Fídias, o mais célebre dos escultores da Grécia antiga, justificava o
grande empenho que os mestres escultores gregos punham na representação
dos deuses do Olimpo desta forma: «Se damos aos deuses a forma humana,
é porque não conhecemos outra mais bela.» Não surpreende, pois, face à
prática e ao saber dos gregos, que também outros povos, entre os mais
evoluídos, tenham seguido semelhantes maneiras de interpretação do
divino.
De resto, desde os mais remotos tempos da Humanidade, os grandes
momentos da vida, tais como o nascimento, o casamento e a morte, foram
encarados de forma mais ou menos respeitosa e, por vezes, mesmo até
com veneração, numa envolvência de mistério. Daí que muitas religiões
lhes tenham dedicado espaço de relevo nos seus rituais, mais ou menos
alargados consoante a perspectiva humanista das civilizações em que se
desenvolveram, como de resto ainda lhes dão significativa importância os
cultos de feição tribal, na consideração do que esses momentos podem
representar na manutenção e crescimento das suas comunidades.
O Cristianismo, naturalmente, fazendo síntese de conhecimentos
religiosos herdados das civilizações que se cruzaram, por milénios, no
Crescente Fértil como nos corredores que para aí convergiam de diversas
montanhas sagradas, desenvolveu doutrina própria profundamente
humanizada, dessas etapas da vida do homem, nomeadamente, envolvendo o
Filho de Deus. No
Antigo Testamento, nesse sentido, diversos exemplos motivavam o povo de
Deus para que soubesse aguardar e se preparasse para o nascimento do
Enviado
−
o Messias, o Salvador, Javé...
Momento alto, portanto, haveria de ser
o nascimento de Cristo, Filho de Deus, conciliando aspirações do homem
com os desígnios divinos, num cerimonial de extrema singeleza mas de
rara sensibilidade, para o qual convergiam, aliás, outros de semelhante
beleza e ternura, plenos de mensagem divina, tais como a Anunciação e a
visita a Santa Isabel.
De forma um tanto semelhante se poderia analisar o mistério da morte e ressurreição do mesmo Filho de Deus, sempre na perspectiva do
cumprimento dos textos sagrados.
A verdade é que, organizada a Igreja, primeiramente na clandestinidade,
sob permanentes actos de perseguição mais ou menos violentos dos
imperadores romanos e, depois, beneficiando já de um estatuto de tolerância, ou mesmo, de privilégio
na estrutura do império, essas etapas de profunda vivência religiosa e
humana haveriam de merecer o carinho por parte dos barristas da época, sedentos de novas oportunidades criadoras. Numa primeira fase, a resistência nas Catacumbas
havia determinado o recurso a símbolos que só os iniciados entendiam em
toda a plenitude; mas com a expansão que o Cristianismo conheceu pelos
séculos III e IV, foram surgindo interpretações figurativas nem sempre
fáceis de controlar e difíceis de manter em consonância com os textos
bíblicos.
Impunha-se, portanto, para evitar erros interpretativos, que um mínimo
de regras pudesse ser aceite de norte a sul, do nascente ao poente, dado o
parco conhecimento que algumas comunidades cristãs tinham, sobretudo do
Novo Testamento. Mas as dificuldades no seio da Igreja, resultantes
porventura do rápido crescimento, eram enormes. Enquanto não fossem
definidos, rigorosamente, os princípios teológicos, não se podiam traçar
as regras interpretativas para os artistas. Ainda assim, já no concílio
de Niceia (325) se tinham acercado algumas linhas globais de acção, com
a presença de 318 bispos e do próprio imperador Constantino.
Nem tudo, porém, se pacificou. Mas
pela Vulgata, sabiamente organizada por S. Jerónimo (um dos grandes
teólogos da Igreja) entre os finais do século IV e princípios do século
V, e pelas múltiplas intervenções deste, proliferou a representação de
miniaturas de carácter religioso, como forma de incentivar a vivência da
fé.
Pelos séculos VII e VIII houve ainda contestação ao culto das imagens,
defendido por uns com entusiasmo, mas também atacado por outros que
viam nisso um retrocesso e identificação com rituais pagãos politeístas.
Daí que se tenha discutido, em diversos concílios, esta problemática,
nem sempre de forma pacífica. Em 769, no Concílio de Roma, determinou-se
que as relíquias e imagens fossem honradas segundo a antiga tradição e o
II concílio de Niceia (787), em que participaram 377 bispos,
anatematizou a impiedade dos Iconoclastas (...) e restabeleceu na Igreja o
culto das Santas Imagens. Ficou assim aberto e sem peias o caminho à
feitura de imagens, pequenas ou grandes, na pintura, na escultura, no
desenho... para maior exercício da fé. E se a doutrina defendida por S.
Jerónimo acabou por ser tomada como linha de continuidade, as ordens
mendicantes, pela singeleza de vida, foram determinantes na aceitação
popular desta forma de vivência cristã, nomeadamente pelo exemplo de S.
Francisco de Assis e seus companheiros, voltados para o culto da
natureza, numa mensagem de simplicidade e humanidade que tocou, bem
fundo, as comunidades do tempo. Com os franciscanos, a Igreja tornou-se
mais aberta aos pobres, receptiva à participação da gente humilde ou
gente pobrezinha, como diria il PovereIlo.
Por Quatrocentos e por Quinhentos, numa disputa sem tréguas entre as
repúblicas italianas e outras cidades mercantis, nomeadamente da
Flandres, houve uma incessante busca de novas formas e técnicas que, com novas perspectivas, combateram a escolástica, o formalismo e o tradicionalismo da Igreja,
apresentando-se com uma visão mais humanista e crítica. Gradualmente,
extremaram-se posições levando à separação de algumas igrejas, em
relação ao reconhecimento do Papa como chefe do Catolicismo.
O presépio na Igreja, após o Concílio de Trento
Em resposta, este e as igrejas católicas da maioria dos países da Europa
reuniram em Trento (1545-1563), aqui definindo as novas estratégias para
a acção da Igreja.
No que respeita às artes, ainda que tenha sido aprovada a manutenção das
imagens religiosas, estas, todavia, não passariam de símbolos das
figuras celestiais, pelo que o Concílio de Trento determinava e advertia,
na XXV sessão, realizada entre 1563, que se fizessem imagens para glória
de Deus, pois das sagradas imagens se recebe grande fruto, não só
porque se manifestam ao povo os benefícios e mercês que Cristo lhes concede,
mas também porque se expõem aos olhos dos Fiéis os milagres que Deus
obra pelos Santos, e seus saudáveis exemplos.
Assim, o Concílio fez rumar a arte da Contra-Reforma pelo caminho do
heróico e do maravilhoso, advertindo, no entanto, que nas representações
toda a lascívia deveria ser evitada, de modo que as imagens não sejam pintadas com
formosura dissoluta. O que, por outras palavras, e sobretudo tendo
em conta a
acção dos Pregadores e a fiscalização-repressão do Tribunal do Santo
Oficio, claramente deixa antever até que ponto se poderiam alargar os
artistas na sua actividade criadora. Ou,
por outro lado, tendo em conta a maioria da clientela artística,
claramente de carácter religioso, artistas houve que foram obrigados a
cristianizar as sua obras, da mesma forma que muitas foram rejeitadas e
condenadas. Em conformidade, os artistas populares, sem discutirem as
decisões conciliares ou episcopais e
sem grandes rasgos imaginativos, foram continuando a fazer os principais quadros da vida de
Cristo, nomeadamente o Presépio, alargado às vezes à Anunciação, à
Natividade, à Adoração dos Pastores e dos Reis Magos... Mais ou menos
teatralizadas, estas cenas natalícias, que podiam radicar na sugestão
de S. Jerónimo, ganharam consistência com as pregações e os exemplos de
S. Francisco, para se estenderem
um pouco por toda a Europa.
Não se sabe se tiveram maior aceitação pelas áreas urbanas ou nas
comunidades religiosas de montanha, ou se ganharam aceitação imediata
pelos
centros marítimos. Mas sabe-se que uma plêiade de artistas populares confeccionou em
barro figuras de santos, como a Paixão e a Natividade. E sabe-se, também,
que a arte
dos presépios estava já arreigada no culto das gentes pelos sécs. XIll e XIV,
nomeadamente na Itália, no Tirol, na Provença e pelo Mediterrâneo
europeu, onde se faziam conjuntos de grande beleza, apreciados pelo
realismo da modelação das figuras. Pode dizer-se até que, apesar das
vicissitudes do tempo, quase nada beliscou este costume tão singelo e
terno quão rico em mensagem cristã, fazendo-se de barro cortejos de
figuras.
E porque tão bem aceite pelo gosto popular, portugueses e, depois,
também os espanhóis, como mensageiros do espírito tridentino, o levaram
por mares distantes para os quatro pontos do Mundo. Nem sempre em barro
(como em madeira, marfim, etc.), mas na sua maioria
feitos do vil pó, por facilitar o jogo da cor e movimento teatral, a
tradição dos barristas passou da Europa ao Universo, com anjos e santos
e figuração múltipla, para maior glória de Deus.
À semelhança das figuras dos Presépios, todos os outros mistérios foram
tratados, de forma exuberante, ao ritmo de cada estilo, no espaço da
Igreja, isto é, onde quer
que o culto cristão se tenha enraizado. Da
mesma forma, o hagiológio foi campo vasto para a criatividade dos
artistas, sob a orientação das hierarquias, sempre com base nas
determinações de Trento, ainda que retocadas consoante os tempos.
Se a época contemporânea conheceu correntes de acentuado racionalismo e
ventos positivistas, entre outras, e algumas assumiram claramente
posições de combate
ao clero e à Igreja, nem por isso o culto das imagens, renovado na
liturgia, deixou de contar com extraordinários exemplares, pelos séculos XIX e XX, saídos das mãos de grandes artistas.
A verdade, porém, é que o culto dos santos, nas igrejas como nos centros
devocionais, em geral, não voltou a conhecer o entusiasmo dos séculos
XVII e XVIII, eminentemente apologéticos.
Após os grandes embates dos finais do século XIX
− sobretudo ideológico-sociais e os conflitos mundiais, urgia reflectir, globalmente,
sobre a missão da Igreja, o que veio a acontecer no Concílio Vaticano
II. Aqui, debatidos profundamente todos os problemas que lhe diziam
respeito, não só perante o mundo
como também internamente e no que
toca à liturgia, tinha que ser abordada a questão da Arte Sacra e das
alfaias litúrgicas.
Mais especificamente, sobre o culto das imagens foi aí decidido que se
mantivesse o uso de expor imagens nas igrejas à veneração dos fiéis.
Sejam, no entanto, em número comedido e na ordem devida, para não
causar estranheza aos fiéis nem contemporizar com uma devoção menos
ortodoxa. Isto é, faz-se um apelo à moderação na exposição de imagens, convidando a um
centralismo na devoção. Por outro lado, restringindo-se imagens poderá levar-se ao esquecimento de exemplos
edificantes. Assim, os santeiros que, durante séculos, tiveram nas igrejas
a sua principal clientela, vêem agora o seu vasto campo de trabalho mais
limitado, já que as imagens dos santos têm que ser em número comedido.
Apesar de tudo, não está fechada a porta aos santeiros, em qualquer
matéria que seja, muito menos aos barristas, se a obra tiver qualidade e for adequada aos parâmetros
da liturgia. Até porque a Igreja tem mostrado ter muito apreço pelas
suas antiquíssimas tradições e, entre estas, o barrista assume-se como
dos mais antigos fazedores de santos.
Será, pois, uma tradição que perdurará,
apesar de tudo, pelos séculos além, não obstante as vicissitudes do
tempo... e da Igreja.
AMARO NEVES, Barristas Aveirenses (adaptado),
FEDRAVE
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