entre manter o sossego do emprego e combater pela
autonomia,
independência e responsabilidade no trabalho de cada
professor
A gestão democrática dos estabelecimentos de ensino
constitui o pilar sobre o qual repousou toda a evolução do sistema
educativo após o 25 de Abril de 1974. O processo eleitoral de dois em
dois anos de todos os dirigentes (membros dos Conselhos Directivo e
Pedagógico) acompanhado das crónicas faltas de tradição na formação de
dirigentes (sempre passageiros) e na autonomia das escolas enfraqueceu a
possibilidade de concepção e execução de planos a prazo. Ninguém
estranha que as escolas cumpram o seu papel dentro de uma rotina
estabelecida por linhas estreitas de orientação nacional e ninguém
espera que elas sejam mais do que isso. As boas intenções que alguns
responsáveis debitam a respeito do que devia ser e do que seria possível
não passam de boas intenções. No quadro actual, para as disponibilidades
existentes – recursos humanos, físicos e financeiros – conjugadas com os
serviços de educação socialmente tidos como necessários e exigíveis a
cada uma das escolas, não se vê como pode a situação ser alterada
fundamentalmente.
Mas todos reconhecemos que há uma grande estabilidade ao
nível do corpo docente e que essa estabilidade se traduz, cada vez mais,
em estabilidade dos dirigentes dos grupos disciplinares, dos directores
de turma e das estruturas de coordenação. Este panorama de estabilidade
pode e deve ser espelhado em práticas de liderança pedagógica. Porque a
tradição já não é o que era. Ou não deve ser.
Ao estilo autocrático do anterior regime, a gestão
democrática fez suceder um estilo de direcção em que as competências dos
dirigentes não iam além da possibilidade de convocar reuniões (bastará
ler de relance as competências distribuídas no Decreto-Lei inicial e
central de todo o processo – Decreto-Lei 769-A/76, de 23 de Outubro).
Vingou a ideia das competências difusas dos colectivos e aos dirigentes
eleitos pouco mais restava (ou pouco mais havia como perspectiva) que a
possibilidade de representar as posições e as medidas tomadas em
reuniões de "pares". Para tão poucas competências dos indivíduos e tão
difusas competências dos colectivos, sobrou competência e poder aos
órgãos centrais e regionais do Ministério, que, à semelhança do que
acontece com a relação entre as grandes potências e os pequenos países,
podem sempre desculpar as suas excessivas ingerências na vida das
escolas com o facto de ser excessivamente pedida a sua intervenção em
todos os pormenores, pormaiores, etc., por todos os
conselhos directivo, pedagógico, de turma, da noite, do dia, do
meio-dia, a conselho do delegado ou de um docente qualquer, do chefe de
serviços, do responsável da área de alunos, ou de um irresponsável
qualquer, etc. De facto, estabeleceu-se uma situação de confusão ao
nível da decisão e as escolas habituaram-se a despachos e circulares
para todas as dúvidas de todos e cada um dos grupos, de todos e cada um
dos professores. Nestas condições, há tantas pessoas a ter uma opinião
(mesmo sem qualquer fundamento e estudo sobre qualquer assunto) quantas
as que não estudam os assuntos e não tomam decisões (para além das
clássicas e brilhantes decisões de reclamar esclarecimentos e decisões a
quem de direito). Sim. Para cada dúvida na aplicação de um decreto, um
despacho. Para cada dúvida na aplicação de um despacho, uma circular.
Para cada dúvida na aplicação da circular, um ofício. Para cada dúvida
na aplicação da carta, um telefonema ao técnico superior que se descobre
no labirinto da coisa pública.
E criou-se uma teia conspirativa em que ninguém confia em
ninguém ou ninguém aceita a decisão do outro ali ao lado. Se um delegado
toma uma decisão (ou interpreta um papel), o professor vai pedir outra
interpretação ao conselho directivo e caso não se concorde com uma
decisão (ou leitura) de algum dos conselhos, pede-se uma consulta para
cima (?) e se se mantiver a interpretação há que fazer um pedido de
averiguações à inspecção, etc. Este sistema é um sistema de queixinhas
de cima a baixo, porque os serviços centrais funcionam como os pais
ausentes (e protegidos por lei que lhes permite bater em todos os filhos
a começar pelos filhos mais velhos e responsáveis), batem em toda a
gente ou, tendo medo de cada um dos lobbies e do trabalho que
pode representar quem se lhes dirige em reclamação, desautorizam os
decisores (frequentemente com base na lei que atribui todas as
competências aos colectivos formados por dirigentes sem
/
16 / competências próprias a não ser
representar colectivamente inoperantes…) a quem é fácil atribuir vícios
de forma na teia legislativa da dispersão da autoridade no sistema
educativo. E é, por tudo isso, um sistema de tantas incompetências como
irresponsabilidades como cumplicidades como vénias como compadrios como
medos. Se formos comedidos e nunca levantarmos ondas, podemos começar e
acabar a nossa vida profissional como professores e funcionários
públicos sem problemas. Se nos mexermos, um pouco que seja, não podemos
saber onde é que vamos parar. E há aqueles que pensam que é prudente
atacar, de vez em quando e pela calada dos consultórios dos pequenos e
grandes caciques da politica momentânea, os que se mexem.
Mas não se pode exterminá-lo? Pode. Devagarinho, não
porque lhe desejemos uma morte lenta e dolorosa, mas porque é um sistema
que vive nas atitudes e valores de milhares de pessoas a viver no seu
alvéolo de emprego protegido e tem de ser substituído na mente de cada
uma das pessoas, de cada um de nós, amamentado pelo seio deste sistema e
crescido/educado pela escola deste sistema.
Com vista no bom serviço (público e ou privado) e no
respeito da leis e dos direitos fundamentais dos cidadãos e das
comunidades, cada professor que arrisca defender as suas ideias e
decisões, cada delegado que arrisca interpretar e tomar decisões e
ganhar o seu grupo para o trabalho autónomo e inovador, cada director de
turma que arrisca tomar medidas e defendê-las (perante pais que podem
não querer saber de outra coisa senão das notas dos filhos…), cada
presidente e cada conselho que promove a movida para as decisões
na sua escola, cada pai que exige mudanças para mais saber e melhores
atitudes perante o saber e o mundo, está a melhorar o sistema. E o
sistema vai mesmo mudando. Mesmo quando não parece.
O problema da liderança pedagógica é condição da mudança,
desde o nível do ensino e da aprendizagem ou da relação pedagógica, ao
nível da formação (autoformação) dos professores, até ao nível das
organizações escolares, com vista à autonomia e independência para um
serviço consistente e coerente com as grandes directivas nacionais, mas
adequado à realidade das comunidades que servem e integram.
Nas novas leis dos novos modelos de gestão e
administração das escolas, incluindo a da autonomia, há já definidas
competências para os diversos dirigentes eleitos (ou nomeados e
escolhidos por concurso). Se estes modelos têm fracassado, tal se fica a
dever a erradas decisões de pequena política (nacional e local) e, em
grande parte, às rotinas das teias organizativas de irresponsabilidade
com que o anterior (e actual sistema protege o emprego de cada professor
e de cada funcionário contra o trabalho autónomo e responsável que cada
um deve à sua comunidade. ■
Arsélio Martins
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