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Fernando Diogo
Cumprir os Programas? Porque não?
«…poderíamos dizer que alguns professores estiveram
durante os últimos anos divididos entre, por um lado, a necessidade
de ensinar conteúdos aos seus alunos – como, se não organizando as
actividades da aula? – e, por outro, a aceitação mais ou menos
reflectida e fundamentada, de uma filosofia educativa que vê no
excessivo peso dado aos conteúdos a origem de uma boa parte dos
males que afligem a educação escolar.» – César Coll
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Na sequência da publicação da Lei de Bases do Sistema
Educativo, a generalidade dos autores chamou a atenção para o facto de
que a escola portuguesa deveria reorientar-se no sentido de deixar
reduzir a educação à sua componente instrutiva e passar a dar igual
atenção às dimensões da socialização e da estimulação do desenvolvimento
integral dos alunos. No mesmo sentido – e bem – apontava o discurso da
reforma educativa e algumas das inovações que esta introduziu no sistema
escolar.
Correcta na sua essência, esta perspectiva – que se foi
propagando em formulações menos cuidadas – conduziu à ideia da
desnecessidade do cumprimento dos programas escolares, considerado como
obstáculo à assumpção das tarefas relacionadas com a formação de
atitudes, a educação para os valores, o desenvolvimento de capacidades e
destrezas. Tal ideia pressupõe uma série de disjunções e oposições:
saber-fazer, saber-ser e saber-estar versus saber; conteúdos de
ensino versus capacidades, habilidades e destrezas;
desenvolvimento do aluno versus aprendizagens específicas.
É a pertinência destas disjunções e oposições que deve
ser interrogada se se quiser evitar o movimento pendular contínuo das
concepções e das práticas curriculares e situar correctamente os
conteúdos e as aprendizagens específicas no trabalho educativo com os
alunos.
Um ponto de partida possível consiste em reconhecer que a
crítica ao instrutivismo da escola tradicional se dirigia contra
a pura transmissão de tradição acumulada de conhecimento organizado e a
redução do processo de ensino-aprendizagem às operações de transmissão
(professor) e recepção (aluno). E que, portanto, é possível superar as
disjunções e oposições atrás assinaladas e dar aos conteúdos um
importante papel na educação escolar no interior de uma concepção
construtivista do ensino-aprendizagem.
Nesta linha, César Coll propõe-nos uma reformulação do
conceito de conteúdos entendidos como "conjunto de saberes ou formas
culturais cuja assimilação e apropriação pelos alunos e alunas é
considerado essencial para o seu desenvolvimento e a sua socialização"
– e enuncia os conteúdos do ensino: factos, conceitos, procedimentos
(saber-fazer no sentido amplo) e atitudes.
Os novos programas escolares, ainda que com um
desenvolvimento desigual, acolhem os quatro tipos de conteúdos
referidos, o que abre o caminho à possibilidade de promover o
desenvolvimento e a socialização dos alunos enquanto se "ensina" e
através do modo como se "ensina". Assim sendo, cumprir os programas
deixa de ser um obstáculo e transforma-se na condição necessária da
realização da educação na sua tripla dimensão de instrução, socialização
e estimulação do desenvolvimento do aluno.
Naturalmente, tal resultado não se obtém se o professor
se limita a uma aplicação mecânica dos programas. Cumprir o programa não
significa necessariamente "cobrir" alínea por alínea, com o mesmo grau
de aprofundamento e pela exacta ordem segundo a qual são apresentadas.
Porque nem todas as "alíneas" têm a
/
5 / mesma importância e porque há outras
lógicas segundo as quais organizar e sequenciar os conteúdos do
ensino-aprendizagem.
Cumprir o programa significa sobretudo garantir que os
alunos façam as suas aprendizagens significativas que o programa
prescreve. Afirmar que cumprir o programa consiste em garantir que os
alunos façam as aprendizagens significativas que o programa prescreve
implica recusar, simultaneamente: a) a ideia que a preocupação com o
cumprimento do programa conduz necessariamente à fatalidade de uma
aceleração do ritmo das actividades de ensino-aprendizagem que condene
ao insucesso uma parte dos alunos;
b) a ideia de que para cumprir o programa é preciso
renunciar à prática de uma pedagogia diferenciada que atenda aos
diferentes conhecimentos prévios, ritmos e estilos de aprendizagem dos
alunos;
c) a ideia de que o cumprimento do programa exige o
retorno à predominância do método expositivo, com a redução do aluno ao
papel de receptor passivo das informações transmitidas pelo professor;
obviamente, não se trata de uma tarefa fácil conciliar todas estas
exigências. E será, talvez, impossível consegui-lo se não iniciarmos o
ano lectivo munidos de uma planificação estabelecida segundo bases
sólidas e realistas. Creio que só uma planificação prévia orientada
pelos princípios da selectividade (privilegiar o essencial e eliminar o
que é desnecessário ou redundante) e da realidade (adaptação às
condições concretas da acção, nomeadamente tempo e recursos disponíveis)
poderá colocar o professor em condições de cumprir o programa e, ao
mesmo tempo, manter um ritmo adequado, praticar uma pedagogia
diferenciada e lançar mão das metodologias que melhor contribuem para a
estimulação do desenvolvimento dos alunos e para a sua socialização.
Uma vez que o programa foi concebido para todo o
território nacional, mas é preciso levá-lo à prática num contexto
sócio-económico e cultural específico, numa escola concreta e com uns
alunos dados, compete ao professor instituir-se como mediador entre o
programa nacional e as condições particulares do seu contexto de acção.
Como diz Stenhouse, «tal como uma receita de cozinha, o currículo
possui alguns elementos básicos comuns; porém, cada localidade, cada
restaurante, pode introduzir o seu próprio estilo de confeccionar, de
condimentar, de apresentar, etc. Sabemos que é preciso que cada um se
alimente adequadamente, que cada pessoa ingira um certo número de
calorias, certos mínimos de proteínas, gorduras, certas vitaminas, etc.
Há, porém, muitas formas de o fazer e, de acordo com a região em que se
está, essa exigência cumprir-se-á de maneira diferente (a nível
curricular isto poderia corresponder ao modelo mais aberto e divergente
de programação); inclusivamente, se se prescrevesse a necessidade de
comer peixe duas vezes por semana, essa prescrição seria assumida
diferentemente de um lugar para o outro, de um restaurante para o outro,
de um cozinheiro para o outro.»
Este papel mediador do professor é decisivo e, com maior
ou menor intencionalidade e fundamentação, é sempre exercido. A minha
proposta é que ele se exerça para garantir as aprendizagens
significativas dos programas, incluindo os conteúdos do ensino no
sentido amplificado acima referido e sem regressos à pedagogia
transmissiva. ■
Fernando Diogo,
in jornal “RUMOS”, n.º 7 (Nov.-Dez.1995), p. 7
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