Escola Secundária José Estêvão, n.º 20, Dezembro de 1997

Foi para isto que foi feito o Homem?

ou Pequeno Ensaio sobre a Integração

ou Da Necessidade de te olhar nos Olhos

■ João Pedro Martins


A confusão que se estabeleceu, com a ideia de que a crise de valores do fim do milénio, mais a queda do muro de Berlim e o fim da Guerra Fria, transformavam um mundo a preto e branco num mundo tipo demonstração de sala de cinema, com cores, tons, sons e luzes por todo o lado, a confundir as cabecinhas e a transformar metade das coisas que existem numas outras muito parecidas com a outra metade, plantou em algumas cabeças a ideia de que a verdade e a mentira não existem, a História é aquilo que nós quisermos que seja e as ideias valem menos que um pires de tremoços num café de intelectuais.

Eu permito-me discordar, e à boa moda do velho do Restelo, tenho andado por aí a acenar com um indicador torto e tremebundo à rapaziada desnorteada que se passeia por aí alegremente – com um grau de consciência semelhante ao daquela família que ia à pesca do esturjão, para depois comer o pescador, sentados à mesa com o peixe à cabeceira – e vou-lhes dizendo: olhem que isto não é bem como vocês acham... Continuo quase sempre com discursos de uma horas – como qualquer castrista que se preze – falando e gesticulando para o espaço livre que as multidões em fuga deixam à minha frente. Os observadores mais atentos diriam que isto é assim, porque o meu discurso não interessa ao menino Jesus, ou na versão neo-liberal, não vende!

Então vá de pôr algumas palavras no papel e esperar que alguns olhos não escorreguem por estas páginas, para ver se alguém ganha algum tino numa certa discussão que para aí anda sobre os novos tribalismos – ou como se diz habitualmente, a praxe e as tradições académicas. (Quem diria que depois deste intróito tamanho imbroglio se desenrolava?!) / 29 /

Pois é precisamente nesta sensível questão das praxes e das tradições académicas, que cada vez mais parece que "o que as coisas são” tem muito menos importância do que “o que nós dizemos delas"; e nos dizeres da moda, a ignorância abunda, como poucas coisas neste país. Senão, vejamos este pequeno teste: quantos dos "foliões" – leia-se bêbedos desgraçados – sabem o que estão a dizer quando gritam a plenos pulmões EFE ERRE A!? O que é que isso interessa, não é? Bebemos uns copos, damos uns berros, somos estudantes universitários, doutores do vandalismo, descarregamos as nossa frustrações nos caloiros, abraçamo-nos uns aos outros e gritamos EFE ERRE A! Mas porquê EFE ERRE A? Um desses senhores que me explicasse o que é que os espectáculos da vossa degradação têm a ver com a F R A. Frente Revolucionária Académica e eu ficava calado que nem um rato no meu canto, convencido de que afinal estava enganado; e por muito que me custe, alguém sabe o que anda a fazer no meio dessa esterqueira toda. Pois! Porque dizer que PRAXE quer dizer PRAXIS, prática, tradição, 'maneira de fazer as coisas", protocolo, e que no âmbito da tradição académica o termo está ligado ao Código da Praxe de Coimbra (única Universidade aliás com uma idade que lhe permite falar de tradição, com vergonha gostava eu), que não passa dum código hierárquico de contornos medievais, com um cheirinho a iniciações tribais, rituais violentos de admissão a uma casta restrita (e era restrita a casta, antes da democratização do ensino)... Sim, dizer isto da praxe e da tradição académica é uma luta antiga e parece que ninguém liga, ninguém quer saber. Todos preferem o ridículo de ver Universidades Privadas a criarem tradições académicas e Comissões de Praxe do dia para a noite, Universidades que inventam trajes, tunas e costumes e depois defendem-se do ridículo com o ridículo maior da tradição – MENINOS! FAZER UMA COISA PELA PRIMEIRA VEZ NÃO CRIA UMA TRADIÇÃO! E que raio de merda é esta de defender a tradição? Sim! Quem manda os jovens deste país (as pretensas vanguardas intelectuais, o futuro da governação e essas tretas) serem tradicionalistas?

O terror instilado em gerações amorfas, inócuas! Essa é a única resposta e outra qualquer é falaciosa. Quando o mundo era a preto e branco, usando essa terminologia bacoca tão em voga, e todos tinham que escolher um lado da barricada, a maior parte e a mais activa parte dos estudantes do ensino superior estava do lado certo da barricada. Do outro estavam os pides e com eles uns cachopos de capas pretas – sempre discretos no Porto, em Lisboa e por esse pais fora (Coimbra foi sempre excepção). Porque as lutas eram duras e os pides tinham mais que fazer do que andar a tomar conta dos morcegos cobardes, os seus rituais medievais e fascizantes, foram sempre a expressão escondida duma minoria que assumia de forma violenta mas endógena a sua insignificância.

E depois da explosão da liberdade, depois dos ideais à solta pelas ruas, das grandes bebedeiras de democracia?

Depois, bastante depois, quando não passava pela cabeça de ninguém que os “filhos de Abril" estavam desamparados e não faziam a mínima ideia do que era a liberdade ou a democracia, quando as Universidades abriam as portas para mudar a face de Portugal e ser universitário era cada vez menos ser especial, uns senhores (que de certeza foram cinzentos a vida toda) retiraram dos armários a panóplia de disfarces e acessórios, tentando manter os / 30 / esqueletos escondidos, e lentamente remontaram a farsa das hierarquias, das torturas, das prepotências, das humilhações, das iniciações. Traziam na ponta da língua bífida o discurso da integração, da diferenciação, da importância da Universidade e do Curso Superior e nas mãos, atrás das costas os aparelhos de tortura com que se coçam os torcionários.

E ninguém sabia mais viver em liberdade e todos queriam regras e fatos e fitas e etiquetas e saber o que eram só porque não eram nada e valorizar o caminho que tinham feito, que de nada lhes valia... E os que percebiam o funcionamento da máquina e que podiam deixar-se ficar vagueando pelas Universidades com a patine própria de quem é experiente (o que nestes casos quer dizer burro, incompetente, empecilho do sistema) inventaram as suas categorias, as suas insígnias, os seus símbolos, poderes e privilégios. Os Veteranos, os Dux e outras animalárias que tais, arrastando o peso da sua ignorância, exibindo os galões de quem se inscreve pela 5.ª vez no 3.º ano, pela 11.ª no 4.º e sendo admirados como sábios e mestres da folia universitária, anciãos sabedores dos caminhos da vida académica.

E é esta a hierarquia que nós queremos? E, porra, precisamos de alguma hierarquia?

Precisamos de nos sentirmos melhores ou piores que outros que estão mais ou menos perto de acabar um curso, cuja probabilidade de nos garantir um futuro é tão escassa (seja que curso for)? Precisamos de descarregar as nossas frustrações em rituais humilhantes e tribais? Precisamos de ser prepotentes? O despotismo fará mesmo parte da essência do Homem? E é isso que nós queremos, seja como for?

Ou nós não queremos é pensar? Façam lá as coisas à vossa maneira! É isso que nós gostamos de dizer para dentro. Queremos é saber qual é o nosso papel, quem é o manda-chuva e quando ele diz 'dança!', dança-se. É mais fácil, não se cansa a cabecinha. E depois é muito melhor para a integração. Ah, pois é!

Imaginem lá que só me diziam para eu aparecer nuns jantares de convívio, assim sem ter que ir com um penico na cabeça, nem nada, em que se conversava sobre a faculdade com alunos de todos os anos? Imaginem que me convidavam (sem obrigar ninguém?) a dar uma volta pela cidade, sem ser pintalgado, nem bêbado, vestido como as pessoas dos outros anos, para conhecer cafés, zonas importantes, pontos de interesse, sem me obrigarem a beber um bagaço em cada tasca? Que integração era esta? Como é que eu podia olhar para os mais velhos? Olhos nos olhos? Sem latir, sem medo nem vergonha? Sem uma ponta de subserviência? E o Homem foi feito para isto?

Sim, digam lá. Para que é que foi feito o Homem?

João Martins

10-11-1997
 

 

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