinzentos a vida toda) retiraram dos
armários a panóplia de disfarces e acessórios, tentando manter os
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esqueletos escondidos, e lentamente remontaram a farsa das
hierarquias, das torturas, das prepotências, das humilhações, das
iniciações. Traziam na ponta da língua bífida o discurso da
integração, da diferenciação, da importância da Universidade e do
Curso Superior e nas mãos, atrás das costas os aparelhos de tortura
com que se coçam os torcionários.
E ninguém sabia mais viver em liberdade e todos
queriam regras e fatos e fitas e etiquetas e saber o que eram só
porque não eram nada e valorizar o caminho que tinham feito, que de
nada lhes valia... E os que percebiam o funcionamento da máquina e
que podiam deixar-se ficar vagueando pelas Universidades com a
patine própria de quem é experiente (o que nestes casos quer dizer
burro, incompetente, empecilho do sistema) inventaram as suas
categorias, as suas insígnias, os seus símbolos, poderes e
privilégios. Os Veteranos, os Dux e outras animalárias que tais,
arrastando o peso da sua ignorância, exibindo os galões de quem se
inscreve pela 5.ª vez no 3.º ano, pela 11.ª no 4.º e sendo admirados
como sábios e mestres da folia universitária, anciãos sabedores dos
caminhos da vida académica.
E é esta a hierarquia que nós queremos? E, porra,
precisamos de alguma hierarquia?
Precisamos de nos sentirmos melhores ou piores que
outros que estão mais ou menos perto de acabar um curso, cuja
probabilidade de nos garantir um futuro é tão escassa (seja que
curso for)? Precisamos de descarregar as nossas frustrações em
rituais humilhantes e tribais? Precisamos de ser prepotentes? O
despotismo fará mesmo parte da essência do Homem? E é isso que nós
queremos, seja como for?
Ou nós não queremos é pensar? Façam lá as coisas à
vossa maneira! É isso que nós gostamos de dizer para dentro.
Queremos é saber qual é o nosso papel, quem é o manda-chuva e quando
ele diz 'dança!', dança-se. É mais fácil, não se cansa a cabecinha.
E depois é muito melhor para a integração. Ah, pois é!
Imaginem lá que só me diziam para eu aparecer nuns
jantares de convívio, assim sem ter que ir com um penico na cabeça,
nem nada, em que se conversava sobre a faculdade com alunos de todos
os anos?
Imaginem
que me convidavam (sem obrigar ninguém?) a dar uma volta pela
cidade, sem ser pintalgado, nem bêbado, vestido como as pessoas dos
outros anos, para conhecer cafés, zonas importantes, pontos de
interesse, sem me obrigarem a beber um bagaço em cada tasca? Que
integração era esta? Como é que eu podia olhar para os mais velhos?
Olhos nos olhos? Sem latir, sem medo nem vergonha? Sem uma ponta de
subserviência? E o Homem foi feito para isto?
Sim, digam lá. Para que é que foi feito o Homem?
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João Martins
10-11-1997
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