DIVERSOS COM EVENTUAL INTERESSE

O presépio de barro na tradição cristã

e na cultura portuguesa

Quinta-feira, 10 de Dezembro de 1998 – pág. IV Amaro Neves

Fídias, o mais célebre dos escultores da Grécia antiga, justificava o grande empenho que os mestres escultores gregos punham na representação dos deuses do Olimpo desta forma: «Se damos aos deuses a forma humana, é porque não conhecemos outra mais bela.» Não surpreende, pois, face à prática e ao saber dos gregos, que também outros povos, entre os mais evoluídos, tenham seguido semelhantes maneiras de interpretação do divino.

De resto, desde os mais remotos tempos da Humanidade, os grandes momentos da vida, tais como o nascimento, o casamento e a morte, foram encarados de forma mais ou menos respeitosa e, por vezes, mesmo até com veneração, numa envolvência de mistério. Daí que muitas religiões lhes tenham dedicado espaço de relevo nos seus rituais, mais ou menos alargados consoante a perspectiva humanista das civilizações em que se desenvolveram, como de resto ainda lhes dão significativa importância os cultos de feição tribal, na consideração do que esses momentos podem representar na manutenção e crescimento das suas comunidades.

O Cristianismo, naturalmente, fazendo síntese de conhecimentos religiosos herdados das civilizações que se cruzaram, por milénios, no Crescente Fértil como nos corredores que para aí convergiam de diversas montanhas sagradas, desenvolveu doutrina própria profundamente humanizada, dessas etapas da vida do homem, nomeadamente, envolvendo o Filho de Deus. No Antigo Testamento, nesse sentido, diversos exemplos motivavam o povo de Deus para que soubesse aguardar e se preparasse para o nascimento do Enviado o Messias, o Salvador, Javé...

Momento alto, portanto, haveria de ser o nascimento de Cristo, Filho de Deus, conciliando aspirações do homem com os desígnios divinos, num cerimonial de extrema singeleza mas de rara sensibilidade, para o qual convergiam, aliás, outros de semelhante beleza e ternura, plenos de mensagem divina, tais como a Anunciação e a visita a Santa Isabel.

De forma um tanto semelhante se poderia analisar o mistério da morte e ressurreição do mesmo Filho de Deus, sempre na perspectiva do cumprimento dos textos sagrados.

A verdade é que, organizada a Igreja, primeiramente na clandestinidade, sob permanentes actos de perseguição mais ou menos violentos dos imperadores romanos e, depois, beneficiando já de um estatuto de tolerância, ou mesmo, de privilégio na estrutura do império, essas etapas de profunda vivência religiosa e humana haveriam de merecer o carinho por parte dos barristas da época, sedentos de novas oportunidades criadoras. Numa primeira fase, a resistência nas Catacumbas havia determinado o recurso a símbolos que só os iniciados entendiam em toda a plenitude; mas com a expansão que o Cristianismo conheceu pelos séculos III e IV, foram surgindo interpretações figurativas nem sempre fáceis de controlar e difíceis de manter em consonância com os textos bíblicos.

Impunha-se, portanto, para evitar erros interpretativos, que um mínimo de regras pudesse ser aceite de norte a sul, do nascente ao poente, dado o parco conhecimento que algumas comunidades cristãs tinham, sobretudo do Novo Testamento. Mas as dificuldades no seio da Igreja, resultantes porventura do rápido crescimento, eram enormes. Enquanto não fossem definidos, rigorosamente, os princípios teológicos, não se podiam traçar as regras interpretativas para os artistas. Ainda assim, já no concílio de Niceia (325) se tinham acercado algumas linhas globais de acção, com a presença de 318 bispos e do próprio imperador Constantino.

Nem tudo, porém, se pacificou. Mas pela Vulgata, sabiamente organizada por S. Jerónimo (um dos grandes teólogos da Igreja) entre os finais do século IV e princípios do século V, e pelas múltiplas intervenções deste, proliferou a representação de miniaturas de carácter religioso, como forma de incentivar a vivência da fé.

Pelos séculos VII e VIII houve ainda contestação ao culto das imagens, defendido por uns com entusiasmo, mas também atacado por outros que viam nisso um retrocesso e identificação com rituais pagãos politeístas. Daí que se tenha discutido, em diversos concílios, esta problemática, nem sempre de forma pacífica. Em 769, no Concílio de Roma, determinou-se que as relíquias e imagens fossem honradas segundo a antiga tradição e o II concílio de Niceia (787), em que participaram 377 bispos, anatematizou a impiedade dos Iconoclastas (...) e restabeleceu na Igreja o culto das Santas Imagens. Ficou assim aberto e sem peias o caminho à feitura de imagens, pequenas ou grandes, na pintura, na escultura, no desenho... para maior exercício da fé. E se a doutrina defendida por S. Jerónimo acabou por ser tomada como linha de continuidade, as ordens mendicantes, pela singeleza de vida, foram determinantes na aceitação popular desta forma de vivência cristã, nomeadamente pelo exemplo de S. Francisco de Assis e seus companheiros, voltados para o culto da natureza, numa mensagem de simplicidade e humanidade que tocou, bem fundo, as comunidades do tempo. Com os franciscanos, a Igreja tornou-se mais aberta aos pobres, receptiva à participação da gente humilde ou gente pobrezinha, como diria il PovereIlo.

Por Quatrocentos e por Quinhentos, numa disputa sem tréguas entre as repúblicas italianas e outras cidades mercantis, nomeadamente da Flandres, houve uma incessante busca de novas formas e técnicas que, com novas perspectivas, combateram a escolástica, o formalismo e o tradicionalismo da Igreja, apresentando-se com uma visão mais humanista e crítica. Gradualmente, extremaram-se posições levando à separação de algumas igrejas, em relação ao reconhecimento do Papa como chefe do Catolicismo.

 

O presépio na Igreja, após o Concílio de Trento

Em resposta, este e as igrejas católicas da maioria dos países da Europa reuniram em Trento (1545-1563), aqui definindo as novas estratégias para a acção da Igreja.

No que respeita às artes, ainda que tenha sido aprovada a manutenção das imagens religiosas, estas, todavia, não passariam de símbolos das figuras celestiais, pelo que o Concílio de Trento determinava e advertia, na XXV sessão, realizada entre 1563, que se fizessem imagens para glória de Deus, pois das sagradas imagens se recebe grande fruto, não só porque se manifestam ao povo os benefícios e mercês que Cristo lhes concede, mas também porque se expõem aos olhos dos Fiéis os milagres que Deus obra pelos Santos, e seus saudáveis exemplos.

Assim, o Concílio fez rumar a arte da Contra-Reforma pelo caminho do heróico e do maravilhoso, advertindo, no entanto, que nas representações toda a lascívia deveria ser evitada, de modo que as imagens não sejam pintadas com formosura dissoluta. O que, por outras palavras, e sobretudo tendo em conta a acção dos Pregadores e a fiscalização-repressão do Tribunal do Santo Oficio, claramente deixa antever até que ponto se poderiam alargar os artistas na sua actividade criadora. Ou, por outro lado, tendo em conta a maioria da clientela artística, claramente de carácter religioso, artistas houve que foram obrigados a cristianizar as sua obras, da mesma forma que muitas foram rejeitadas e condenadas. Em conformidade, os artistas populares, sem discutirem as decisões conciliares ou episcopais e sem grandes rasgos imaginativos, foram continuando a fazer os principais quadros da vida de Cristo, nomeadamente o Presépio, alargado às vezes à Anunciação, à Natividade, à Adoração dos Pastores e dos Reis Magos... Mais ou menos teatralizadas, estas cenas natalícias, que podiam radicar na sugestão de S. Jerónimo, ganharam consistência com as pregações e os exemplos de S. Francisco, para se estenderem um pouco por toda a Europa. Não se sabe se tiveram maior aceitação pelas áreas urbanas ou nas comunidades religiosas de montanha, ou se ganharam aceitação imediata pelos centros marítimos. Mas sabe-se que uma plêiade de artistas populares confeccionou em barro figuras de santos, como a Paixão e a Natividade. E sabe-se, também, que a arte dos presépios estava já arreigada no culto das gentes pelos sécs. XIll e XIV, nomeadamente na Itália, no Tirol, na Provença e pelo Mediterrâneo europeu, onde se faziam conjuntos de grande beleza, apreciados pelo realismo da modelação das figuras. Pode dizer-se até que, apesar das vicissitudes do tempo, quase nada beliscou este costume tão singelo e terno quão rico em mensagem cristã, fazendo-se de barro cortejos de figuras.

E porque tão bem aceite pelo gosto popular, portugueses e, depois, também os espanhóis, como mensageiros do espírito tridentino, o levaram por mares distantes para os quatro pontos do Mundo. Nem sempre em barro (como em madeira, marfim, etc.), mas na sua maioria feitos do vil pó, por facilitar o jogo da cor e movimento teatral, a tradição dos barristas passou da Europa ao Universo, com anjos e santos e figuração múltipla, para maior glória de Deus.

À semelhança das figuras dos Presépios, todos os outros mistérios foram tratados, de forma exuberante, ao ritmo de cada estilo, no espaço da Igreja, isto é, onde quer que o culto cristão se tenha enraizado. Da mesma forma, o hagiológio foi campo vasto para a criatividade dos artistas, sob a orientação das hierarquias, sempre com base nas determinações de Trento, ainda que retocadas consoante os tempos.

Se a época contemporânea conheceu correntes de acentuado racionalismo e ventos positivistas, entre outras, e algumas assumiram claramente posições de combate ao clero e à Igreja, nem por isso o culto das imagens, renovado na liturgia, deixou de contar com extraordinários exemplares, pelos séculos XIX e XX, saídos das mãos de grandes artistas.

A verdade, porém, é que o culto dos santos, nas igrejas como nos centros devocionais, em geral, não voltou a conhecer o entusiasmo dos séculos XVII e XVIII, eminentemente apologéticos.

Após os grandes embates dos finais do século XIX sobretudo ideológico-sociais e os conflitos mundiais, urgia reflectir, globalmente, sobre a missão da Igreja, o que veio a acontecer no Concílio Vaticano II. Aqui, debatidos profundamente todos os problemas que lhe diziam respeito, não só perante o mundo como também internamente e no que toca à liturgia, tinha que ser abordada a questão da Arte Sacra e das alfaias litúrgicas.

Mais especificamente, sobre o culto das imagens foi aí decidido que se mantivesse o uso de expor imagens nas igrejas à veneração dos fiéis. Sejam, no entanto, em número comedido e na ordem devida, para não causar estranheza aos fiéis nem contemporizar com uma devoção menos ortodoxa. Isto é, faz-se um apelo à moderação na exposição de imagens, convidando a um centralismo na devoção. Por outro lado, restringindo-se imagens poderá levar-se ao esquecimento de exemplos edificantes. Assim, os santeiros que, durante séculos, tiveram nas igrejas a sua principal clientela, vêem agora o seu vasto campo de trabalho mais limitado, já que as imagens dos santos têm que ser em número comedido.

Apesar de tudo, não está fechada a porta aos santeiros, em qualquer matéria que seja, muito menos aos barristas, se a obra tiver qualidade e for adequada aos parâmetros da liturgia. Até porque a Igreja tem mostrado ter muito apreço pelas suas antiquíssimas tradições e, entre estas, o barrista assume-se como dos mais antigos fazedores de santos.

Será, pois, uma tradição que perdurará, apesar de tudo, pelos séculos além, não obstante as vicissitudes do tempo... e da Igreja.

AMARO NEVES, Barristas Aveirenses (adaptado), FEDRAVE

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